O Evangelho da família e da
vida
no Pontificado de João Paulo II
Cardeal A.
LÓPEZ TRUJILLO
Presidente do Pontifício Conselho
para a Família
Por ocasião do 25º ano de pontificado de João
Paulo II
Introdução
A
proclamação entusiasta do Evangelho da família e da vida, como
“notícia maravilhosa” e o aprofundamento da identidade e da
missão da “igreja doméstica”, santuário da vida, como verdade
que humaniza plenamente os esposos, os filhos e a humanidade,
ocupam sem dúvida um lugar privilegiado no coração do Pastor
universal.
Como Mestre
da fé, o seu Magistério assegurou e garantiu a identidade e a
dinâmica evangelizadora da família, única instituição no
desígnio criativo de Deus capaz de formar integralmente o
homem. Ele consagrou as suas energias não apenas a anunciar,
mas também a libertar a verdade, resgatando-a da tempestade de
uma crise numa sociedade doentia, que desumaniza. Como afirma
o Apóstolo São Paulo, a verdade é aprisionada e sufocada pela
impiedade e pela falsidade (cf. Rm 1, 18.25).
Um avançado
processo de secularização, que pretendia expulsar Deus da
sociedade, esvazia o homem e precipita-o na sua degradação,
privando-o dos valores centrais da família e da vida. É a
enfermidade do espírito desprovido da verdade que o priva da
sua humanidade, como já podia intuir Romano Guardini. O
anúncio da verdade e a sua libertação tornam-se uma vigorosa
defesa da família e da vida, hoje também ameaçadas.
O centro
unificador do seu ensinamento foi a verdade acerca do homem, o
seu mistério, que só se manifesta plenamente à luz do Verbo
Encarnado (cf. Gaudium et spes, 22), “Aquele que
penetrou, de uma maneira singular e que não se pode repetir,
no mistério do homem e entrou no seu “coração”” (Redemptor
hominis 8). O Papa clama a fim de que a humanidade se abra
a Jesus Cristo, que manifesta plenamente ao homem o seu
mistério. “O homem não se pode esquivar aos olhos de Deus.
Procurando esconder-se dele, o homem esconde-se a si mesmo”
(Martin Buber, Il cammino dell’uomo, Ed. Qiqajon, Bose
1990).
Com a sua
experiência de Pastor em Cracóvia, com a sua bagagem académica
que permitiu um diálogo com as culturas, fiel à verdade do
homem e aberto à esperança, não apenas com a abundância e a
profundidade dos seus escritos, mas também com o seu
testemunho e a sua solicitude pastoral, ele imprimiu um
dinamismo renovado na Igreja, neste campo vital e decisivo
para o futuro.
Gostaria de
esboçar apenas, em grandes linhas, alguns importantes aspectos
daquilo que representou nesta causa, que é a causa do Senhor,
o Pontificado fecundo e providencial de João Paulo II, durante
os cinco lustros, que celebramos com alegria e com
reconhecimento.
Farei uma
referência, em primeiro lugar, ao serviço do Santo Padre, ao
interior da Igreja, e sucessivamente àquilo que representou o
seu trabalho em relação à sociedade inteira, a toda a
humanidade.
I. O serviço à família e à vida
na Igreja
1) A família coração da
evangelização
Numa
determinada perspectiva evangelizadora, porque o anúncio do
Evangelho é a respiração da comunidade cristã, os seus
esforços colocaram-se em convergência com a identidade da
família de acordo com o desígnio de Deus. A Boa Nova suscita
admiração e é acolhida na sua originalidade com entusiasmo. O
Santo Padre foi Relator generalis do Sínodo sobre a
Evangelização, que se plasmou na Exortação Apostólica
Evangelii nuntiandi, do Papa Paulo VI, que teve uma
influência de renovação profundamente decidida e singular.
A comunidade
dos crentes foi notavelmente enriquecida, sob os pontos de
vista doutrinal e pastoral, com o ensinamento de João Paulo II.
Sobretudo com o seguinte tríptico, ponto de referência central
e indispensável, constituído por:
1) a
Exortação Apostólica
Familiaris
consortio, fruto do Sínodo sobre a Família, realizado
em 1980, o primeiro do seu Pontificado;
2) a Carta
às Famílias,
Gratissimam sane,
promulgada por ocasião do Ano Internacional da
Família, em que ele retoma aprofundando-os os temas centrais
para a identidade da família e a sua missão; e
3) a Carta
Encíclica
Evangelium vitae, o mais vigoroso anúncio e defesa do
evangelho da vida.
