1. TUDO É DOM DE DEUS AMOR
A nossa vida está cheia de manifestações de amor, de palavras de amor que, no entanto, não nos satisfazem plenamente. Gostaríamos de encontrar e de viver o amor pleno, sem limites, perfeito e procuramo-lo das mais diversas formas. Procuramos descobrir as suas imagens, representações e símbolos, como são as relações entre pais e filhos, as relações entre esposos, as relações entre irmãos. Procuramos os seus sinais entre aquilo que de mais belo conhecemos na natureza; entre aquilo que de mais belo conhecemos dentro do coração humano, como são a alegria, a oferta, a partilha, a amizade entre as pessoas; procuramos mesmo vê-lo nos gestos humanos de ternura e comunhão íntima, como são os abraços, os beijos e a própria relação sexual.
Reconhecemos sempre a existência de muitas barreiras, de muitas imperfeições, de muito egoísmo à mistura. Reconhecemos sempre por detrás os limites da condição humana.
Segundo o cristianismo, há muitas manifestações de amor, muitos sinais de amor, muitos elementos que nos apontam para o amor, mas que nunca são o amor em sentido rigoroso. Segundo a nossa fé, há apenas uma imagem perfeita do amor, porque a sua imagem real: Deus, Aquele que não é mais nada senão amor. Ele é Aquele que nada reserva para Si, Aquele que tudo dá ao Seu Filho, Aquele que gera o Filho no mesmo amor.
O Filho, do mesmo modo, tudo o que recebe, põe à disposição, dá, de tal modo que ambos geram o Espírito, a testemunha do amor recíproco do Pai e do Filho. Essas três Pessoas estão umas nas outras, conhecem-se, amam-se, formam o único Deus, que é amor. É o mistério da Trindade Divina, que não é mais que o único mistério do amor.
Não temos a pretensão de compreender este mistério de Deus, mas, graças ao mesmo Deus, existem no mundo alguns sinais desse amor, que nos vão abrindo os horizontes para o seu conhecimento. Segundo a fé cristã, o amor entrou na história humana e manifestou-se nela, na pessoa de Jesus Cristo: “Deus amou tanto o mundo, que lhe deu o seu único Filho… para que o mundo seja salvo por Ele” (Jo 3, 16-17). Segundo a revelação cristã, Deus amou o mundo com o mesmo amor com que ama o Filho. Por sua vez, numa atitude de acção de graças ao Pai (Eucaristia), o Filho aceita o amor do Pai e aceita inserir-se na mesma dinâmica de oferta e doação total: “É por isso que o Pai me ama; por Eu oferecer a minha vida… Ninguém ma tira; sou Eu que a ofereço livremente” (Jo 10, 17-18).
Nesta dádiva total do Pai e do Filho encontra-se aquele amor que nós procuramos na vida das mais diversas formas, mas que não conseguimos atingir nem exprimir, por fazermos parte de um mundo limitado e imperfeito. Aquele amor que nós homens não conseguimos realizar, realiza-o o Espírito Santo de Deus na Eucaristia que celebramos. Esse é o grande milagre do amor e o grande milagre da Eucaristia: Jesus Cristo, como “carne espiritual” (1 Cor 15, 44), entra em nós, ultrapassa os nossos limites e “dá-nos a vida” eterna.
Para exprimir esta realidade não temos mais que uma linguagem humana, um conjunto de imagens imperfeitas: falamos do Corpo Místico de Cristo que nos acolhe; falamos da videira e dos ramos que produzem frutos de vida; com Paulo dizemos que já não somos nós que vivemos, mas que é Cristo que vive em nós; falamos da comunhão com Cristo e com os irmãos, que se realiza na vida que nasce da Eucaristia.
2. SIGNIFICADO TEOLÓGICO DAS PALAVRAS E GESTOS DE JESUS
A vida de Jesus esteve cheia de gestos e sinais de amor: as suas palavras de acolhimento a todos sem excepção, os seus milagres em favor dos mais pobres de entre os pobres, a sua partilha de vida com os discípulos, a oferta dos dons recebidos do Pai, a sua generosidade que o leva a percorrer incansavelmente os caminhos da Galileia para anunciar a todos uma Boa Nova de Salvação, indo ao encontro das situações humanas mais duras.
