JOÃO PAULO II, O PAPA DE FÁTIMA

INTRODUÇÃO

Nunca poderei esquecer aquela manhã em que, juntamente com os bispos portugueses em visita ad limina, participei na missa presidida pelo Papa João Paulo II na sua capela privada, no palácio apostólico.

Depois da missa, o papa veio cumprimentar cada um dos presentes. D. Alberto Cosme do Amaral, bispo de Leiria-Fátima e D. Serafim Ferreira e Silva, bispo coadjutor, apresentaram-me ao Papa, como sacerdote da diocese a estudar em Roma. João Paulo II, com um olhar muito vivo, como que parou a olhar no vago e disse em tom muito lento, grave, pensativo: “Fátima... Fátima... vou a Fátima todos os dias...”

Na altura impressionou-me muito ouvir o Papa pôr tanto peso naquelas palavras, como se o mundo tivesse de parar para as ouvir pronunciar com toda a atenção. Tive a percepção que esta era uma palavra única para o Papa, daquelas que tocam o fundo da alma, que não se pronunciam sem emoção, que são decisivas no sentido de evocarem o que de mais sagrado existe em nós, daquelas que são de vida ou de morte e nas quais se joga tudo.

Nesta exposição procurarei ajudar-vos a perceber que, de facto, para o Papa se tratava de uma questão de vida ou de morte, de salvação ou ruína da humanidade em que estava implicada a sua própria pessoa e em que o protagonismo cabia a Nossa Senhora de Fátima.

 

 

  1. AS ORIGENS DE UMA DEVOÇÃO

 

A história de relação de Nossa Senhora com João Paulo II/Karol Wojtyla não começa em 1978 com a sua eleição para Papa, nem em 1981 com o atentado da Praça de S. Pedro, mas é a história de toda a sua vida.

De algum modo, podemos dizer que, segundo a doutrina da Igreja, Deus concedeu a cada pessoa o seu Anjo protetor, o seu Anjo da Guarda, e a Karol Wojtyla concedeu a Rainha dos Anjos, Nossa Senhora.

Sem entrar no jogo das coincidências fáceis, é um facto que Karol Wojtyla nasceu no dia em que se comemorava Nossa Senhora do Bom Porto, 18 de Maio de 1920 que, segundo Calendário Mariano, evoca o dia em que o Rei Ricardo Coração de Leão atravessava o Sena a cavalo, se viu em perigo de morte arrastado pela corrente e fez o voto solene de mandar construir uma abadia no local em que entrasse novamente em terra. Construiu, em 1190 uma casa para os cistercienses, que foi o início de uma longa história de manifestações de santidade dos devotos de Nossa Senhora.

O futuro Papa nasceu a ouvir os cânticos marianos do mês de Maio, o canto da ladainha lauretana e outros cânticos de louvor, numa Polónia cheia de devoção e tradição mariana, numa família que, exteriormente em nada se distinguia de todas as outras de Wadowice. Na sua terra e na sua casa, o caminho para Deus passava inevitavelmente por Maria e pela devoção e oração marianas.

O Papa foi, por isso, mariano desde o nascimento; ele pertenceu sempre a Maria, pois o seu meio humano e cristão favoreceram desde logo essa condição. Por sua vez, à morte da mãe, ele escolheu Maria como protetora da sua vida de criança órfã de nove anos: “Agora és tu que serás a minha Mãe!”. A partir daquela altura a certeza de que Maria o acompanhava nunca mais o abandonou.

A grande marca da sua vida foi a leitura do “Traité de la vraie dévotion à la Sainte Vierge” de S. Luís Maria Grignon de Monfort. Daí retira o lema do seu episcopado, que o acompanhará também durante o pontificado: Totus Tuus. Aí ganha corpo o “M” que figura nas suas armas de fé e se torna o distintivo de toda a sua vida.

Esclarecedor é o texto da sua alocução ainda como Cardeal de Cracóvia acerca do pequeno livro que tanta influência tem na sua espiritualidade: “Esse pequeno livro, com a sua capa azul, semelhante a um livro de oração, constituiu então a minha leitura durante dias e semanas. Não me contentei em lê-lo uma vez para o pôr a seguir numa prateleira da biblioteca, mas li-o continuamente do princípio ao fim e do fim ao princípio. Graças a esse livro, compreendi o que é a devoção à Santíssima Virgem. Já tinha esta devoção enquanto criança, enquanto aluno do colégio, enquanto estudante, mas somente esse pequeno livro, lido durante as mudanças de turno nas fábricas de soda, me revelou o verdadeiro sentido e a profundidade desta devoção”.