Seria
necessário dedicar muito tempo para poder referir-me aos
numerosos outros escritos, como
Mulieris
dignitatem em que o Papa sublinha a missão
insubstituível da mulher como esposa, mãe e irmã, e o
benefício que ela oferece à sociedade na sua progressiva
inserção, sem discriminação; a Carta às Crianças em que
João Paulo II defende, num diálogo repleto de ternura, a
dignidade das crianças, muitas vezes desrespeitada; as
“Catequeses do amor humano”, reunidas com o título de “Homem e
Mulher os criou”. Além disso, ocupam vários volumes as
homilias, pronunciadas particularmente durante as suas viagens
pastorais, assim como as mensagens e os discursos, que
constituem um rico tesouro de ensinamentos. Tratou-se de um
período de contribuições densas e múltiplas, que deram um
impulso doutrinal e pastoral dinâmico.
Merecem
também uma menção especial as mensagens e as homilias
proferidas nos Encontros Mundiais com as Famílias: no Encontro
Mundial das Famílias em Roma (1994), no Encontro Mundial das
Famílias no Rio de Janeiro (1997) e no Jubileu da Família
(2000), e a mensagem televisiva transmitida de Manila (em
Janeiro de 2003). Estes Encontros Mundiais, convocados pelo
Papa, foram acontecimentos eclesiais em que as famílias
puderam experimentar a proximidade amorosa do Sucessor de
Pedro e constituem uma oportunidade singular de assumir
compromissos com especial ardor e de aprofundar a riqueza
doutrinal, para explicar com renovado vigor a “razão da nossa
esperança” (cf. 1 Pd 3, 15). O Santo Padre convocou o V
Encontro Mundial da Família para o ano de 2006, em Valença, na
Espanha.
O magistério
do Papa recorda que a “igreja doméstica” é evangelizadora;
transformada com o calor do Evangelho, ela oferece ao mundo a
realidade recebida. E torna-se, ela mesma, um modelo, um
estilo de vida. Os diversos desafios de fidelidade e de defesa
da vida são vigorosamente reconfirmados. “Casam-se como
todos e geram filhos, mas não abandonam os nascidos. Têm em
comum a mesa, mas não a cama” (Carta a Diogneto,
V.7; Funk 1, 318). Assim, serve de maneira especial a
comunidade dos crentes na transmissão viva da fé, sobretudo na
participação litúrgica e na oração. Na oração familiar são
transmitidos os princípios elementares da fé e é nela que se
abre o coração para a paternidade de Deus.
Agora,
gostaria de salientar apenas alguns aspectos do ensinamento do
Papa que podem, entre outras coisas, ser gravados como um
ponto de referência constante, que fortaleceu de maneira
singular a reflexão teológica e o compromisso pastoral.
Perante os graves e crescentes desafios do presente, longe de
suscitar desconcerto e uma atitude resignada ou pessimista,
com o ardor do seu ensinamento, a Igreja manteve intacto o seu
entusiasmo responsável, fundamentado nas energias formidáveis
que o Senhor derrama sobre as famílias.
A plena
vivência da família, baseada no matrimónio, e a fidelidade da
grande maioria dos casais, como um testemunho vivo, são a
melhor resposta àqueles que asseguravam a extinção desta
instituição natural que, em virtude de novos projectos
culturais e políticos, seria substituída por outros modelos e
alternativas, que desvirtuam o tecido sadio da comunhão
conjugal. Na verdade existem sinais promissores que suscitam
uma renovada confiança no futuro.
2) Um ensinamento de
iluminadora densidade antropológica
É a verdade
sobre o homem que queremos pôr em evidência, o seu “mistério”,
a sua vocação. É o “humanum” que se encontra em perigo.
Terá o homem que assistir impotente ao drama da sua
desumanização, desligado dos valores que o realizam como
imagem de Deus? Deve ele render-se perante uma cultura que,
enquanto parece exaltá-lo, o despoja da sua dignidade humana e
o trata como um instrumento e um objecto? Assistimos à
“conspiração” de muitos parlamentares, assim como a pressões e
a ambiguidades de todos os tipos, que chegam mesmo a proclamar
outros direitos humanos, substitutivos dos direitos que são
fundamentais.
