1. INTRODUÇÃO
Permitam que inicie esta comunicação com uma referência de caráter pessoal, aliás o único título que considerei válido no momento de aceitar o convite que me foi dirigido para falar na celebração das bodas de prata da ordenação episcopal de D. Manuel Pelino, o bispo de Santarém e o vosso bispo.
Conheci o P. Manuel Pelino quando, em 1978, cheguei a Coimbra para os estudos teológicos e fui habitar na residência do Seminário Maior de Leiria, situada na área da paróquia de S. José, onde ele residia e colaborava. A grande amizade que partilhava com o P. Rogério Pedro de Oliveira, diretor da nossa residência, fez dele uma visita assídua. Voltávamos a encontrar-nos frequentemente no âmbito da catequese paroquial e diocesana, pois ele assumia nessa altura a direção diocesana e eu, jovem seminarista e catequista, vivia o entusiasmo da progressão dos novos métodos catequéticos, em parte provindos de fora, mas a fazer um caminho próprio entre nós.
Podia perceber-se nessa altura o desabrochar de um grande dinamismo evangelizador protagonizado por um bom punhado de teólogos, pastoralistas e catequetas portugueses formados em várias escolas europeias, que constituíam um grupo de trabalho que integrava D. Manuel Pelino entre os seus membros mais dinâmicos.
Primeiro ouvi falar do caráter pioneiro da sua reflexão e depois conheci-o no âmbito das aulas, onde, metodicamente e com minúcia, nos oferecia, ponto por ponto, os fundamentos e as linhas orientadoras da prática pastoral.
2. MARCAS DE UM SENTIR ECLESIAL
As circunstâncias em que crescemos e vivemos marcam muito daquilo que somos, das convicções que temos e daquilo que fazemos. Não significa que não haja margem para o trabalho pessoal de construção de si mesmo, na liberdade ena responsabilidade. Há quem diga que mais do que fugir das circunstâncias em que a vida nos põe, o importante é saber tirar delas as possibilidades de crescimento.
Também a vida de um bispo, as suas linhas de força na ação pastoral e o seu modo de viver a fé e entender o papel da Igreja no mundo têm muito a ver com as circunstâncias em que se formou e amadureceu espiritual, humana e intelectualmente.
Pretendo com isto justificar a opção de começar esta reflexão por referir algumas das marcas que me parecem indeléveis na pessoa de D. Manuel Pelino e que têm norteado toda a sua vida de padre, de bispo e, portanto de pastor da Igreja. Recorro à memória já bastante esfumada das aulas de Teologia Pastoral e a um ténue acompanhamento que pude ir fazendo do seu percurso para procurar perceber quais as linhas de fundo das suas convicções e quais as fontes onde as foi beber. Como se trata de um exercício de reflexão a partir de alguns indicadores que não são mais do que uma leitura pessoal, pode ser que não coincidam em nada com a realidade. Trata-se, no entanto, da minha interpretação, que agora vos proponho, deixando a cada um e sobretudo ao Senhor D. Manuel a tarefa de julgar sobre a sua pertinência.
O Concílio Vaticano II, acompanhado passo a passo no seu desenrolar e, finalmente, estudado e integrado na vivência quotidiana da Igreja, provocou um entusiasmo avassalador nas gerações do tempo e, com toda a certeza, em D. Manuel Pelino. Ninguém podia ficar indiferente à catadupa de novidades que surgiam diariamente durante a sua realização, nem às perspetivas e orientações que se procuravam compreender e aprofundar, para depois se aplicarem. Era difícil perceber-se o alcance de tudo o que saía, sobretudo porque em alguns meios mais fechados e em algumas escolas de teologia não havia grande abertura à novidade que, agora, eclodia todos os dias. Concordando-se ou não, pelo menos entendia-se que se tratava de outro modo de ser e de estar, de outra atitude da Igreja e dos seus membros, de outra participação e de outro empenho, carregados de horizontes e de futuro para uma Igreja que sentia ter muito para dar, mas tinha de aprender a dar numa linguagem própria para o tempo presente.