No entanto, não se ficou por aqui; o seu amor e a sua entrega haviam de ir mais longe, até onde ninguém podia pensar que fosse possível chegar: a morte, como acto definitivo de entrega, até às últimas consequências. Para isso decide subir a Jerusalém, onde sabe o que O espera – a morte mais ignominiosa que se podia dar a alguém, e Ele nem sequer estava marcado pelo pecado ou pelo mal que afecta todos os outros homens. Sabendo que isso é necessário para salvar a todos os pecadores, Ele está disposto a aceitá-la livremente.
Já se dera na vida, fazendo tudo o que sabia ser a vontade amorosa do Pai e vai mesmo dar-se na morte, o sinal maior do amor do mesmo Pai ao qual quer ser fiel até ao fim. Os evangelistas descrevem em termos dramáticos a agonia do Getsémani, colocando nos lábios de Jesus abandonado por todos a decisão de em tudo fazer a vontade do Pai: “Abbá, Pai, se é possível, afasta de mim este cálice. Mas não se faça a minha vonade, mas a tua”; e no alto da cruz, o mesmo Jesus grita de angústia: “Meu Deus, meu Deus, porque me abandonastes?”.
Na última ceia, Jesus pronuncia palavras e executa gestos simbólicos que devem ser repetidos em sua memória. Não são palavras nem gestos vazios, pois os acontecimentos serão a prova mais real da sua autenticidade. Ele que amara os seus até àquele momento, estava disposto a amá-los até ao fim. A sua vida tinha revelado o amor total e a sua morte iria selá-lo definitivamente.
Na última ceia reúne-se com os seus discípulos mais íntimos, desejoso de partilhar com eles a sua disponibilidade e de os constituir testemunhas de uma maneira diferente de encarar a vida e a morte, de uma amaneira diferente de encarar o amor.
Os apóstolos não terão compreendido na sua totalidade o que presenciaram. Hão-de esperar pela ressurreição e pela vinda do Espírito Santo para perceber o alcance do que ali celebraram com Jesus.
2.1. "Isto é o meu corpo"; "isto é o meu sangue"
Ao pronunciar estas duas frases, Jesus pretende estabelecer uma relação verdadeira e objectiva entre estes elementos materiais - o pão e o vinho - e o mistério da sua morte, que será coroada pela ressurreição. Aquelas palavras que, na linguagem do concílio de Trento, operam uma verdadeira transubstanciação, criam uma situação nova naqueles elementos naturais e comuns da alimentação humana: elas realizam nesses elementos uma misteriosa presença de Cristo, que vive e se oferece à morte por nós.
O termo corpo corresponde certamente ao basar hebraico (sarx, na linguagem de Jo 6, 51-59), que significa o homem enquanto ser frágil e perecível. Paulo e Lucas acrescentam-lhe o inciso "oferecido por vós", que esclarece a finalidade da morte de Jesus, declarando-a uma morte pela salvação da humanidade. Deste modo, a expressão de Jesus Cristo, "isto é o meu corpo", aliada ao seu gesto de partir e distribuir o pão, personifica a sua oferta, a oferta da sua pessoa, por nós.
O termo sangue significa na mentalidade semita "a alma da vida", que pertence somente a Deus, segundo a expressão de Lv 17, 11-14: "o sangue é a vida do corpo...a vida do corpo está no seu sangue, no seu espírito vital". Por esse motivo era proibido matar um homem (Ex 20, 13) ou derramar o seu sangue (Gn 9, 6; Dt 19, 10). Jesus pretende referir-se à morte violenta que os homens lhe darão, dentro de pouco tempo, e que será em nosso favor, pela nossa salvação ou, segundo a expressão de Mt 26, 28, "pelo perdão dos pecados".
Os dois elementos, corpo e sangue, exprimem a mesma realidade: a oferta livre de Cristo à morte, a sua doação por nós. O pão que se partilha e o sangue que se derrama constituem o mesmo sacrifício da sua própria pessoa, que Jesus ofereceu sobre a cruz, para a salvação de todos.
2.2. Simbolismo do pão e do vinho
Jesus escolheu dois elementos naturais, o pão e o vinho, para exprimir a sua morte, a sua oferta em alimento aos homens, e para se encontrar com eles no contexto de um banquete ou de uma festa em que eles são elementos fundamentais.