A família
seria a negação da liberdade, um lugar de escravidão para a
mulher, enquanto a sua vocação maternal constituiria um
obstáculo, culturalmente imposto à sua realização; os filhos,
uma carga pesada; a estabilidade e a fidelidade do amor
conjugal, uma quimera, e não um bem fundamental para o homem e
para a sociedade em geral. São negados o seu valor social, a
sua capacidade de dar a felicidade aos esposos e aos filhos,
tornando-os verdadeiramente humanos.
Deturpa-se a
sacralidade e a inviolabilidade da vida humana, que corrobora
o terceiro artigo da Declaração Universal dos Direitos do
Homem, mas que, mediante o recurso a inumeráveis e cruéis
excepções, submete à execução capital o ser mais inocente, o
“nascituro”. Trata-se de um massacre mundial, que põe em
evidência a degradação para a qual a cultura da morte está a
conduzir.
O embrião é
reduzido a objecto, a uma coisa, a uma matéria manipulável,
vítima de todos os tipos de experiência, que atentam contra a
sua inviolabilidade, como nas técnicas de fecundação assistida
e com o grave perigo para a humanidade, representado pela
clonagem reprodutiva e terapêutica. Repete-se o mito da
Medusa: tudo o que o seu olhar perscruta se transforma numa
coisa.
O
ensinamento do Papa João Paulo II desperta os espíritos para
buscarem e encontrarem a verdade que redime e liberta. Na
Gratissimam sane, o Sumo Pontífice faz ressoar uma voz de
alarme, quando realça estas expressões: “Em tal perspectiva
antropológica [...] o homem deixa de viver como pessoa e
sujeito. Apesar das intenções e declarações contrárias,
torna-se exclusivamente um objecto”. Mais adiante, no
mesmo número, o Papa admoesta: “O racionalismo moderno não
suporta o mistério. Não aceita o mistério do ser humano, homem
e mulher, nem quer reconhecer que a plena verdade do homem foi
revelada em Jesus Cristo. Não tolera, em particular, o “grande
mistério” anunciado pela Carta aos Efésios, e combate-o
radicalmente” (Gratissimam sane, 19).
Diante das
tentativas de desfragmentar a estrutura familiar, membro por
membro, o ensinamento do Santo Padre constitui uma barreira
moral de autoridade reconhecida, inclusivamente pelas pessoas
que não compartilham a nossa fé.
O Santo
Padre recorreu a um texto-chave do Concílio Ecuménico Vaticano
II, a que muitas vezes faz referência (cf. Gratissimam
sane, 14):
“Como
afirma o Concílio, o homem é a “única criatura sobre a terra a
ser querida por Deus por si mesma” (Ibid., 9;
Constituição pastoral sobre a Igreja no mundo contemporâneo
Gaudium et spes, 24).
Deus “ama” o
homem como um ser que é semelhante a Ele, como pessoa. “Persona
significat quod est perfectissimum in tota natura” (S.
Tomás de Aquino, Summa Th. I, q. 29, a. 3). A Carta
Encíclica Veritatis splendor ensina o seguinte: “É à
luz da dignidade da pessoa humana que se afirma por si própria
que a razão depreende o valor moral específico de alguns bens,
aos quais a pessoa está naturalmente inclinada. E tendo em
vista que a pessoa humana não é redutível a uma liberdade que
se autoprojecta, mas comporta uma estrutura espiritual e
corpórea determinada, a exigência moral originária de amar e
respeitar a pessoa como um fim e nunca como um simples meio,
implica também, intrinsecamente, o respeito de alguns bens
fundamentais...” ( Veritatis splendor, 48). O
homem, cada homem, é criado por Deus “por si mesmo” (Gratissimam
sane, 9). “Aperta manu clave amoris, creaturae
prodierunt” (S. Tomás de Aquino, Liber II Sent. Dist.