Aparentemente o documento do Concílio que provocou maiores mudanças foi a Sacrossantum Concilium, sobre a Sagrada Liturgia, por ser portador de novidades visíveis ao nível da celebração da Missa com o altar voltado para a assembleia e o uso das línguas vernáculas. De facto, as outras Constituições e Decretos operaram uma autêntica revolução relativamente ao modo como a Igreja se vê na realização da sua missão e na sua relação com o mundo, que não foram imediatamente perceptíveis ao grande público. Temas como a Igreja no mundo contemporâneo, o ecumenismo e o diálogo inter-religioso, a liberdade religiosa, a revelação divina e o lugar da Sagrada Escritura na vida dos fiéis, bem como muitos outros, tinham agora um tratamento diferente e mais adequado à compreensão e ao diálogo com um mundo notoriamente diferente e em acelerado processo de mudança.
Talvez o maior sinal e a maior afirmação desse novo modo de a Igreja se situar na relação com o mundo esteja no início da Constituição Pastoral Gaudium et Spes, sobre a Igreja no Mundo Contemporâneo, quando assume a sua comunhão com toda a humanidade, quando se aproxima dos homens, se declara aberta para estabelecer com eles uma relação de partilha e declara não estar numa atitude de desconfiança ou oposição, mas de acolhimento de tudo o que é verdadeiramente humano. Vale a pena recordar o texto, por aquilo que significa de mudança de paradigma, linguagem e atitude: “As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos aqueles que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo; e não há realidade alguma verdadeiramente humana que não encontre eco no seu coração. Porque a sua comunidade é formada por homens, que, reunidos em Cristo, são guiados pelo Espírito Santo na sua peregrinação em demanda do reino do Pai, e receberam a mensagem da salvação para a comunicar a todos. Por este motivo, a Igreja sente-se real e intimamente ligada ao género humano e à sua história” (GS 1).
O espírito do Concílio Vaticano II forjou algumas gerações de pastores imbuídos do desejo de mudança, pois tinham conhecido o rosto de uma Igreja que parecia cada vez mais distante da realidade, de algum modo parada no tempo, que não estava a acompanhar o ritmo da evolução e, por isso, sentia muita dificuldade de dialogar com o mundo numa linguagem acessível. Os mesmos pastores viviam a ânsia incontida de ver as comunidades cristãs a assumirem a responsabilidade da sua vida e crescimento na pessoa de todos os seus membros, concretamente, de ver os leigos juntamente com os sacerdotes e religiosos a participar de pleno direito na vida e missão da Igreja, apresentada pela Lumen Gentium como Povo de Deus.
Apesar de se dizer frequentemente que a recepção do Concílio ainda está em parte por fazer, temos de reconhecer que, por outro lado, a Igreja que agora somos, no seu modo de estar e na sua atitude, tanto a nível interno como na relação com o mundo, é, a muitos títulos diferente da Igreja pré-conciliar.
Na década de 70 do século passado, quando D. Manuel Pelino era professor de Teologia Pastoral, Diretor do Secretariado de Evangelização e Catequese e Diretor do Secretariado da Ação Pastoral, vivia-se na Igreja em Portugal uma quase euforia da descoberta dos novos dinamismos da evangelização e dos novos métodos catequéticos. O forte impulso era em parte fruto da situação de mudança em que nos encontrávamos ao nível da consciência cristã e encontrou grande eco na Exortação Apostólica do Papa Paulo VI, sobre a Evangelização no Mundo Contemporâneo, Evangelii Nuntiandi, publicada no dia 8 de dezembro de 1975.
Na celebração do 10º aniversário do encerramento do Concílio Vaticano II e um ano após a realização do terceira Assembleia Geral do Sínodo dos Bispos dedicado à evangelização, Paulo VI diz: “As condições da sociedade (…) obrigam-nos a todos a rever os métodos, a procurar, por todos os meios ao alcance, e a estudar o modo de fazer chegar ao homem moderno a mensagem cristã, na qual somente ele poderá encontrar a resposta às suas interrogações e a força para a sua aplicação de solidariedade humana. (…) Para dar uma resposta válida às exigências do Concílio que nos interpelam, é absolutamente indispensável colocar-nos bem diante dos olhos um património de fé que a Igreja tem o dever de preservar na sua pureza intangível, ao mesmo tempo que o dever também de o apresentar aos homens do nosso tempo, tanto quanto isso é possível, de uma maneira compreensível e persuasiva” (EN 3).