Aquele pequeno livro, lido e relido continuamente durante o período em que trabalhou na firma Solvay, onde entrou em 1940, formou a sua devoção mariana e revelou-lhe o verdadeiro sentido dessa devoção, como ele disse tantas vezes. Como se disse, foi daí que retirou o seu lema episcopal e papal, Totus Tuus.

Ele mesmo se referiu a esse caminho feito outras ocasiões: “Graças a S. Luís Maria, comecei a descobrir todos os tesouros da devoção mariana, mas de um modo novo”. Ele compreende que um verdadeiro devoto de Maria é um consagrado a ela, um escravo dela, que um homem que se dá inteiramente a ela se torna dela, “todo teu”. Por sua vez recebe o grande tesouro, pois recebe a Santíssima Virgem como sua propriedade. Somente quem é todo dela, sem restrições, pode pronunciar essa fórmula radical, que é o Totus Tuus, e Wojtyla consagra-se sem limites: deseja ser como ela, crer como ela e oferecer-se a Deus como lugar da sua acção no mundo, tal como ela.

Nesse sentido se consagra a Maria, com as seguintes palavras, que não são mais que a explicitação da fórmula do Totus Tuus: “Eu escolhi-te, hoje, ó Maria, na presença de toda a corte celeste, como minha Mãe e minha Rainha. Eu te entrego e consagro, em toda a submissão e amor, o meu corpo e a minha alma, os meus bens interiores e exteriores, o próprio valor das minhas boas ações, passadas, presentes e futuras, deixando-te um inteiro e pleno direito de dispor de mim e de tudo o que me pertence, sem excepção, segundo a tua vontade, para maior glória de Deus, no tempo e na eternidade. Amen.”

 

 

2. NASCIDO NA DEVOÇÃO POLACA

 

A mesma Polónia que gerou Karol Wojtyla, o grande consagrado a Maria, gerou o P. Maximiliano Maria Kolbe, que foi chamado o “louco da Imaculada” e quis conquistar o mundo inteiro para Maria.

Wojtyla encontrou ainda o grande mestre que tudo tinha entregue a Maria, o grande Stefan Wyszynski, Primaz da Polónia, sem o qual, como disse o mesmo Wojtyla, nunca teria havido um papa polaco no Vaticano.

A convicção do futuro Papa bem enraizada na tradição polaca era a de que “um ser humano se pode abandonar totalmente a Maria, pode sempre recorrer a ela, quaisquer que sejam as suas necessidades”. Ele aprende que a Virgem Santa está presente, cuida de todos e protege não somente os que a ela se confiam, mas o mundo inteiro. Ela quer inclusivamente velar por nós, cuidar de nós e proteger-nos, em todas as dimensões da nossa vida, incluindo a dimensão social e política. Wojtyla descobre inclusivamente o sentido da grande frase profética polaca, que se torna proverbial no meio das dificuldades que se vivem: “A vitória, quando vier, virá por Maria”.

Esta era a convicção veiculada pela tradição católica e bem patente nas palavras do cardeal August Hlond, em 1948: “Lutai com confiança. Trabalhai sob a protecção da Virgem Santa. A vossa vitória está certa. A Imaculada vos ajudará a alcançar a vitória. Trabalhai e lutai sob a proteção da Mãe de Deus. A vitória, quando chegar, será a vitória da Virgem Santa”.

O cardeal Wyszynsky, sucessor de Hlond, continua com um discurso semelhante, como se fosse um sentir comum na Polónia: “Um tempo novo virá, que terá necessidade de poderes novos. Deus os concederá no momento oportuno. Tal como o cardeal Hlond, também eu entreguei tudo à Virgem Santa e eu sei que o seu poder não enfraquecerá na Polónia, mesmo que as pessoas mudem”.

Deste modo, os cardeais polacos transmitem a Wojtyla a ideia de que a via mariana é a via mais direta para a santidade pessoal e o melhor programa para fazer nascer um mundo novo e melhor, a via para conseguir as mudanças tão desejadas no campo social e político.