2 prol.). “O novo ser está destinado a exprimir em
plenitude a sua humanidade a “encontrar-se” como pessoa” (Gratissimam
sane, 9). “Efectivamente, esta [a família], mais do que
qualquer outra realidade social, é o ambiente onde o homem
pode existir “por si mesmo” (Ibid., n. 11). Isto é
fundamental para mostrar que o homem “imagem” não pode ser
tomado nem usado como um objecto, como um instrumento, como um
“produto”, a partir do momento da concepção até à sua morte
natural, que é a grave tentação de uma cultura
científico-tecnológica que deseja reservar para si mesma o seu
domínio como um absoluto: “O utilitarismo é uma civilização
da produção e da exploração, uma civilização das “coisas” e
não das “pessoas”; uma civilização onde as pessoas se usam
como se usam as coisas... a mulher pode tornar-se para o homem
um objecto, os filhos um obstáculo para os pais, a família uma
instituição embaraçante para a liberdade dos membros que a
compõem... Em semelhante situação cultural, é claro que a
família não pode deixar de se sentir ameaçada, porque é
atacada nos seus próprios alicerces” (Ibid., 13).
Sim, “A
família foi sempre considerada como a primeira e fundamental
expressão da natureza social do homem... a mais pequena e
primordial comunidade humana” (Ibid., n. 7), “uma
singular comunhão de pessoas” (Ibid., n. 10) no
seio da sociedade, de um “nós”. “A família, comunidade de
pessoas é, pois, a primeira “sociedade” humana” (Ibid.,
n. 7). E isto deve traduzir-se à luz do primado da pessoa.
O homem deve
ser “o princípio, o sujeito e a finalidade de todas as
instituições sociais” (Gaudium et spes, 25) e, por
conseguinte, a ordem social e o seu progresso devem fazer com
que prevaleça sempre o bem das pessoas, porque a ordem das
coisas deve estar subordinada à ordem das pessoas (cf.
Gaudium et spes, 26).
Na realidade, isto há-de
traduzir-se numa alternativa que contrasta com os programas de
engenharia social que manipulam as pessoas como se fossem
peças de xadrez, com o utilitarismo que já mencionámos antes, e
com uma concepção individualista que nega à família a dignidade
que lhe é própria como sujeito social. Ela integra os seus
membros, pais e filhos, não considerados separadamente, num
individualismo que não corresponde ao conjunto das relações
pessoais, que é a família. Nela encontram uma significativa e
“justa aplicação dos direitos das pessoas que a compõem” (Gratissimam
sane, 17).
O Papa João
Paulo II recomendou enfaticamente a Carta dos Direitos da
Família, valioso instrumento de diálogo, plenamente vigente
que, partindo dos princípios morais já consolidados, revigora
a existência da instituição familiar no seio da ordem social e
jurídica da “grande” sociedade (cf. ibidem).
Um aspecto
digno de ser considerado é a salvaguarda da “soberania” da
família, por parte do Papa. “Como comunidade de amor e de
vida, a família é uma realidade social firmemente radicada e,
de modo muito próprio, uma sociedade soberana, apesar de
(viver) condicionada sob vários aspectos” (Ibidem), e
“ao participar no património cultural da nação, (a família)
contribui para aquela específica soberania, que deriva das
próprias cultura e língua” (Ibidem). A intervenção do
Estado no que se refere à família deve sobressair naquilo em
que ela não é auto-suficiente, no princípio de
subsidiariedade, no respeito pelos direitos da família.
No
texto-chave que o Santo Padre comenta, segundo o qual o homem
é a única criatura sobre a terra a ser querida por Deus por si
mesma, dá-se continuidade ao aprofundamento daquilo que o
Concílio Ecumênico Vaticano II afirma, ou seja, que o homem
“não se pode encontrar plenamente a não ser no sincero dom de
si mesmo” (Constituição pastoral sobre a Igreja no mundo
contemporâneo Gaudium et spes, 24).
A este ponto
o Papa consagra não apenas o n. 11 da Gratissimam sane,
mas inclusivamente preciosas considerações feitas em diversos
documentos.
Este dom
sincero de si mesmo, que leva o homem a realizar-se plenamente
a si próprio, faz com que “nesta doação recíproca se manifeste
o carácter esponsal do amor” (cf. Gratissimam sane, 11).
Este dom sincero obriga muito mais do que tudo quanto possa
ser “comprado” e imprime “a lógica do dom sincero” (Ibidem)
que entra na vida do homem e da mulher. A conclusão do Sumo
Pontífice é lapidar: “Sem ela, o matrimónio seria vazio” (Ibidem).
Na promessa
dos esposos “Prometo ser-te fiel... durante todos os dias da
minha vida” são realçadas uma fidelidade completa e um dom da
pessoa que, por sua própria natureza, é “duradouro e
irrevogável” (Ibidem), aberto à vida.