O documento pós-sinodal e os dinamismos que reuniu e desenvolveu foram de tal modo marcantes que, ainda hoje, volvidas quase quatro décadas e depois de milhares de páginas escritas sobre o assunto, temos de voltar a ele, dada a sua novidade e a sua quase perenidade. A atitude evangelizadora de D. Manuel Pelino deve muito à Evangelii Nuntiandi; e a Igreja em Portugal deve igualmente muito a D. Manuel Pelino e a todos os que se deixaram envolver pela sua novidade.
Outro texto que marcou muito aquele período, influenciou o trabalho que se realizava e entusiasmou D. Manuel Pelino foi o chamado Documento de Puebla, o texto conclusivo da III Assembleia Geral do Episcopado Latino Americano, realizada em Puebla, no México, em 1979, sobre “O Presente e o Futuro da Evangelização na América Latina”. Convocada pelo Papa Paulo VI, a assembleia deveria realizar-se ainda no seu Pontificado e tendo como texto base a Evangelii Nuntiandi, para procurar responder a uma importante série de questões: o que é evangelizar, o conteúdo da evangelização, os destinatários da evangelização, os seus agentes e o espírito que deve presidir-lhe.
Devido ao falecimento de Paulo VI e ao breve pontificado de João Paulo I, a referida Assembleia Geral teve lugar já durante o pontificado de João Paulo II e pôde contar com a sua presença na sessão inaugural, naquela que foi a sua primeira visita à América Latina. O seu discurso, que entusiasmou o mundo, centrou-se no convite aos participantes para serem mestres da verdade sobre Jesus Cristo, sobre a missão da Igreja e sobre o homem, recentrando assim no essencial da mensagem cristã.
Embora se tratasse da evangelização no contexto da América Latina, o Documento oferecia algumas importantes intuições que tinham aplicação em toda a Igreja e outras que estimulavam a reflexão entre nós. Afinal tornava-se cada vez mais clara a ideia de que o tempo presente exigia uma ação evangelizadora que outrora parecia desnecessária por se tomar a fé e a pertença à Igreja como um dado adquirido, pelo menos no velho mundo ocidental e cristão.
A Exortação Apostólica Catechesi Tradendae, de João Paulo II, foi outro documento que influenciou D. Manuel Pelino, por ter feito especialização nessas áreas, por estar diretamente envolvido nesse sector da vida da Igreja e por ser uma causa bem entranhada no seu coração. Com este Documento Pontifício, fruto do trabalho da IV Assembleia Geral do Sínodo dos Bispos, realizada em 1977, completava-se a reflexão acerca do binómio evangelização e catequese, iniciada com a Evangelii Nuntiandi.
Neste contexto, quando surgiu a nomeação de D. Manuel Pelino a escolha do seu lema episcopal terá surgido imediatamente, com toda a naturalidade e evidência: “O Senhor enviou-Me a anunciar a Boa Nova”. Tratava-se do seu modo de sentir a Igreja, no seguimento do mandato de Jesus Cristo aos seus discípulos, e do seu modo de estar na Igreja enquanto enviado a anunciar a Boa Nova da Salvação, por meio da evangelização e da catequese, tratava-se ainda de seguir o Senhor que o chamou no meio da sua atividade quotidiana de presbítero e de continuar a segui-l’O agora na nova condição de bispo e sucessor dos Apóstolos: a mesma pessoa, a mesma atitude, o mesmo sentido de missão em circunstâncias diversas.
Como muitos outros cristãos da sua geração, D. Manuel Pelino conheceu duas diferentes fases da vida da Igreja: a de uma verdadeira cristandade, particularmente nos meios rurais predominantes no país até à década de setenta, e a de um desmoronar a ritmo acelerado dessa realidade, que vem a dar lugar a uma Igreja menos influente, menos praticante e cada vez menos marcada pela entusiasmo do passado. Conhece também uma sociedade menos marcada pelo ritmo cristão e pela fé tanto teórica como prática.