João Paulo II pôde ver de algum modo confirmada esta convicção sua e dos seus predecessores, pois, de facto, a Polónia, país que se pôs sob a protecção de Maria, conseguiu manter por muito mais tempo do que os outros países a sua independência e a Igreja Polaca foi aquela que, dentro do bloco soviético, manteve uma maior liberdade e independência face ao regime e ao poder político.

Todos estes acontecimentos mostravam a Wojtyla que a situação da Polónia era diferente, parecia um autêntico milagre, e isso devia-se ao facto de se ter feito a consagração do país a Nossa Senhora, a Mãe da Igreja. Ele que já conhecia os frutos da acção de Maria a um nível pessoal, conhecia-os agora também a um nível social e viria a conhecê-los a nível religioso e político.

Em 1966, quando o cardeal Wyszynsky consagra a nação polaca a Maria, na celebração do milénio do baptismo da Polónia, Wojtyla conclui que todos os polacos se tornam pertencentes a Maria, ou seja, o lema Totus Tuus aplica-se a toda a nação polaca e desse modo realiza-se o que fora anunciado por S. Luís Maria Grignon de Monfort.

Este acontecimento teve uma importância capital para Wojtyla que começa a vislumbrar a ideia da consagração total a Maria, dizendo: “Nós desejamos confiar-te todo o nosso futuro, ó Mãe de Cristo. Nós o fazemos de modo escrupuloso e total, pois nós queremos construir poderosos fundamentos para o futuro do nosso país. Nós encontraremos estes fundamentos sólidos consagrando-nos a ti, Mãe de Cristo, Mãe de Deus. Tu és o fundamento sobre o qual nos construímos e nós te entregamos todo o nosso futuro. Nós te entregamos os que virão depois de nós, para que eles tenham o mesmo espírito que nós e para que nada nem ninguém possa apagar este espírito. Todo o nosso passado está nas tuas mãos e todo o nosso futuro está nas tuas mãos”.

Na esteira de Wyszynsky, Wojtyla pensava ter encontrado na consagração a Maria o caminho ideal para a sua pátria, para a Igreja e para o mundo, de tal modo que, juntamente com o episcopado polaco, tenta propor à Igreja Universal a via mariana como caminho para a vitória. Num documento particular, os bispos polacos exprimem a sua convicção de que “ a honra que se rende à Mãe de Deus e Mãe dos homens, Mãe de todo o género humano e particularmente Mãe da Igreja, é a única forma de proteger a unidade e de garantir a salvação”.

Em 1972, num documento dirigido ao Vaticano e a todas as conferências episcopais do mundo, os bispos polacos pedem a consagração da terra inteira a Maria, com base na sua experiência nacional. O texto é escrito por Wojtyla, que se dirige a Paulo VI nos seguintes termos: “Seria uma oferta colegial – feita por Vossa Santidade juntamente com os bispos do mundo inteiro. Pio XII fê-la sozinho, enquanto vós, Santíssimo Padre, vós a faríeis na presença dos Padres do Concílio. Desta vez, vós faríeis este ato com todo o episcopado da terra, chamado por vós a Roma para esta finalidade”.

Seis anos mais tarde, em 1978, o mesmo Wojtyla tinha a possibilidade de levar a Igreja a percorrer esta via mariana inspirada na experiência polaca. Tratava-se do início do pontificado de João Paulo II que, ao fim de três anos, em 1981, estava pronto para corresponder aos pedidos de Nossa Senhora aos Pastorinhos de Fátima que, na aparição de Julho, depois de falar da punição dos crimes deste mundo por meio da guerra, da fome e da perseguição à Igreja e ao Santo Padre, anuncia: “Para a impedir, virei pedir as consagração da Rússia a Meu Imaculado Coração e a comunhão reparadora dos primeiros sábados”.

 

 

3. PONTIFICADO EXPLICADO POR NOSSA SENHORA

 

Afirma-se hoje que o pontificado de João Paulo II se explica por Fátima. A sua eleição dificilmente pode ser entendida como um coroar do seu trabalho na Igreja, como uma recompensa pela sua piedade ou como um reconhecimento do seu serviço à Igreja. No contexto da sua devoção mais profunda, ele parecia ter consciência de que Nossa Senhora o designara como sucessor de S. Pedro e tinha projetos misteriosos em que estava implicada a totalidade da sua pessoa.