É no dom
sincero de si mesmo que se fundamentam, pois, as conhecidas
características de fidelidade, de exclusividade e de
permanência até à morte e abertura à vida, que a Humanae
vitae iluminava com um vigor profético (cf. HV, n.
9) e que o Papa João Paulo II aprofundou de maneira notável, a
partir da lógica da entrega pessoal. “A fecundidade é o fruto
e o sinal do amor conjugal, o testemunho vivo da entrega plena
e recíproca dos esposos” (Familiaris consortio, 28). Um
amor condicionado, ad tempus, que se fecha para a vida
nova por medo, desconfiança ou hedonismo, é uma traição contra
a sinceridade e a totalidade da entrega pessoal. “A anticoncepção impõe uma linguagem objectivamente contraditória,
ou seja, a de uma entrega não total ao outro: assim, dá-se
lugar não apenas à rejeição positiva da abertura à vida, mas
também a uma falsificação da verdade interior do amor
conjugal, chamado a entregar-se na plenitude pessoal” (Familiaris
consortio, 32).
É a lógica
do bem que, por sua própria natureza, é “difusivo” num amor
exigente que, no mistério de Jesus Cristo que se entrega até
ao fim, encontra a fonte de que promanam energias admiráveis.
Através da presença do Ressuscitado na “igreja doméstica”,
aquela que se encontra no centro desta grande luta entre o bem
e o mal recebe o mandato de “libertar as forças do bem, cuja
fonte se encontra em Cristo Redentor do homem” (Gratissimam
sane, 23).
3) À luz do
mistério de Cristo
Tudo se
refere a Jesus Cristo, “Àquele que penetrou, de uma maneira
singular e que não se pode repetir, no mistério do homem e
entrou no seu “coração”” (Redemptor hominis, 8). Por
este motivo, “os cônjuges encontram em Cristo o ponto de
referência para o seu amor esponsal” (Gratissimam sane,
19).
Um dos
textos do Concílio Vaticano II que mais foram estudados pelo
Papa (cf. Gaudium et spes, 22), constitui
inclusivamente o fio condutor da Redemptor hominis: “O
homem que quiser compreender-se a si mesmo profundamente (...)
deve, com a sua inquietude, incerteza e também com a sua
fraqueza e pecado, com a sua vida e com a sua morte,
aproximar-se de Cristo. Ele deve, por assim dizer, entrar
n’Ele com tudo o que é em si mesmo, deve “apropriar-se” e
assimilar toda a realidade da Encarnação e da Redenção, para
se encontrar a si mesmo” (Redemptor hominis, 10).
Por isso, a
família há-de viver a sua vocação num clima de oração, de
diálogo com o Senhor, que sempre manifesta o seu amor e leva a
uma melhor compreensão da sua natureza e da sua missão.
Em Jesus
Cristo, que vai ao encontro dos cônjuges, a verdade acerca da
família “pode ser plenamente a grande “revelação”, a primeira
descoberta do outro: a mútua descoberta dos esposos e, depois,
de cada filho ou filha que deles nascer” (Gratissimam sane,
20). O grande mistério da Carta aos Efésios (cf. 5, 32),
torna-se também um valor de grande importância eclesial:
“Portanto, não se pode compreender a Igreja como Corpo místico
de Cristo, como sinal da Aliança do homem com Deus em Cristo,
como sacramento universal de salvação, sem fazer referência ao
“grande mistério”, associado à criação do ser humano como
homem e mulher e à vocação de ambos ao amor conjugal...” (Gratissimam
sane, 19). Esta consideração enriqueceu os Sínodos
continentais, de maneira particular o Sínodo dedicado à
África.
II. Aspectos
pastorais
Na
Familiaris consortio, o Papa disse aos Bispos: “O primeiro
responsável pela pastoral familiar na diocese é o próprio
bispo. Como Pai e Pastor, ele deve dedicar-se com uma
solicitude particular a este sector, sem dúvida prioritário,
da pastoral. Deve-lhe consagrar o seu interesse, atenção,
tempo, pessoas e recursos; e sobretudo o seu apoio pessoal às
famílias e a todos aqueles que, nas diversas estruturas
diocesanas, o ajudam na pastoral da família” (Familiaris
consortio, 73).
Daquilo que
recomenda como Pastor, ele primeiro fez uma prioridade no seu
próprio ministério.