Viver num período com um conjunto de características bem marcadas, acompanhar o período de mudança acentuada e poder viver no período seguinte, trouxe alguma intranquilidade, mas, acima de tudo, possibilitou-lhe conhecer os limites do trabalho catequético que se estava a fazer na Igreja e estimulou a investir muito na procura e implementação de novos métodos. A própria ideia de nova evangelização suscitada pelo Papa João Paulo II, à qual deu continuidade o Papa Bento XVI, se situa neste reconhecimento da falência de alguns meios, formas e métodos evangelizadores e na necessidade de trabalhar com base em novos métodos e sobretudo com um novo ardor no anuncio do Cristo que é de ontem, de hoje e de sempre.
Não admira, por isso, que as pessoas que na Igreja fizeram este trajeto, percebam melhor o sentido da expressão nova evangelização. Por outro lado, tendo conhecido uma Igreja de massas e influente na sociedade, sentem a dificuldade de encarar uma Igreja minoritária e sem influência no mundo moderno. Reconhecem a urgência de uma evangelização que seja efetivamente nova e que se afirme pela capacidade de provocar o encontro pessoal com Cristo, único caminho para se assumir e viver a fé cristã nas adversas circunstâncias da atualidade.
Pelo que temos podido acompanhar do pensamento, escritos e ação de D. Manuel Pelino, continuamos a vê-lo como um apaixonado da evangelização e da catequese, como meios de encontro com Cristo, o Salvador e resposta para as grandes inquietações humanas.
3. A MISSÃO DO BISPO NA IGREJA LOCAL: AS NOVIDADES DO CONCÍLIO
3.1. A REVOLUÇÃO ECLESIOLÓGICA DA LUMEN GENTIUM
A Constituição Dogmática sobre a Igreja, Lumen Gentium, trata no capítulo III da Constituição Hierárquica da Igreja e em especial do Episcopado. No nº 21 apresenta de modo sucinto as funções próprias do bispo, dizendo: “A consagração episcopal, juntamente com o poder de santificar, confere também os poderes de ensinar e governar”.
Apesar de a palavra poder comparecer raramente na Lumen Gentium, e de dever ser entendido no sentido de serviço, o episcopado ainda é visto entre nós como uma forma de poder, mesmo que sagrado, e facilmente ligado ao múnus de governar, termo que tem inevitavelmente uma conotação de caráter temporal.
Entre o comum dos fiéis, o bispo continua a ser alguém investido de autoridade, que está à frente de uma diocese e a orienta e governa com o poder que lhe foi conferido pela Igreja, ou seja, pelo Papa. As outras dimensões ficam frequentemente na sombra por tanto se pretender afirmar a honra e a dignidade do episcopado, fruto de um passado em que o seu poder foi efetivo e em que as tarefas de governo se sobrepunham ao ministério da santificação e do ensino.
Mesmo quando se refere a relação do bispo com o presbitério, frequentemente se acentua a dimensão funcional em detrimento da teológica, a dimensão institucional em detrimento da carismática. Uma certa eclesiologia igualitarista acaba por ver no episcopado a realização de uma função e de um cargo, ou simplesmente a investidura em ordem à realização de uma missão, desprovendo-o em parte das referências à sua sacramentalidade. Segundo uma outra eclesiologia de caráter mais elitista e hierarquizante, o episcopado é entendido como uma realidade que se situa num nível muito acima do nível dos “simples” fiéis cristãos e constitui quase um mundo à parte, o mundo da hierarquia separado do mundo do comum dos fiéis.
A eclesiologia que está subjacente à Lumen gentium leva a um novo enquadramento do bispo na Igreja local e universal, que ajuda a superar as visões parciais e dicotómicas ainda vigentes em muitos meios eclesiais.
A estrutura da Lumen gentium é portadora de uma autêntica revolução no modo de a Igreja se entender a si mesma, que tem consequências a vários níveis, entre eles o do lugar da hierarquia dentro da mesma Igreja.
No primeiro capítulo trata do Mistério da Igreja, centrando-a em Cristo, luz dos povos, para dizer que ela “é como que o sacramento, ou sinal, e o instrumento da íntima união com Deus e da unidade de todo o género humano” (LG 1). Continua ao longo de todo este capítulo introdutório a afirmar a íntima ligação entre a Igreja e Cristo, pois ela é um corpo constituído por muitos membros de que Cristo é a cabeça.
