1. A PURIFICAÇÃO DA FÉ
Neste episódio bíblico temos uma das páginas mais belas das Escrituras, uma página de teologia da fé "nua", que não tem outro apoio se não a Palavra de Deus. É uma fé que se afirma na obscuridade, que procura um sentido no sem-sentido e que somente se encontra com o mistério. Fé que é purificada numa caminhada de três dias entre o lugar em que Deus pede a Abraão o sacrifício do seu filho e o lugar onde chega e deve sacrificá-lo. É um caminho silencioso e terrível de enfrentar em tais circunstâncias e, por isso, a mais cruel das provas.
Semelhante à prova daquele caminho, somente a ordem directa de Deus: "Pega no teu filho, no teu único filho, a quem tanto amas, Isaac, e vai à região de Moriá, onde o oferecerás em holocausto, num dos montes que eu te indicar" (v 2). Neste contexto, sente-se um silêncio total: o silêncio de Deus, o silêncio de Abraão, e mesmo o silêncio de Isaac que, ingenuamente, somente o interrompe para criar um pequeno e terrível diálogo, ao perguntar: "Meu pai! (...)Levamos fogo e lenha, mas onde está a vítima para o holocausto?" (v 7); a resposta de Abraão surge enigmática: "Meu filho! (...)Deus proverá quanto à vítima para o holocausto, meu filho" (v 8). E, de novo, volta o silêncio de dois seres humanos, que caminham no meio de um deserto também ele silencioso.
A narração oferece-nos uma tensão forte, somente rasgada pelo grito de Deus que, no momento decisivo, rompe o seu silêncio para chamar, como no princípio: "Abraão, Abraão!" (v 11). De facto, somente Deus podia interromper Abraão no seguimento do seu caminho de obediência desesperada e de seguir a sua fé, em estado puro, sem mais nenhum apoio do que a Palavra do mesmo Deus. Segundo essa fé, Isaac devia morrer, pois Abraão devia inclusivamente renunciar à sua paternidade, para restar sem nenhum apoio da carne nem do sangue e acreditar exclusivamente na promessa da palavra divina. Depois da promessa de um filho e de uma descendência, Abraão aceita cortar totalmente com a sua condição de pai, para, finalmente, poder aceitar Isaac não já como filho, mas como "promessa divina", como graça.
2. A PROVA DA FÉ
Uma leitura crente deste texto centra-se na fé, incarnada de Abraão, paradigma da fé submetida a inúmeras provas, mas, finalmente, vencedora e libertadora.
Esta prova da fé ultrapassa os limites da dimensão humana, pondo em causa a própria promessa divina. Deste modo, Abraão, dispondo-se a sacrificar o seu filho, aceita Isaac como a promessa divina incarnada; Isaac não é mais o seu filho, nem o seu herdeiro, mas é a promessa de Deus, o dom de Deus. Para alcançar a promessa e o dom, Abraão teve de renunciar à sua paternidade e renunciar a tudo, tal como lhe tinha sido pedido no dia da sua vocação, quando Deus lhe disse: "Deixa a tua terra, a tua família e a casa de teu pai, e vai para a terra que eu te indicar" (v 1).
Passada a prova, Abraão pôde regressar a casa com o seu filho e mantendo a promessa, pois pela prova tinha ganho tudo. A obediência da fé exige muitas provas, mas, no final, dá a paz e revela que, por detrás do rosto aparentemente cruel de Deus está um rosto amoroso e um projecto glorioso de graça.
Deus põe o homem à prova e isso intriga-nos bastante. No entanto, tranquiliza-nos sempre a certeza de que Deus nunca quer o mal nem a morte do Homem.
Depois de deixar tudo por causa de Deus, Abraão sente-se num beco sem saída: deixa tudo por Deus e agora é Ele que lhe fecha completamente o futuro. Esperou tão ardentemente o nascimento do seu filho e agora o próprio Deus que lho deu, pede-lho em sacrifício. Não parece o mesmo Deus que o chamara e lhe fizera uma promessa.
