RECOLEÇÃO DO CLERO DA DIOCESE DE COIMBRA NA QUARESMA DE 2012 - A ORAÇÃO DE ABRAÃO

1. A VOCAÇÃO

A Epístola aos Hebreus oferece-nos em breves versículos a melhor síntese acerca da aventura espiritual de Abraão, ao dizer: "Pela fé, Abraão, ao ser chamado, obedeceu e partiu para um lugar que havia de receber como herança e partiu sem saber para onde ia. Pela fé, estabeleceu-se como estrangeiro na terra prometida, habitando em tendas, tal como Isaac e Jacob, co-herdeiros da mesma promessa, pois esperava a cidade bem alicerçada, cujo arquitecto e construtor é o próprio Deus. (...) Pela fé, Abraão, quando foi posto à prova, ofereceu Isaac, e estava preparado para oferecer o seu único filho, ele que tinha recebido as promessas e a quem tinha sido dito: «Por meio de Isaac será assegurada a tua descendência»" (Hb 11, 8-10.17-18).

Os quatro versículos do capítulo 12 do livro do Génesis concentram em si a grandeza da vocação de Abraão e dão-nos as linhas essenciais que serão desenvolvidas a este respeito, nas páginas da Bíblia.

Ele será o homem da fé, sem objecções nem hesitações, totalmente voltado para a missão que lhe é conferida. Será o modelo de homem tocado por Deus, que se torna disponível para percorrer o seu caminho até às últimas consequências.

Para nós, homens escolhidos por Deus para ajudar outros ao encontro de fé, Abraão aparece como um estímulo à radicalidade da entrega. Apegos, resistências, tentações ao comodismo, desejo de nos fixarmos nas nossas seguranças pessoais, confiança em nós próprios, desejos de realização pessoal, por vezes bastante egoísta, todos temos. Importa aprendermos a ultrapassar tudo isso, para nos centrarmos na realidade d’Aquele que nos chama e nos envia; na realidade daqueles a quem somos enviados e que são a razão de ser da nossa vocação.

O esquema usado pela narração bíblica é de tipo militarista, uma ordem e a sua execução imediata: "deixa a tua terra... e vai"; "Abrão partiu como o Senhor lhe dissera" (v 1.4). No evangelho encontramos uma expressão que retrata bem este tipo de linguagem de vocação - trata-se da frase do Centurião Cornélio, retirada da experiência militar: "Eu, que não passo de um subordinado, tenho soldados às minhas ordens e digo a um: «Vai», e ele vai; a outro: «Vem», e ele vem; e ao meu servo: «Faz isto», e ele faz" (Mt 8, 9).

Esta é a forma de actuar de Deus: a iniciativa da vocação parte d’Ele que fala no meio do silêncio difícil de perceber ou à maneira militar, dando a sua ordem de forma bem clara e esperando que ela seja rapidamente e de forma precisa posta em prática. Este mesmo esquema comparece noutras narrações bíblicas de vocação: na de Elias (1 Rs 19, 15.19), Amós (Am 7, 15), Oseias (Os 1, 1.3). Noutros casos, destaca-se sobretudo a resistência daquele que é chamado e tenta fugir à execução da ordem de Deus: é o caso, por exemplo, de Jonas (Jn 1, 1.3; 3, 1-4).

Este não é, no entanto, o único esquema de vocação, pois Deus adapta-se a cada pessoa que é chamada e aceita a sua singularidade. Encontramos as objecções de Moisés e Jeremias face às palavras de Deus: "Mas, Senhor, eu não sou um homem dotado para falar... tenho a boca e a língua pesadas" (Ex 4, 10); "Ah! Senhor Deus, eu não sei falar, pois ainda sou muito jovem" (Jr 1, 6). Nestes casos, Deus tem de manter a paciência, a benevolência e dar um sinal da Sua protecção que anime aquele a quem chama e o faça ultrapassar as suas hesitações.

A rapidez da execução da ordem por parte de Abraão quer significar a sua total disponibilidade para servir a palavra divina, literalmente. Por outro lado, afirma-se o primado da iniciativa de Deus, a cuja voz não se pode resistir, pois as suas palavras são "como o fogo, como um martelo que tritura a rocha" (Jr 23, 29) ou "como um fogo devorador encerrado nos meus ossos" (Jr 20, 9), segundo o texto autobiográfico de Jeremias.

 

2. A PARTIDA

Tendo deixado Ur, na Caldeia, Abraão mantinha-se tranquilo com o seu sobrinho Lot, em Harran, cidade caravaneira, situada num centro por onde passavam as estradas que conduziam à Síria, Anatólia e Babilónia. De um momento para o outro vê a sua vida mudar completamente de rumo e de perspectivas. "Deixa a tua terra, a tua família e a casa de teu pai, e vai para a terra que eu te indicar" (v 1), são as palavras que estão na origem de tudo. Essa voz que não se espera, mas acaba por dar uma reviravolta à vida, é magistralmente descrita por um místico muçulmano do séc. IX, Bayezid Bastami:"Durante trinta anos andei à procura de Deus e, quando ao fim deste período, abri os olhos, descobri que era ele que me procurava a mim". Trata-se de um Deus que segue pacientemente todos os nossos passos, mas que, quando faz ouvir a sua voz, se torna exigente, radical.