A referência ao Batismo é fundamental neste contexto, pois, como diz no nº 7, “pelo batismo somos assimilados a Cristo (...) por este rito sagrado é representada e realizada a união com a morte e ressurreição de Cristo”. A segunda referência fundamental é à Eucaristia, pois como diz, “ao participar realmente do corpo do Senhor na fração do pão eucarístico, somos elevados à comunhão com Ele e entre nós” (LG 7).
O Capítulo II da Lumen gentium, intitulado “O Povo de Deus”, traduz talvez a perspetiva eclesiológica mais característica do Concílio Vaticano II. Afirma que “aprouve a Deus salvar e santificar os homens, não individualmente, excluída qualquer ligação entre eles, mas constituindo-os em povo que O conhecesse na verdade e o servisse santamente” (LG 9). Depois traça a identidade fundamental deste povo, dizendo: “É condição deste povo a dignidade e a liberdade dos filhos de Deus, em cujos corações o Espírito Santo habita como num templo” (LG 9).
Antes de qualquer elemento distintivo, há uma clara afirmação da condição de filhos de Deus que assiste a todos os membros do povo de Deus. Introduz-se depois a noção de sacerdócio comum dos fiéis, nascido no batismo, que confere a todos a mesma dignidade: “os batizados, pela regeneração e pela unção do Espírito Santo, são consagrados para serem uma casa espiritual, sacerdócio santo, para que, por meio de todas as obras próprias do cristão, ofereçam oblações espirituais e anunciem os louvores daquele das trevas os chamou à sua luz admirável” (LG 10).
A seguir, o Concílio não deixa de referir a diferenciação, “essencialmente e não apenas em grau” (LG 10), entre o sacerdócio comum dos fiéis e o sacerdócio ministerial, afirmando que se “ordenam mutuamente um ao outro, pois um e outro participam, a seu modo, do único sacerdócio de Cristo” (LG 10).
Finalmente, o Concílio refere-se explicitamente ao lugar que ocupa a hierarquia dentro do Povo de Deus, ao dizer: “aqueles de entre os fiéis que são assinalados com a sagrada Ordem, ficam constituídos em nome de Cristo para apascentar a Igreja com a palavra e a graça de Deus” (LG 11).
Somente no Capítulo III a Lumen gentium trata “A Constituição Hierárquica da Igreja e em Especial do Episcopado”, enquadrando-os devidamente na perspetiva ministerial do serviço em ordem à salvação de todo o Povo de Deus, como se lê no nº 18: “Cristo, Nosso Senhor, para apascentar e aumentar continuamente o Povo de Deus, instituiu na Igreja diversos ministérios, para bem de todo o corpo. Com efeito, os ministros que têm o poder sagrado, servem os seus irmãos para que todos os que pertencem ao Povo de Deus, e por isso possuem a verdadeira dignidade cristã, alcancem a salvação”.
3.2. O BISPO NO MISTÉRIO DE CRISTO
Em vez de tomar como linha de exposição a abordagem do clássico tríplice múnus de ensinar, santificar e governar que assiste aos bispos, retomemos o Capítulo I do “Diretório para o Ministério Pastoral dos Bispos” que define a identidade e a missão do bispo a partir do mistério de Cristo e do mistério da Igreja. Esta perspetiva decorrente das linhas traçadas pelo Concílio Vaticano II, permite-nos regressar às fontes originárias no momento de caracterizarmos a missão do bispo na Igreja Local e ainda falar mais de pessoas do que das suas funções, cargos ou ministérios na Igreja, se bem que tudo isso está incluído.
O bispo não subsiste fora do mistério de Cristo que o envolve, do qual recebe tudo aquilo que é, no qual se compreende a sua identidade mais profunda e do qual nasce a sua missão. Todo o cristão se define por permanecer em Cristo, pois foi incorporado nele pelo Baptismo e alimenta-se dele na Eucaristia. Entre eles, o bispo, agora enriquecido com o dom da consagração e o carisma próprio que o faz participante do ministério dos Apóstolos.
Em primeiro lugar, temos de voltar ao texto evangélico que nos apresenta Jesus junto ao Mar da Galileia a chamar aqueles que quis para andarem com Ele e se tornarem testemunhas da Sua morte e ressurreição. Tanto a vocação como a missão nascem de um encontro pessoal e de uma comunhão íntima, que compromete cada um dos doze e todos eles com o Mestre, que tem palavras de vida e eterna (Jo 6, 68).