João Paulo II tem uma consciência bem forte do lugar que ocupa Nossa Senhora na vida da Igreja, e essa consciência leva-o a pronunciar palavras muito especiais a este propósito, no Natal de 1987: “A vida da Igreja tem um autêntico perfil mariano... Este perfil mariano é também - se não é ainda mais - fundamental e caracterizante para a Igreja, que o perfil apostólico e petrino, ao qual está profundamente unido. Também sob este aspecto da Igreja, Maria precede o Povo de Deus peregrinante. Neste sentido, a dimensão mariana da Igreja antecede a petrina, apesar de lhe estar plenamente unida e lhe ser complementar. Maria, a Imaculada, precede todos os outros, e, obviamente, o próprio Pedro e os Apóstolos: não somente porque Pedro e os Apóstolos provindo da massa do género humano, que nasce sob o pecado, fazem parte da Igreja sancta ex peccatoribus, mas também porque o seu tríplice múnus não pretende mais do que formar a Igreja naquele ideal de santidade que já está preformado e prefigurado em Maria. Como bem disse um teólogo contemporâneo, Maria é rainha dos apóstolos, sem pretender para si os poderes apostólicos” (citando Von Balthasar).

Este discurso, polémico sob certo ponto de vista, esclarece bem o modo como João Paulo II entendia o lugar de Maria na Igreja e como entendia o lugar do Papa, da sua própria pessoa, enquanto sucessor de Pedro, dentro da Igreja e na relação com Maria. Ao considerar o perfil mariano anterior ao perfil petrino, esclarece qual o seu lugar e a sua missão na mesma Igreja.

Às muitas interrogações acerca da eleição de um homem ainda tão jovem, com apenas 58 anos de idade, vindo de um país longínquo para lá da cortina de ferro, dão-se muitas respostas e explicações. À luz da fé, a sua eleição tem a marca do Espírito Santo, mas, para ele, a melhor explicação encontra-se em Maria, como o demonstrará a história do seu pontificado e a sua história pessoal.

Ainda no conclave, ao responder ao cardeal que lhe pergunta se aceita a eleição, ele responde com a proclamação da via mariana que seguirá em todo o pontificado: “Na obediência da fé a Cristo meu Senhor, e fazendo um ato de confiança total na Mãe de Cristo e da Igreja, consciente das grandes dificuldades, aceito”. Ele aceita, por Maria, como acontece com tudo na sua vida e porque, segundo o cardeal Wyszynsky, o Céu tinha necessidade de um papa mariano na sede petrina. O próprio Papa viria a confessar mais tarde: “Tive medo de aceitar esta missão, mas fi-lo na obediência a Nosso Senhor Jesus Cristo e na confiança total na Virgem Santa”.

Vários comentadores entenderam que João Paulo II fora escolhido para trazer à Igreja Universal a experiência da Igreja polaca, ancorada em Maria enquanto rainha que conduz à vitória sobre o mal. Um deles é Rocco Buttiglione, jornalista e filósofo italiano, amigo do Papa, que escreve: “A fé encarnada na vida de uma nação torna-se a interpretação da história. O pontificado de João Paulo II deve ser considerado no contexto de um testemunho de fé dado pela Igreja polaca, dirigida por Stefan Wyszynsky, o grande estratega. Do confronto com o comunismo, esta Igreja saiu vitoriosa, tal como João Paulo II esperava desde o princípio.”

 

 

4. JOÃO PAULO II E FÁTIMA

 

Falar de Nossa Senhora, na Polónia, era falar da Virgem Negra de Jasna Góra, à qual os polacos tinham uma devoção incondicional, deslocando-se frequentemente ao seu santuário de Czestochowa. Quando se pensava no perfil mariano do pontificado de João Paulo II era normal pensar-se na sua ligação com a devoção a Nossa Senhora de Jasna Góra que, de algum modo fazia parte da identidade nacional, e dificilmente se pensaria em qualquer ligação com Fátima. No entanto, vai ser a mensagem de Fátima a que melhor explica os acontecimentos do seu pontificado e a sua própria vida.