Sem dúvida,
trata-se de um sector prioritário da pastoral. A evangelização
e o futuro da humanidade passam pela família (cf. ibid.,
n. 86), da mesma forma que no futuro da Igreja o Senhor a
acompanha até ao final dos tempos. Ele não a abandonará, mas
derramará sobre ela toda a abundância das suas graças.
O dever
principal dos mestres da fé consiste em compartilhar o pão da
verdade. Por isso, o Santo Padre recomenda aos sacerdotes que
o seu ensinamento e os seus conselhos estejam sempre em
sintonia com o Magistério autêntico da Igreja, preocupando-se
com todo o empenhamento pela unidade dos pareceres, para que
assim os fiéis não sejam expostos a conflitos de consciência
(cf. Familiaris consortio, 73).
O Papa
reserva uma importância especial à preparação dos agentes de
pastoral, que devem enfrentar desafios muito complexos e
exigentes, em instituições académica e pastoralmente adequadas
para tal empreendimento.
Hoje em dia,
as Conferências Episcopais reconhecem e encorajam a dimensão
prioritária da Pastoral da Família, do mesmo modo que as suas
estruturas dispõem de Comissões Episcopais para a família e a
vida.
João Paulo
II recomenda que, no âmbito das Dioceses e das Conferências
Episcopais, se constituam organismos que se ocupem da pastoral
familiar, para coordenar e vitalizar este trabalho a partir
das próprias famílias, das paróquias e dos movimentos, o que
redundará no revigoramento da pastoral orgânica nas suas
diversas manifestações (cf. Alocução do Santo Padre por
ocasião da X Assembléia Plenária do Pontifício Conselho para a
Família, 30 de Janeiro de 1993).
Seguindo as
orientações renovadoras do Sínodo para a Família, o Papa erigiu com
profunda intuição o Pontifício Conselho para a Família, o
Pontifício Instituto sobre o Matrimónio e a Família, na Pontifícia Universidade Lateranense e,
posteriormente, a Pontifícia Academia para a Vida.
III.
Empreendimentos sociais e políticos
O Santo
Padre dedicou uma atenção singular à família, a fim de que ela
não se feche em si mesma mas que, pelo contrário, se abra
plenamente à sociedade, com a qual “possui vínculos vitais e
orgânicos”, porque constitui o seu princípio e fundamento e,
como no-lo recorda a Familiaris consortio, citando o
Concílio Vaticano II, a sua “célula primeira e vital” (cf.
Familiaris consortio, 42; Apostolicam actuositatem,
11).
O Sínodo
para a Família lembrou que “a família constitui o lugar
natural e o instrumento mais eficaz de humanização e de
personalização da sociedade: ela colabora de maneira original
e profunda na construção do mundo, tornando possível uma vida
propriamente humana...” (Familiaris consortio, 43).
Em seguida,
João Paulo II alerta contra uma sociedade cada vez mais
massificada e despersonalizada, que se torna desumana e
desumanizadora (cf. ibidem).
A família é
uma forma insubstituível de expressão social e oferece uma
contribuição original. Por isso, o bem da família constitui um
bem indispensável e irrenunciável. As famílias devem
esforçar-se para que “as leis e as instituições do Estado não
apenas não ofendam, mas também protejam e defendam
positivamente os direitos e os deveres da família” (Ibid.,
n. 44). Numerosas famílias sofrem em virtude do menosprezo
destes direitos por parte de instituições e de leis (cf.
ibid., n. 46).
O Santo
Padre tem sido o advogado universal dos direitos fundamentais
da família, nos grandes foros mundiais, perante os Chefes de
Estado, nos vários Parlamentos e no diálogo com os políticos
em geral. Ele é um defensor decidido dos direitos, sobretudo
das famílias mais pobres, dos povos depauperados, submetidos
às políticas arbitrárias dos poderosos que, sem respeitar a
soberania dos mesmos, os agridem com pressões e exigências
indevidas, contrárias à sua cultura e dignidade.
É desta
forma que tem ressoado a sua palavra repleta de autoridade,
perante o mito da superpopulação, que serve de recurso para um
controle demográfico desrespeitador e desumano, com políticas
que constituem um instrumento de novas ideologias contra os
indivíduos mais frágeis.
Além disso,
João Paulo II chama a atenção para a concepção “neomalthusiana”,
que exclui do banquete da vida os menos favorecidos e
privilegia o domínio e a opulência dos prepotentes.