A distância temporal, a longa história da Igreja, o processo de escolha e eleição dos bispos de hoje, parecem afastar-nos dessa relação pessoal e íntima com Cristo que é a característica primeira e principal de todas as vocações e da vocação para o ministério ordenado. O Evangelho de Marcos faz-nos recuar a esse chamamento, eleição e escolha que perdura ao longo de todos os tempos e está por detrás de todos os processos históricos adoptados: “Jesus subiu depois a um monte, chamou os que Ele queria e foram ter com Ele. Estabeleceu doze para estarem com Ele e para os enviar a pregar, com o poder de expulsar demónios” (Mc 3, 13-15). Apresenta depois a lista dos doze Apóstolos de que os bispos são sucessores, tal como sempre afirmou e defendeu a tradição da Igreja.
Ao impor-lhes as mãos e soprar sobre eles, Jesus conferiu-lhes o dom do Espírito Santo. Foram enviados a anunciar o que viram e ouviram, ou seja, a serem testemunhas da Boa Nova da Salvação, mantendo essa comunhão estreita entre si e alicerçada nos laços do Espírito enviado pelo Pai e pelo Filho.
Não podemos falar hoje do bispo enquanto sucessor dos Apóstolos sem voltar a estes laços que os unem a Cristo e determinam a sua identidade na relação com Cristo e a sua missão em nome do mesmo Cristo. Neste sentido se entende a declaração da Lumen Gentium, 21: “Na pessoa dos bispos, assistidos pelos presbíteros, está presente no meio dos fiéis o Senhor Jesus Cristo”.
De tal modo este mistério é envolvente e provoca uma identificação entre Cristo e o Bispo, que o Concílio afirma: “quem os ouve, ouve a Cristo; quem os despreza, despreza a Cristo e Aquele que enviou Cristo” (LG 20).
3.3. O BISPO NO MISTÉRIO DA IGREJA
O bispo não subsiste fora do mistério da Igreja, Corpo místico de Cristo do qual é a cabeça, e Povo de Deus, “que recolhe em si todos os filhos de Deus, tanto pastores como fiéis, unidos intimamente pelo mesmo batismo” (DMPB 3).
Temos de ir de novo ao Evangelho, segundo o qual “o nosso Salvador entregou esta sua Igreja, una e única, a Pedro e aos outros Apóstolos para que a apascentassem, confiando-lhes a difusão e o governo e constituindo-a para sempre coluna e suporte da verdade” (DMPB 3).
“Apascenta as minhas ovelhas” (Jo 21, 17) disse o Senhor a Pedro; “ide, pois, fazei discípulos de todos os povos, batizando-os em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, ensinando-os a cumprir tudo quanto vos tenho mandado” (Mt 28, 19-20), disse aos Apóstolos, confirmando-os no mandato eclesial.
Por meio da alegoria do Bom Pastor (Cf Jo 10, 11-19), Jesus revela a sua missão em favor da humanidade e, ao mesmo tempo a missão daqueles que mais diretamente associa a si, os Apóstolos e os seus sucessores, os bispos. Trata-se de reunir todo o rebanho no único redil, congregá-lo sob a condução de um só pastor. Para isso ofereceu a sua vida e para dar continuidade a esse processo, no tempo da Igreja, agregou a si os Doze, a fim de que não se perca nenhum dos que o Pai lhe deu (Cf Jo 6, 39).
Finalmente, a missão dos Apóstolos e dos bispos, seus sucessores, está intimamente unida à missão de Cristo e da sua Igreja: a salvação do género humano, enquanto realização da única vontade do Pai: “que todo aquele que vê o Filho e nele crê tenha a vida eterna” (Jo 6, 40).
Neste sentido a pessoa e missão do bispo inserem-se no dinamismo trinitário sempre presente na Igreja, Sacramento de Salvação: por vontade amorosa do Pai, o Filho veio ao mundo, deu a sua vida, está presente no meio dos homens e continua a sua missão pela ação do Espírito Santo derramado sobre os fiéis.