Já em 1946 os bispos polacos consagram a sua pátria ao Coração Imaculado de Maria, a exemplo do que se fizera em Portugal, como resposta ao pedido da Irmã Lúcia endereçado ao Papa Pio XII, a 2 de Dezembro de 1940: “Santo Padre... o Senhor prometeu proteger Portugal de modo particular durante esta guerra, uma vez que os bispos portugueses confiaram toda a nação ao Coração Imaculado de Maria. Esta promessa de Nosso Senhor é a garantia das graças que serão concedidas às outras nações se, a exemplo de Portugal, se lhe confiarem”.

Os atos de consagração da Polónia ao Coração Imaculado de Maria tiveram lugar em Jasna Góra, em 1946, 1956 e 1966, com a presença de multidões, o que estabeleceu a ligação lógica entre a vitória polaca e a Virgem de Jasna Góra. Fátima viria somente mais tarde a ser assumida como explicação dos acontecimentos antes ocorridos, pois estava num país distante e inacessível e, por outro lado, a Virgem Negra era inseparável da religiosidade popular do país.

O ano de 1981 constituiu um ponto de viragem fundamental e, de maneira não esperada, o Papa e a nação polaca voltaram os olhos para a Virgem Branca de Fátima e para a sua profecia, como forma de explicação de muitos acontecimentos. De facto, Wojtyla como Wyszynsky estavam convencidos de que era necessário transmitir à Igreja Universal a experiência polaca de consagração do mundo a Maria, Mãe da Igreja, como tinham feito em 1946 e repetido em 1956 (renovação da consagração feita três séculos antes pelo rei João II Casimir) e 1966 (renovação por ocasião do milénio do baptismo polaco). Esse seria o meio de salvar o mundo do castigo iminente e de todos os perigos que sobre ele pendiam. Mas, também de forma inesperada, surge um elemento novo: o pedido de consagração do mundo e da Rússia ao Coração Imaculado de Maria, expresso na profecia de Fátima, substitui de algum modo a perspectiva polaca.

Seria de esperar que João Paulo II fizesse uma consagração da Igreja a Nossa Senhora enquanto Mãe da Igreja, que estaria prevista para 7 de Junho de 1981, em união com os bispos do mundo e, portanto, de forma colegial. Acabará por a não fazer em virtude do atentado de 13 de Maio do mesmo ano e virá a fazer a consagração do mundo ao Coração Imaculado de Maria, segundo o sentido da consagração feita pelo episcopado português e a consagração feita na Polónia em 1946, de acordo com o pedido da Irmã Lúcia.

O dia 13 de Maio de 1981 tornou-se uma data marcante da história da Igreja e da história do pontificado de João Paulo II. Às 17:15, no final da audiência geral, na Praça de S. Pedro, o papamóvel fazia o seu último trajeto pelo meio da multidão que aclama o Papa, quando a mão treinada do turco Ali Agca, empunhando uma browning de calibre 9mm, dispara sobre o Papa, que cai nos braços do seu secretário e fica às portas da morte. Tudo tinha sido rigorosamente preparado e nada fazia supor que o Papa pudesse escapar aos tiros da arma de fogo.

Ali se iniciou um novo momento na história do século XX e uma redescoberta da mensagem profética de Fátima. Aquele momento terá um grande significado na vida do Papa João Paulo II, ilumina com uma nova luz a realidade que o envolvia e de que ele ainda não tinha consciência. Ao olhar para a realidade a esta nova luz, acabaria por dizer que sabia muito pouco sobre Fátima. De tal modo essa mensagem entrou nele que veio a chamar-lhe a mensagem do século, por fazer apelo à conversão e à penitência do Evangelho. João Paulo II percebe que aquele trágico acontecimento pretende chamar-lhe a atenção para a mensagem de Nossa Senhora de Fátima e para o seu significado pessoal e universal.

Por outro lado, era impossível que o Papa não tivesse pelo menos algumas informações acerca de Fátima, uma vez que elas faziam parte do conhecimento comum e generalizado na sua terra: a existência do apostolado de Fátima; a peregrinação da imagem de Nossa Senhora de Fátima que começou em Zakopane, dentro da sua diocese de Cracóvia; o medo que os comunistas tinham da mensagem de Fátima, a ponto de estar proibida a reprodução das suas imagens e ser barrado o nome Fátima em todas as publicações, a questão da consagração da Rússia ao Coração Imaculado de Maria.