A ordem dirigida a Abraão compreende a renúncia a três aspectos, que faziam parte da sua vida passada:

- Em primeiro lugar, ele deve deixar a sua terra, ou seja, todos os seus horizontes materiais, os seus bens, as coisas pequenas e grandes a que está habituado, a sua própria vida quotidiana, tal como a tinha vivido até àquele momento da manifestação de Deus.

- Em segundo lugar, ele tem de deixar a sua pátria, a sua terra natal, com tudo aquilo que lhe está associado: os seus usos e costumes, a sua cultura, a sua religião, o seu estilo social de vida, a sua identidade, modelada por condicionalismos e por valores próprios. A pátria é algo difícil de abandonar como o testemunham todos os migrantes de todos os tempos, pois envolve uma mudança de língua, cultura, visão da realidade e do mundo.

- Finalmente, ele tem de deixar a casa de seu pai. Significa que tem inclusivamente de deixar a sua família e o seu clã, com tudo o que isso significa de relações humanas, afectivas, hereditárias, morais e económicas. De facto, é na família que se conserva a identidade e o próprio nome; é ali que se mantém a memória das pessoas de geração em geração. Deixar a família será, porventura, a parte mais difícil de todo aquele processo, pois provoca a solidão, o ter de enfrentar um mundo desconhecido sozinho, sem qualquer tipo de apoio humano. Significa deixar o mundo onde era alguém e onde contava para os outros, para enfrentar o mundo onde não conta para nada nem para ninguém, o mundo do anonimato.

Apesar de tudo, a decisão de Abraão aparece como certa, segura e sem hesitações. É um homem decidido, mesmo que, naturalmente sinta doer-lhe o coração, amargurado com a separação e a solidão. Sente que Deus o chamou e que deve obedecer-lhe. Escuta e obedece, tornado-se o símbolo da fé que aceita todo e qualquer risco em nome de Deus.

De uma forma igualmente magistral, Ruperto de Deutz, autor medieval do séc. XII, sintetiza: "Deus diz-lhe somente: «vai para a terra que eu te indicar», mas sem lhe indicar aquela terra. Ordenou-lhe sair sem saber para onde. E de modo admirável lhe ordenou de andar escutando e de escutar andando, para onde lhe seria dado repouso. Isto é verdadeira peregrinação!"

 

3. A BÊNÇÃO

Abraão é um eleito de Deus sobre o qual repousa a bênção divina: "abençoar-te-ei... serás uma fonte de bênçãos... abençoarei aqueles que te abençoarem... e todas as famílias da terra serão em ti abençoadas" (vv 2-3). O termo hebraico brk, "abençoar", está ligado ao tema da fecundidade e alude ao "joelho", eufemismo para designar os órgãos sexuais, meio de transmissão da vida. De facto, toda a história da salvação se cruza com a carne e a vida dos homens, e, por isso, a principal promessa de Deus a Abraão é a promessa de uma descendência. Daí que as genealogias apresentadas pelo livro do Génesis ofereçam constantemente sinais da realização dessa grande promessa de Deus, que se vai actuando ao longo das gerações.

Deus surge, deste modo, como a fonte da vida, muito bem cantada no Sl 139, 13-16: "Tu plasmaste as entranhas do meu ser e formaste-me no seio de minha mãe. Dou-te graças por tão espantosas maravilhas; admiráveis são as tuas obras. Quando os meus ossos estavam a ser formados, e eu, em segredo, me desenvolvia, tecido nas profundezas da terra, nada disso te era oculto. Os teus olhos viram-me em embrião. Tudo isso estava escrito no teu livro. Todos os meus dias estavam modelados, ainda antes que um só deles existisse."

Abraão é ainda constituído como sinal eficaz da salvação oferecida por Deus. Ele não se tornará somente um grande povo, por se tornar fecundo com Sara e pai de uma grande descendência, não será somente senhor de um grande nome (v 2), mas será ele mesmo nascente da salvação que Deus quer oferecer a toda a humanidade pecadora.