O bispo é, por isso, enquanto membro do colégio dos Doze, continuador da missão da Igreja, que é, por sua vez, sacramento da salvação realizada por Jesus Cristo. A sua razão de ser confunde-se com a da Igreja: é a salvação da humanidade pela qual Cristo entregou o seu corpo à morte e derramou o seu sangue na cruz.
A união a Cristo que se oferece ao Pai em favor dos homens e união aos Apóstolos mártires e testemunhas da fé determinam a vocação do bispo e seu o modo de estar na Igreja: com Cristo oferece-se ao Pai em favor do Povo que lhe foi confiado; com os Apóstolos testemunha a fé diante da Igreja e do mundo aos quais é enviado.
3.4. O BISPO NA IGREJA LOCAL
Unido a Cristo, Cabeça da Igreja, e enviado a servir a Igreja, Corpo de Cristo e Povo de Deus, o bispo tem definida a sua identidade, por um lado, e o seu ministério, por outro.
É a partir desta união a Cristo Cabeça da Igreja, nascida na consagração episcopal, que se entende a participação do bispo no ministério de ensinar, santificar e governar a Igreja Local em íntima comunhão com o Sucessor de Pedro, sinal da unidade da Igreja Universal.
À luz do Concílio Vaticano II, se queremos encontrar um primeiro elemento unificador de todo o ser e agir do bispo, temos de recorrer à sua condição de pastor, pois como refere a Lumen Gentium no nº 27, “a eles é confiado o encargo pastoral, isto é, o cuidado quotidiano e habitual das próprias ovelhas”. O próprio tríplice múnus de ensinar, santificar e governar constitui a expressão das variadas formas e meios de que dispõe o bispo para concretizar esse cuidado pastoral que lhe foi conferido pelo Senhor Jesus Cristo, único Pastor de todo o rebanho.
A definição de Diocese ou Igreja Local oferecida pelo Decreto Conciliar Christus Dominus centra-se precisamente nesse elemento aglutinador da realidade que é a porção do Povo de Deus confiado ao bispo: “Diocese é a porção do Povo de Deus, que se confia a um Bispo para que a apascente com a colaboração do presbitério, de tal modo que unida ao seu pastor e reunida por ele no Espírito Santo por meio do Evangelho e da Eucaristia, constitui uma Igreja particular, na qual está e opera a Igreja de Cristo, una, santa, católica e apostólica” CD 11).
Um segundo elemento unificador do ser e do agir do bispo é o serviço da comunhão, dentro da Igreja particular, com a Igreja universal e com Deus Santíssima Trindade. Como diz o Concílio, “os fiéis, unidos ao bispo, têm acesso a Deus Pai por meio do Filho, Verbo Encarnado, morto e glorificado, na efusão do Espírito Santo, e entram em comunhão com a Santíssima Trindade” (UR 15).
Reunida à volta da Eucaristia presidida pelo Bispo, verdadeiro sumo sacerdote com Cristo, a comunidade cristã edifica-se realmente como comunhão eclesial, que é comunhão de vida, de caridade e de verdade (LG 9) na ligação com Deus, geradora de uma nova relação entre os homens.
De facto, o bispo é o princípio visível da unidade da Igreja particular, à qual preside como verdadeiro e próprio pastor, e da comunhão entre os seus membros. Ao mesmo tempo, unido aos outros bispos e formando com eles o Colégio Episcopal em comunhão com o Sucessor de Pedro, é também sinal visível da unidade da Igreja universal.
Em terceiro lugar, o ministério do bispo orienta-se para a salvação da porção do Povo de Deus que lhe foi confiado e de todo o Povo de Deus, enquanto servo da Igreja Sacramento da Salvação. Por meio do anúncio da Boa Nova, da celebração da liturgia, do ensino e da caridade, trabalha para a santificação do seu povo, ou seja, para levar Cristo aos homens e os homens a Cristo, o único Salvador.
Enquanto portador dos dons e carismas do Espírito, põe-nos a render para proveito dos que lhe foram confiados; no exercício do ministério sagrado, age como servo à semelhança de Cristo que não veio para ser servido, mas para servir e dar sua vida pela multidão (cf Mt 20, 28).