Assim, o
Papa assume plenamente o desafio apresentado no discurso de
Paulo VI à Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas
(4 de Outubro de 1965): “A vossa tarefa consiste em fazer com
que abunde o pão na mesa da humanidade e não em promover um
controle demográfico artificial, que seria irracional, em
vista de diminuir o número de convidados para o banquete da
vida”.
O Santo
Padre João Paulo II interpelou os Chefes de Estado, rejeitando
os estilos de vida falsos que se queriam impor na Conferência
do Cairo, e convidou os legisladores para que não elaborem
leis iníquas, mas dêem forma a um “corpus” de leis que
defendam e permitam o cumprimento da missão da família.
De resto, o
Papa denuncia os desafios de uma cultura da morte, que chegou
ao seu ápice, numa alargada confusão de conceitos, própria de
uma sociedade enferma, que procura transformar o “crime” em
“direito” (cf. Evangelium vitae, 11).
Diante dos
problemas enormes e dramáticos da justiça no mundo, da
liberdade e da paz, a família cristã “constitui uma energia
interior que dá origem, difunde e desenvolve a justiça, a
reconciliação, a fraternidade e a paz entre os homens” (Familiaris
consortio, 48). Depois, apelou para uma nova ordem
internacional, face às dimensões mundiais que caracterizam
estes problemas sociais.
Consciente
do seu papel social e político, que constitui um bem para a
humanidade, a família é chamada a ser coração da civilização
do amor. Foi este o tema a que se quis subordinar o primeiro
Encontro Mundial das Famílias, realizado em Roma em 1994.
É
impressionante a insistência com que o Sumo Pontífice pede
para que se compreenda como a hostilidade sistemática e
programada contra a família e a vida corrompe o tecido social
e suprime as esperanças dos povos que, desta maneira, não
podem garantir um futuro digno do homem. Diante dos fenómenos de progressiva deterioração da família, por parte de
legislações iníquas, o ensinamento do Papa João Paulo II
apresenta-se como uma consciência crítica forjada no Evangelho
que, ao mesmo tempo, convida a lutar a favor de tudo o que
realmente humaniza o homem. Trata-se de uma grave
responsabilidade que cabe aos políticos.
A democracia
não se deve transformar numa ditadura das maiorias nos
Parlamentos, voltada contra o verdadeiro bem da sociedade. É
uma forma de “verdade política”, que se impõe arbitrariamente.
Assim, o Papa recomenda o respeito pelo espírito do direito.
“Isto significa que as leis, independentemente dos campos em
que o legislador intervém ou que se vê obrigado a intervir,
devem respeitar e promover sempre as pessoas humanas nas suas
diversificadas exigências espirituais e materiais,
individuais, familiares e sociais. Por conseguinte, uma lei
que não respeita o direito pela vida do ser humano desde a
concepção até à sua morte natural, independentemente da
condição em que se encontra, sadio ou enfermo, mesmo em estado
embrionário, idoso ou em estado terminal não é uma lei
conforme com o desígnio divino” (João Paulo II, Discurso
durante o Jubileu dos Governantes, Parlamentares e Políticos,
4 de Novembro de 2000).
E na Carta a
Diogneto, podemos ler: “Aquilo que é a alma no corpo, são os
cristãos no mundo” (VI.1, Funk 322). O Evangelho da família
há-de ressoar no mundo, devendo suscitar aquele “assombro
primordial que, na manhã da criação, impele Adão a exclamar à
vista de Eva: “É carne da minha carne e osso dos meus ossos”
(cf. Gn 2, 23)” (Gratissimam sane, 19). É a
realidade do matrimónio, património da humanidade, que o
Senhor elevou à altíssima dignidade de sacramento, na
abundância do seu amor. Ao Evangelho, que reanima e humaniza o
mundo inteiro, João Paulo II consagrou a melhor parte das suas
preciosas energias.
Santo Padre,
por toda a sua solicitude ministerial e magisterial, e de
maneira particular por tudo aquilo que Vossa Santidade já fez
e continua a realizar incansavelmente durante estes vinte e
cinco anos, em benefício da promoção da família e da vida,
desejo renovar, Santidade, inclusive em nome de todos nós que,
em diversos campos, fomos generosamente associados à sua
histórica batalha pela verdade, a expressão do meu
reconhecimento e da minha gratidão.
O Senhor
Jesus Cristo, Senhor da família e da vida, proteja sempre
Vossa Santidade e o assista no seu generoso dom como seu
Vigário na terra.
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