O pão, na perspectiva bíblica, designa o alimento indispensável à vida e é concedido pelo poder do Deus criador a todo aquele que lho pede (Ex 23, 25). Ele deve ser partilhado com o faminto por todos aqueles que são justos (Is 58, 7). Por estar intimamente relacionado com a vida, ele simboliza também o banquete escatológico: "Feliz o que comer no banquete do Reino de Deus" (Lc 14, 15).
O vinho, na mesma perspectiva bíblica, não é um elemento essencial à vida, mas designa a plenitude da vida na alegria. Simboliza o aspecto agradável da vida, a amizade, o amor, a festa e também a alegria celeste (Am 9, 14; Os 2, 24; Jr 31, 12).
Deste modo, a Eucaristia, além de ser proclamação da morte do Senhor é também um banquete de alegria, uma festa, por celebrar a presença de Cristo Ressuscitado no meio do seu povo, aquele que lhe dá a vida plena e abundante. A Eucaristia celebra a morte, mas não se fixa nela - abre para a vida. Não é a comemoração de um morto, mas a exaltação de um vivente que apresenta uma mesa e um banquete em cada tempo histórico, anunciando o grande banquete da eternidade.
2.3. Eucaristia como memória
A tradição antioquena apresentou um importante inciso: "fazei isto em memória de mim". Com essa expressão Jesus pedia que se repetisse o gesto realizado por Ele e que se fizesse memória do significado salvífico que ele mesmo lhe conferiu, isto é, que não se fizesse da celebração um acontecimento isolado na história, mas se tornassem continuamente presentes os seus efeitos.
Na própria tradição hebraica o termo recordar ou fazer memória (zakar) não significa simplesmente evocar o passado, mas sobretudo reproduzir no presente a sua força e eficácia (Sl 25, 7; 74, 2; 106, 4). No AT a recordação da páscoa não era somente uma recordação do passado nem de uma libertação operada por Deus nesse mesmo passado, mas era uma ritualização de um acontecimento e uma afirmação de que Deus estava disposto a oferecer novamente a salvação e a libertação ao seu povo, no presente. Deste modo, o passado era actualizado no presente e as acções de Deus voltavam a ter força salvífica em cada momento histórico em que eram celebradas (ver Ex 12, 14: "Este dia será para vós um memorial" - lezikkarôn).
O "fazei isto em memória de mim" é um convite a repetir um gesto cultual, mas sobretudo a reviver em cada tempo da história a totalidade do seu significado salvífico. O culto deverá tornar-se vida e tornar Cristo sempre presente no mundo, através dos frutos do seu sacrifício.
2.4. Eucaristia como nova aliança
Lc 22, 20 e 1 Cor 11, 25 apresentam a ligação entre o sacrifício de Cristo e a aliança, renovada e aprofundada: "Este cálice é a nova aliança no meu sangue, que vai ser derramado por vós"; enquanto Mt 26, 28 e Mc 14, 24 põem na boca de Jesus as palavras: "este é o meu sangue de aliança".
Neste sentido, o rito eucarístico tem também um valor sacrificial, querido por Cristo, pois evoca o sangue derramado. No entanto, não se fica por aí, pois ele exprime nesse derramamento de sangue todo o amor de Cristo que se oferece livremente ao Pai, até à morte.
3. O CRISTÃO VIVE DA EUCARISTIA
A história da nossa relação com Deus refaz-se diariamente na Eucaristia, que celebramos: ali, Deus reafirma o seu amor por nós e nós reafirmamos o nosso amor por Ele.
O gesto livre de se entregar ao Pai e aceitar a morte realiza-se de novo na oferta do pão e do vinho. Nós podemos unir-nos a esse mesmo gesto, juntando aos dons que oferecemos a oferta da nossa própria vida.
A Eucaristia constitui sempre uma provocação para cada um de nós: faz-nos confrontar a realidade do amor de Deus com as nossas imagens esbatidas de amor e com a realidade imperfeita do nosso amor. Faz-nos, por isso, repensar continuamente o nosso amor e a nossa entrega.
A Eucaristia confronta-nos com a vida no seu sentido mais profundo e a perguntar constantemente quais são as nossas razões de viver: se é Deus e o seu amor ou se são outras realidades geradas dentro de nós.
O cristão é chamado a ser eucarístico: a celebrar a ação de graças ao Pai, unido a Cristo; a oferecer a sua vida juntamente com Cristo em favor dos irmãos e a dar continuamente Cristo ao mundo.