Em último lugar, o colégio episcopal constitui a garantia da apostolicidade da Igreja Local, tal como foi querida e fundada por Cristo sobre o fundamento dos doze Apóstolos, assistidos pelo Espírito Santo. A comunhão com o bispo unido ao Sucessor de Pedro é, ao mesmo tempo, a garantia da eclesialidade da mesma Igreja Local, comunhão de muitas e variadas comunidades cristãs grandes ou pequenas, constituídas por pessoas diferentes umas das outras, pois, por meio dele estão unidas a Cristo e à sua Igreja, una, santa, católica e apostólica.
3.5. O BISPO E O SEU PRESBITÉRIO
Unidade na missão do bispo e dos presbíteros. O Concílio Vaticano II acentua a estreita ligação entre os bispos e os presbíteros, ao considerá-los cooperadores em ordem à realização de uma única missão – tornar Cristo presente na sua Igreja: “Na pessoa dos bispos, assistidos pelos presbíteros, está presente no meio dos fiéis o Senhor Jesus Cristo, pontífice máximo” (LG 21).
Unidos ao bispo constituem um presbitério. Em segundo lugar, o Concílio refere-se aos presbíteros como “esclarecidos cooperadores da ordem episcopal e a sua ajuda e instrumento”, que “constituem com o seu bispo, um presbitério com diversas funções” (LG 28). Depois enunciam-se as ditas funções: tornam de algum modo presente o bispo em cada uma das comunidades de fiéis; sob a autoridade do bispo, santificam e governam a porção do rebanho a sia confiada; tornam visível no lugar em que estão a Igreja Universal e prestam uma grande ajuda para a edificação do corpo de Cristo (Cf LG 28).
Fraternidade presbiteral. Pelo facto de terem recebido o mesmo sacramento as ordem, de estarem ligados pela mesma missão e unidos por laços estreitos ao bispo, os presbíteros constituem uma fraternidade que deve ter expressões concretas ao nível material, espiritual, pastoral e pessoal.
A teologia conciliar e o magistério posterior tem-nos ajudado a situar o bispo na relação com Cristo e com a Igreja, que tem a sua concretização local na relação com o presbitério e com todo o Povo de Deus em geral. A cooperação de que fala o Concílio tem muitas realizações que passam sempre pela comunhão humana e pela comunhão espiritual, que são sempre comunhão eclesial.
O múnus episcopal está, como sabemos, muito dependente do seu presbitério, dos seus imediatos colaboradores, da sua santidade, do seu espírito de comunhão, da sua fraternidade e da sua caridade. Não se entende o bispo sozinho, mas na relação de paternidade com os que estão unidos ao seu ministério de pastor e que, com ele e em seu nome servem a comunidade dos fiéis.
Todas as rupturas desta unidade e fraternidade atingem a Igreja e a sua missão e podem, em caso extremo de quebra da comunhão, pôr em causa tanto a apostolicidade como a eclesialidade.
4. CONCLUSÃO
Apesar de não ter sido convidado para fazer o elogio de D. Manuel Pelino e não ser esse o objetivo desta comunicação, devo reconhecer diante de vós que nutro por ele uma grande admiração desde o momento em que o conheci.
Humanamente vi sempre nele uma pessoa muito próxima de todos, com o coração do tamanho do mundo, para quem a amizade é uma marca e um valor que surgem com toda a naturalidade, que não é preciso construir nem alimentar – basta encontrar e conhecer para ficar tomado e rendido.
O seu amor à Igreja é incondicional. Vemo-lo sofrer com os seus problemas e ficar feliz com o seu peregrinar sereno sobre a terra. Conta-se por Coimbra que não esperava nem desejava ser bispo, quando a Igreja lhe pediu esta missão. Terá vivido um momento de alguma angústia interior e terá sentido a sua pequenez diante da grandeza da missão, até ouvir da voz de um amigo, também ele dotado de um imenso amor à Igreja, que quem quer trabalhar para construir a Igreja e ajudá-la a mudar tem de estar dentro dela e dar a sua vida por ela, onde quer que ela lhe peça para a dar. Diz-se que, humildemente, aceitou que a sua vida lhe fosse toda entregue, como sabemos que continua a acontecer.
Obrigado D. Manuel Pelino pelo seu testemunho, entendido no sentido etimológico do termo marturia, que tem ajudado a construir a Igreja e nos edifica a todos.
Virgílio do Nascimento Antunes
Bispo de Coimbra