Mais uma vez Abraão recebe a ordem de Deus: “vai”. Parte sem pedir razões ou explicações, mesmo que aquela ordem lhe pareça a negação de uma amizade antes vivida, ou algo pouco razoável, que o obriga inclusivamente a mudar a imagem que tem de Deus.
É surpreendente e mesmo comovente a expressão daquele homem, quando escuta a voz do mensageiro celeste. “Abraão, Abraão!” Não sabe o que se seguirá e, no entanto, não hesita: “Aqui estou!” É a resposta da fé de quem, sendo pai, se dispõe a renunciar a tudo o que é e a tudo o que tem, à sua paternidade, por um lado, e ao seu filho, por outro.
As suas palavras, “aqui estou”, resumem toda a sua espiritualidade. Ele aceita a iniciativa totalmente gratuita de Deus, que o elege, o chama, o abençoa e tem um desígnio sobre ele.
3. A GLORIFICAÇÃO DE DEUS
Além da prova e da fé, este episódio apresenta-nos a glorificação de Deus, pois o patriarca reconhece que o grande dom que recebeu no filho é a realização da paternidade humana e a realização da promessa de Deus. Aquele filho, que Abraão sentia como seu é também aquele ao qual deve renunciar para o sentir como pura graça divina.
Em todo este episódio não está em causa o elogio de uma pessoa, cuja fé é inabalável, mas sobretudo a revelação da figura de Deus, que é Alguém generoso, muito para além da capacidade humana de compreensão. De facto, Deus dá tudo a Abraão, não somente um filho, mas também a graça de ser a manifestação histórica da sua vontade salvífica universal.
Apesar de aos nossos olhos humanos a acção de Deus parecer sem sentido e absurda, os olhos da fé de Abraão puderam captar a Sua lógica de amor e o seu sentido benéfico e salvador.
Do mesmo modo, a morte de Jesus Cristo, escândalo para muitos, se revela como lógica e sábia no projecto de Deus, como fonte de salvação e de glória. Nos dias da paixão como no caminho para o monte Moriá é duro o sofrimento e áspera a prova; mas, no fim, tanto o Gólgota como o Moriá se tornam emblemáticos, pois Deus providenciará (v 14).
Para a Epístola aos Hebreus, o escândalo do sacrifício de Isaac é o mesmo escândalo do sacrifício de Jesus e a meta é também idêntica, a glória da promessa, projectada sobre a glória da ressurreição: "Pela fé, Abraão, quando foi posto à prova ofereceu Isaac, e estava preparado para oferecer o seu único filho, ele que tinha recebido as promessas e a quem tinha sido dito: Por meio de Isaac será assegurada a tua descendência. De facto, ele pensava que Deus tem até poder para ressuscitar os morto; por isso, numa espécie de prefiguração, recuperou o seu filho" (Heb 11, 17-19).
4. CONCLUSÃO
Com esta narração, o livro do Génesis pretende mostrar-nos o caminho de toda a vida de Abraão, que nasce de um chamamento, é alimentado pela fé e mantido pela bênção de Deus. Ele figura todo o género humano, que pode realizar na vida o mesmo trajecto, depois de Deus tomar a iniciativa do chamamento e da eleição. De algum modo, todo o homem é um Adão a quem é oferecida a possibilidade de se tornar um Abraão. De pecador pode passar a crente, de amaldiçoado pode passar a abençoado, de vagabundo e distante do paraíso que perdeu, pode iniciar de novo a peregrinação em direcção à terra prometida.
Ao longo dos séculos, Israel, na sua profissão de fé, recorda este momento da vida de Abraão como o princípio de toda a sua história de salvação: "Vossos pais, Tera, pai de Abraão e de Naor, habitavam ao princípio do outro lado do rio e serviam outros deuses. Tomei o vosso pai Abraão do outro lado do Jordão e conduzi-o à terra de Canaã" (Js 24, 2-3). Paulo, na sua leitura teológica do AT, diz: "os que dependem da fé é que são filhos de Abraão. E como a Escritura previu que é pela fé que Deus justifica os gentios, anunciou previamente como evangelho a Abraão: Serão abençoados em ti todos os povos. Assim, os que dependem da fé são abençoados como o crente Abraão" (Gl 3, 7-9).