Até ali, a história humana, narrada pela tradição javista, estava marcada pela maldição: o Senhor Deus falara à serpente, para a amaldiçoar: "Por teres feito isto, serás maldita entre todos os animais domésticos e entre todos os animais selvagens" (Gn 3, 14); o Senhor Deus falara também ao homem para o amaldiçoar: "Porque atendeste à voz da tua mulher e comeste o fruto da árvore, a respeito da qual eu te havia ordenado: ‘Não comas dela’, maldita seja a terra por tua causa" (Gn 3, 17); a Caím, diz: "De futuro, serás amaldiçoado pela terra, que, por causa de ti, abriu a boca para beber o sangue do teu irmão" (Gn 4, 11); mesmo a terra será amaldiçoada: "este aliviar-nos-á dos nossos sofrimentos e do trabalho doloroso das nossas mãos, com os proventos auferidos da terra que o Senhor amaldiçoou" (Gn 5, 29).

Com Abraão é definitivamente abolida a maldição, pois abre-se um novo horizonte, o da bênção, da alegria e da salvação. A partir daqui o motivo da bênção estará presente em todo o livro do Génesis. Esta bênção que repousa sobre Abraão apresenta uma tríplice dimensão:

- Em primeiro lugar é uma bênção pessoal, "abençoar-te-ei". Trata-se de uma bênção que envolve toda a pessoa de Abraão, a ponto de ele quase personificar a bênção de Deus, "serás uma fonte de bênçãos".

- Em segundo lugar, a bênção é alargada ao círculo restrito dos que estão em contacto com Abraão: vizinhos, familiares e amigos: "abençoarei aqueles que te abençoarem".

- Em terceiro lugar, a bênção divina que repousa sobre Abraão irradia para novos horizontes: "E todas as famílias da terra serão em ti abençoadas". A bênção de Deus, alcança, deste modo uma dimensão universal.

Abraão é um homem eleito por Deus, não para aumentar os pergaminhos pessoais ou familiares, mas para cumprir uma missão junto dos outros e em favor dos outros. Ele tem de irradiar uma bênção e um bem, que vem de Deus, a toda uma humanidade, que espera. A sua vocação tem inerente uma dimensão missionária, que o impede de permanecer fechado no seu próprio projecto espiritual ou humano, e o faz sair para ir ao encontro de todos os outros.

 

4. HOMENS DE FÉ, DESCENDÊNCIA DE ABRAÃO

É precisamente à luz desta vocação, desta partida, desta bênção e desta eleição para a missão, que havemos de entender a nossa própria vocação e eleição para uma missão, na Igreja e no mundo. Foi nelas que os apóstolos e discípulos de Jesus encontraram o sentido do seu seguimento e da sua acção evangelizadora.

Precisamos de reconhecer nesta narração bíblica o paradigma da nossa própria vocação e deixar-nos tocar de novo pelo mão amorosa de Deus, que volta a manifestar-se de forma discreta no silêncio interior, ou na voz forte que faz ressoar dentro de nós, própria de quem ordena e quer que seja cumprido.

Em primeiro lugar, somos chamados, cada um nas suas circunstâncias específicas, a deixar constantemente a nossa casa, a nossa terra, os nossos próprios horizontes materiais, os nossos bens, as coisas pequenas e grandes a que estamos habituados e que contam muito para nós, tanto que nos tolhem muitos movimentos e nos acomodam numa actividade morna, própria de quem tudo calcula, pesa e mede, em seu próprio favor.

Em segundo lugar, somos chamados a deixar a nossa pátria, com tudo aquilo que lhe está associado: os nossos usos e costumes de há muito ou pouco tempo; a nossa cultura porventura desencarnada da realidade que se vive nos dias de hoje; a nossa religião ritualista e estática, incapaz de nos revelar a nós e ao mundo o rosto de Deus; o nosso estilo social de vida, marcado pelo desejo do prestígio e do lugar; a nossa identidade, porventura modelada por condicionalismos e por valores próprios, em que nos temos mais em conta a nós do que ao Deus que nos chama ou aos outros a quem Ele nos envia.

Finalmente, temos de deixar a casa de nosso pai. Significa que temos inclusivamente de deixar os nossos apegos desmedidos à família de sangue ou ao clã das nossas relações, com tudo o que isso significa de purificação das relações humanas, afectivas, hereditárias, morais e económicas. Deixar a família, neste sentido, é, porventura, a parte mais difícil de todo este processo de vocação e de missão, pois pode provocar a solidão, o ter de enfrentar um mundo desconhecido sozinho, sem qualquer tipo de apoio humano e por motivos não humanos. Pode significar deixar o mundo onde se é alguém e onde se conta para os outros, para enfrentar o mundo onde se não conta para nada nem para ninguém, o mundo do anonimato, próprio de quem não procura glórias neste mundo, mas está disposto a tudo perder para ganhar a todos, por meio do Evangelho.

É altura de nos expormos diante de Deus e reconhecermos: quais os nossos apegos; o que nos impede de nos entregarmos a Deus e aos outros; onde se situam as nossas maiores resistências; o que é que não conseguimos aceitar na proposta de vida que a Igreja nos faz; que influência tem o “mundo” na nossa vida; o que é que nos conduz e orienta verdadeiramente.

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