Depois de ler os documentos de Fátima, João Paulo II tomou consciência de que o atentado podia ser veículo de um sinal do céu e voltou-se definitivamente para a grande profecia do séc. XX. Por meados de Julho de 1981, em conversa com o seu amigo de Cracóvia, o professor Turowski, apercebe-se da coincidência das datas, 13 de Maio de 1917, 13 de Maio de 1981: a da primeira aparição de Nossa Senhora em Fátima e a do primeiro atentado contra um Papa no coração da Igreja, que é Vaticano e S. Pedro. Imediatamente pediu ao bispo eslovaco Hnilica, residente em Roma, os documentos relativos a Fátima, e ele levou-lhos.

Ao receber o texto original e a tradução da terceira parte do segredo de Fátima, terá lido, relido, rezado e meditado cada palavra. Mais tarde disse: “Durante esses três meses em que estive entre a vida e a morte, compreendi que a única possibilidade de salvar o mundo das guerras e das catástrofes, inclusivamente do ateísmo, é a conversão da Rússia, de acordo com a Mensagem e Fátima”.

O Papa passou a ler a mensagem de Fátima como se ela se lhe dirigisse pessoalmente. A partir daí o seu discurso mariano assume um tom particular e ela passa a falar do Coração Imaculado de Maria e das graças que por meio d’Ele Deus nos concede. Em 1982, chega mesmo a escrever: “Na vida e na morte, Totus Tuus, pela Imaculada”, fórmula que relembra as expressões de S. Maximiliano Maria Kolbe e remete diretamente para Nossa Senhora de Fátima.

O atentado passa a ser visto como um sinal que o orienta para a mensagem de Fátima, como ele diz no seu livro Varcare la soglia della speranza: “Foi talvez para isto que o Papa foi chamado de um país distante, foi talvez por isso que o atentado da Praça de S. Pedro tinha de ter lugar precisamente no dia 13 de Maio de 1981, a fim de que tudo se tornasse mais claro e mais compreensível, para que a história de Deus falando através da história humana nos sinais dos tempos fosse mais facilmente audível”.

João Paulo II estava convencido que a salvação da humanidade passava por Fátima e, por isso, alimentava tão seguro essa devoção, a ponto de se poder dizer com o Cardeal Meisner, arcebispo de Colónia: “Nossa Senhora de Fátima é o mistério da vida do Santo Padre”.

 

 

5. A CONSAGRAÇÃO DO MUNDO

 

O papa toma consciência de que a sua vida foi salva por meio de uma mão invisível que guiou a trajetória da bala assassina, a mão de Maria, por uma simples razão: ele tinha uma missão a cumprir. Em primeiro lugar, ele tinha de cumprir o que os seus antecessores Pio XII e Paulo VI não puderam fazer – consagrar o mundo e a Rússia ao Coração Imaculado de Maria de modo colegial e universal.

A convicção do Papa é tão forte que começa por fazer a consagração no dia 13 de Maio de 1982, no final da peregrinação ao Santuário de Fátima, um ano após o atentado da Praça de S. Pedro. As palavras então pronunciadas empenham a totalidade da sua pessoa e a totalidade da Igreja para todos os tempos: “Diante de vós, Mãe de Cristo, diante do vosso Coração Imaculado, desejo eu, hoje, juntamente com toda a Igreja, unir-me com o nosso Redentor nesta consagração pelo mundo e pelos homens... A força desta consagração permanece por todos os tempos e abarca todos os homens, os povos e as nações... A esta consagração do nosso Redentor, mediante o serviço do sucessor de Pedro, une-se a Igreja, Corpo Místico de Cristo”.

Em 25 de Maio de 1984, no Ano Jubilar da Redenção, diante da imagem de Nossa Senhora do Rosário de Fátima, expressamente levada da Capelinha das Aparições para o Vaticano, João Paulo II repete o ato de entrega já feito em 13 de Maio de 1982. Diante de um mundo ameaçado pelo mal e incapaz de resistir por si mesmo, o Papa confia na intervenção de Maria para o salvar, tal como tinha confiado nela para salvar a sua vida no dia 13 de Maio de 1981. Agora o texto da consagração é mais explícito do que fora em 1981: “Há quarenta anos atrás, e depois ainda passados dez anos, o Vosso servo o Papa Pio XII, tendo diante dos olhos as dolorosas experiências da família humana, confiou e consagrou ao Vosso Coração Imaculado todo o mundo e especialmente os Povos que, pela situação em que se encontram, são particular objecto do Vosso amor e da Vossa solicitude”. E depois acrescenta: “Iluminai de modo especial os povos dos quais esperais a nossa consagração e a nossa entrega”.