Com Abraão caminham todos os crentes, abençoados, herdeiros da promessa de Deus, todos os que sabem escutar a sua voz e obedecer-lhe, os que aceitam o risco da fé, os que não acreditam somente em alguma coisa, mas em Alguém que os conhece, os chama pelo seu nome, os faz passar por muitas provas, mas não lhes falta com a graça e sempre lhes revela o seu rosto amoroso e salvador.
5. A FÉ DE ABRAÃO NA VIDA DO PADRE
Nesta atitude de Abraão, encontramos alguns elementos fundamentais para a compreensão da nossa vocação e algumas perspectivas para o nosso caminho de fé.
Sentimos muitas vezes presente na nossa vida esse mesmo silêncio de Deus que nos pede, que nos propõe, que nos exige. Silêncio tanto mais difícil de compreender quanto mais nos vemos num caminho que está envolto em mistério e cujo sentido não somos capazes de ter sempre consciente. As derrotas nos nossos próprios projectos, a insensibilidade dos outros diante daquilo que mais nos entusiasma interiormente, a impotência face a muitas forças que no mundo parecem desafiar a própria fé das pessoas, fazem-nos procurar muitas respostas que não aparecem, senão quando Deus resolve irromper no meio deste deserto e chamar de novo pelo nosso próprio nome. Ali nos revela novamente o sentido do seu projecto, o rumo da nossa luta, a razão de ser da nossa vocação, a finalidade da nossa missão.
Também a nossa fé é constantemente provada. E temos de perguntar, onde se encontra essa nossa adesão incondicional a Deus, essa nossa disponibilidade a dar tudo, perder tudo, renunciar a tudo, por causa d’Aquele em quem confiámos? Onde está a fé que se apoia exclusivamente na Palavra de Deus, a fé que não espera nada, a fé que não exige nada? Onde está a fé que nos leva a prescindir de todas as promessas e de todas as recompensas? Onde está a fé que nos leva a renunciar inclusivamente à paternidade e a aceitar tudo como dom da graça de Deus que habita em nós?
Acreditamos que somos os eleitos, os chamados e os enviados de Deus. Custa-nos, no entanto, sentir que tudo é fruto do dom de Deus e da sua graça, que age em nós. Precisamos de sentir que somos portadores de uma salvação que não nos pertence e de uma promessa que nos ultrapassa. Precisamos de ter consciência de que somos sinal de uma bênção, que é para nós, para os que nos estão perto e para todos os povos da terra, mas que somos os seus autores.
Este Abraão torna-se para nós uma figura incómoda e provocante. Podemos continuar a discutir infinitamente acerca dele como personagem histórico, como protagonista de uma narração bíblica antiga ou como símbolo de uma realidade ideal que ninguém conseguirá atingir. O facto é que, de uma forma ou de outra, ele ficou inscrito no livro da Palavra de Deus como o paradigma do homem crente, que se abre à fé, bem consciente de todas as suas exigências. E mais, ele manifesta-se como o paradigma do homem que sente na pele a dureza da aceitação da vocação e da missão.
O grande sinal da nossa vida tem de ser a nossa disponibilidade para nos sacrificarmos a nós próprios. O próprio Cristo, revelação de Deus, manifestou-se como Filho que ama o Pai e que se sacrifica pela humanidade. A Igreja colheu dele o modelo de vida como entrega, sacrifício, oferta de si mesmo pela vida do mundo.
É fundamental que os pastores da Igreja vivam esta experiência de vida entrega a Deus, em profundidade. De facto, quem não é capaz de se oferecer a si mesmo na vida de cada dia; quem não é capaz de se sacrificar nas pequenas coisas nunca poderá entregar a vida a Deus em favor dos outros.
Que esta caminhada quaresmal constitua uma nos proporcione uma forte experiência de fé, cada vez mais livre e pura, à semelhança da de Abraão; que nos leve a um maior desprendimento de todas as seguranças humanas, para que nos ancoremos exclusivamente na Palavra do Senhor; que nos leve a um compromisso mais autêntico na entrega em favor dos irmãos, como sacrifício agradável a Deus.