Tocado pela mensagem de Fátima, João Paulo II sentiu-se empurrado a consagrar o mundo e a Rússia ao Coração Imaculado de Maria a partir do primeiro aniversário do atentado que funcionou como o sinal dado por Deus para que isso viesse a cumprir-se. Segundo as declarações da Irmã Lúcia, era necessário que o acto de consagração fosse feito de uma forma solene e em união com os bispos do mundo inteiro. João Paulo II tomou este pedido tanto a sério que não hesitou em fazê-lo no Vaticano, diante da Imagem de Nossa Senhora de Fátima e em união com os bispos do mundo inteiro. Segundo o testemunho do Cardeal Andrej Deskur, “todas as pessoas reunidas na Praça de S. Pedro tinham consciência de participar num acontecimento que tinha o poder de mudar o curso da história do mundo, de acordo com o que a Mãe de Deus tinha dito em Fátima”.

Para o Papa, o sinal mais visível do triunfo do Coração Imaculado de Maria ao qual consagrara o mundo e a Rússia, foram as mudanças rápidas que se operaram no bloco de Leste e o desmantelar das hostilidades que podiam da “guerra fria” que ameaçavam com uma guerra nuclear de proporções catastróficas. Tudo começou com a chegada ao poder de Michail Gorbatchov, em 1985, e teve continuidade no processo seguinte, que culminou com a queda do Muro de Berlim, em 1989, sem derramamento de sangue.

João Paulo II volta frequentemente a este tema e a reconhecer a força da consagração já feita e o papel de Nossa Senhora na sua vida, na vida da Igreja e do mundo. Na Carta Apostólica Tertio Millenio Adveniente, sobre a Preparação para o Jubileu do Ano 2000, diz: “Torna-se difícil não assinalar que o Ano Mariano antecedeu de perto os acontecimentos de 1989. São fenómenos que não podem deixar de surpreender pela sua vastidão e, especialmente, pela sua rápida evolução. Os anos oitenta foram-se sobrecarregando de um perigo crescente no contexto da «guerra fria»; ora, o ano de 1989 trouxe consigo uma solução pacífica, que teve quase a forma de um desenvolvimento «orgânico»... De resto, era possível vislumbrar como, na trama de tudo o sucedido, estava em ação a mão invisível da Providência, com cuidado maternal: «esquece-se porventura uma mulher do seu menino?» (Is 49, 15).

 

6. JOÃO PAULO II E O TERCEIRO SEGREDO DE FÁTIMA

 

A publicação da terceira parte do segredo de Fátima, em 13 de Maio de 2000, veio trazer nova luz acerca da relação existente entre João Paulo II e Fátima, e como que fecha o círculo interpretativo do seu pontificado.

À luz dos acontecimentos trágicos de 13 de Maio de 1981 era difícil não estabelecer uma relação direta entre o Papa e Fátima. A linguagem profética e apocalíptica do “segredo” aplica-se muito facilmente ao sofrimento e perseguição da Igreja no século do martírio, Igreja à frente da qual está o Papa João Paulo II: “E vimos numa luz imensa, que é Deus: «algo semelhante a como se vêm as pessoas num espelho quando lhe passam por diante» um Bispo vestido de branco «tivemos o pressentimento de que era o Santo Padre». Vários outros Bispos, Sacerdotes, religiosos e religiosas subir uma escabrosa montanha, no cimo da qual estava uma grande cruz de troncos toscos como se fora de sobreiro com a casca; o Santo Padre, antes de chegar aí atravessou uma grande cidade meia em ruínas, e meio trémulo, com andar vacilante, acabrunhado de dor e pena, ia orando pelas almas dos cadáveres que encontrava pelo caminho; chegado ao cimo do monte prostrado de joelhos aos pés da grande cruz foi morto por um grupo de soldados que lhe dispararam vários tiros e setas”.

A Irmã Lúcia, no encontro com o Cardeal Tarcisio Bertone, Secretário da Congregação para a Doutrina da Fé, em 27 de Abril de 2000, “reafirma a sua convicção de que a visão de F o Papa,﷽﷽ lhe perguntam se a personagem principal da vis Secret 1arm vlmas dos cad a no cimo da qual estava uma grande cruz de átima se refere sobretudo à luta do comunismo ateu contra a Igreja e os cristãos, e descreve o imane sofrimento das vítimas da fé do séc. XX”. Neste contexto, a figura de João Paulo II, o Papa vindo do Leste Europeu é incontornável. A mesma Irmã Lúcia quando lhe perguntam se a personagem principal da visão é o Papa, responde que sim e recorda as palavras da Jacinta, que dizia “Coitadinho do Santo Padre!”. Depois, quanto à figura do Bispo vestido de branco, que é ferido de morte e cai por terra, reafirma as palavras de João Paulo II: “Foi uma mão materna que guiou a trajetória da bala e o Santo Padre agonizante deteve-se no limiar da morte”.

O Próprio Cardeal Angelo Sodano, Secretário de Estado do Vaticano, ao anunciar a publicação do Segredo de Fátima, no dia 13 de Maio de 2000, declara: “Segundo a interpretação dos pastorinhos, interpretação confirmada ainda recentemente pela Irmã Lúcia, o “Bispo vestido de branco” que reza por todos os fiéis é o Papa. Também ele, caminhando penosamente para a cruz por entre os cadáveres dos martirizados (bispos, sacerdotes, religiosos, religiosas e várias pessoas seculares), cai por terra como morto sob os tiros de uma arma de fogo. Depois do atentado de 13 de Maio de 1981, pareceu claramente a Sua Santidade que foi uma mão materna a guiar a trajectória da bala, permitindo que o Papa agonizante se detivesse no limiar da morte.”

O sinal visível dessa ligação estreita, percebida pela Irmã Lúcia e por João Paulo II, é a bala que agora se encontra na coroa preciosa da imagem de Nossa Senhora, na Capelinha das Aparições, e que foi oferecida pelo próprio Papa ao bispo de Leiria.

João Paulo II tomou a sério a mensagem de Fátima, de tal modo que pôde afirmar numa das suas três peregrinações: “Estou andando também eu em direcção a esse lugar bendito para escutar mais uma vez em nome da Igreja inteira o pedido que foi feito pela nossa Mãe, preocupada com os seus filhos”.

Não tem precedentes na história da Igreja o tratamento que foi dado a esta revelação particular, a ponto de empenhar diretamente o Sumo Pontífice, a Secretaria de Estado do Vaticano, a Congregação para a Doutrina da Fé.

Ao sentir e declarar que a mensagem de Fátima é para toda a Igreja, João Paulo II foi verdadeiramente o Papa de Fátima, como provam as suas palavras: “O apelo feito por Maria, nossa Mãe, em Fátima, faz que toda a Igreja se sinta obrigada a responder aos pedidos de Nossa Senhora”. Para alguns comentadores, a Igreja nunca aplicou estas palavras ou outras semelhantes a qualquer revelação privada, mas sempre foi muito cautelosa na distinção entre revelação pública e privada. Apesar dessa distinção permanecer, tal como afirma o Cardeal Ratzinger no texto interpretativo da terceira parte do segredo publicado pela Congregação para a Doutrina da Fé, o facto é que a mais alta hierarquia da Igreja Católica se ocupa do assunto e a revelação do texto é feita na presença do próprio Papa.

 

 

CONCLUSÃO

 

Embora se possam referir muitos acontecimentos que ajudam a explicar a ligação estreita entre a profecia de Fátima e a figura do papa João Paulo II, ela continuará a ser um grande mistério, por pertencer aos planos de Deus, cujo alcance é bem maior do que o que deles possamos conhecer.

Resta concluir que, na sua providência sem limites, Deus preparou o seu servo João Paulo II num país distante para, na oferta total de si mesmo a Maria, Totus Tuus, protagonizar uma grande história de mudança do rumo da humanidade, que se encontrava à beira da perdição. Se foi uma mão materna que desviou o rumo da bala que se dirigia a João Paulo II, foi a mesma mão materna que desviou o curso de uma história de perseguição, martírio e perdição. Essa foi a mão de Maria, que em Fátima se apresentou como mensageira da graça e da misericórdia de Deus.

 

Coimbra, 22 de Outubro de 2011

Virgílio do Nascimento Antunes

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