DO SUMO PONTÍFICE JOÃO PAULO II
AOS PRESBÍTEROS E DIÁCONOS
AOS RELIGIOSOS E RELIGIOSAS
AOS FIÉIS LEIGOS
E A TODAS AS PESSOAS DE BOA VONTADE
SOBRE O VALOR E A INVIOLABILIDADE DA VIDA
HUMANA
INTRODUÇÃO
1. O Evangelho da vida está no centro da mensagem de Jesus.
Amorosamente acolhido cada dia pela Igreja, há-de ser fiel e
corajosamente anunciado como boa nova aos homens de todos os
tempos e culturas.
Na aurora da salvação, é proclamado como feliz notícia o
nascimento de um menino: «Anuncio-vos uma grande alegria, que
o será para todo o povo: Hoje, na cidade de David, nasceu-vos
um Salvador, que é o Messias, Senhor» (Lc 2, 10-11). O motivo
imediato que faz irradiar esta «grande alegria» é, sem
dúvida, o nascimento do Salvador; mas, no Natal, manifesta-se
também o sentido pleno de todo o nascimento humano, pelo que a
alegria messiânica se revela fundamento e plenitude da alegria
por cada criança que nasce (cf. Jo 16, 21).
Ao apresentar o núcleo central da sua missão redentora,
Jesus diz: «Eu vim para que tenham vida, e a tenham em
abundância» (Jo 10, 10). Ele fala daquela vida «nova» e «eterna» que consiste na comunhão com o Pai, à qual todo o
homem é gratuitamente chamado no Filho, por obra do Espírito
Santificador. Mas é precisamente em tal «vida» que todos os
aspectos e momentos da vida do homem adquirem pleno
significado.
O valor incomparável da pessoa humana
2. O homem é chamado a uma plenitude de vida que se estende
muito para além das dimensões da sua existência terrena,
porque consiste na participação da própria vida de Deus.
A sublimidade desta vocação sobrenatural revela a grandeza
e o valor precioso da vida humana, inclusive já na sua fase
temporal. Com efeito, a vida temporal é condição basilar,
momento inicial e parte integrante do processo global e
unitário da existência humana: um processo que, para além de
toda a expectativa e merecimento, fica iluminado pela promessa
e renovado pelo dom da vida divina, que alcançará a sua plena
realização na eternidade (cf. 1 Jo 3, 1-2). Ao mesmo tempo,
porém, o próprio chamamento sobrenatural sublinha a
relatividade da vida terrena do homem e da mulher. Na verdade,
esta vida não é realidade «última», mas «penúltima»;
trata-se, em todo o caso, de uma realidade sagrada que nos é
confiada para a guardarmos com sentido de responsabilidade e
levarmos à perfeição no amor pelo dom de nós mesmos a Deus e
aos irmãos.
A Igreja sabe que este Evangelho da vida, recebido do seu
Senhor,1 encontra um eco profundo e persuasivo no coração de
cada pessoa, crente e até não crente, porque se ele supera
infinitamente as suas aspirações, também lhes corresponde de
maneira admirável. Mesmo por entre dificuldades e incertezas,
todo o homem sinceramente aberto à verdade e ao bem pode, pela
luz da razão e com o secreto influxo da graça, chegar a
reconhecer, na lei natural inscrita no coração (cf. Rm 2,
14-15), o valor sagrado da vida humana desde o seu início até
ao seu termo, e afirmar o direito que todo o ser humano tem de
ver plenamente respeitado este seu bem primário. Sobre o
reconhecimento de tal direito é que se funda a convivência
humana e a própria comunidade política.
De modo particular, devem defender e promover este direito
os crentes em Cristo, conscientes daquela verdade maravilhosa,
recordada pelo Concílio Vaticano II: «Pela sua encarnação,
Ele, o Filho de Deus, uniu-Se de certo modo a cada homem».2
De facto, neste acontecimento da salvação, revela-se à
humanidade não só o amor infinito de Deus que «amou de tal
modo o mundo que lhe deu o seu Filho único» (Jo 3, 16), mas
também o valor incomparável de cada pessoa humana.
A Igreja, perscrutando assiduamente o mistério da Redenção,
descobre com assombro incessante 3 este valor, e sente-se
chamada a anunciar aos homens de todos os tempos este «evangelho», fonte de esperança invencível e de alegria
verdadeira para cada época da história. O Evangelho do amor de
Deus pelo homem, o Evangelho da dignidade da pessoa e o
Evangelho da vida são um único e indivisível Evangelho.
É por este motivo que o homem, o homem vivo, constitui o
primeiro e fundamental caminho da Igreja.4
As novas ameaças à vida humana
3. Precisamente por causa do mistério do Verbo de Deus que
Se fez carne (cf. Jo 1, 14), cada homem está confiado à
solicitude materna da Igreja. Por isso, qualquer ameaça à
dignidade e à vida do homem não pode deixar de se repercutir
no próprio coração da Igreja, é impossível não a tocar no
centro da sua fé na encarnação redentora do Filho de Deus, não
pode passar sem a interpelar na sua missão de anunciar o
Evangelho da vida pelo mundo inteiro a toda a criatura (cf. Mc
16, 15).
Hoje, este anúncio torna-se particularmente urgente pela
impressionante multiplicação e agravamento das ameaças à vida
das pessoas e dos povos, sobretudo quando ela é débil e
indefesa. Às antigas e dolorosas chagas da miséria, da fome,
das epidemias, da violência e das guerras, vêm-se juntar
outras com modalidades inéditas e dimensões inquietantes.
Já o Concílio Vaticano II, numa página de dramática
actualidade, deplorou fortemente os múltiplos crimes e
atentados contra a vida humana. À distância de trinta anos e
fazendo minhas as palavras da Assembleia Conciliar, uma vez
mais e com idêntica força os deploro em nome da Igreja
inteira, com a certeza de interpretar o sentimento autêntico
de toda a consciência recta: «Tudo quanto se opõe à vida,
como seja toda a espécie de homicídio, genocídio, aborto,
eutanásia e suicídio voluntário; tudo o que viola a
integridade da pessoa humana, como as mutilações, os tormentos
corporais e mentais e as tentativas para violentar as próprias
consciências; tudo quanto ofende a dignidade da pessoa humana,
como as condições de vida infra-humanas, as prisões
arbitrárias, as deportações, a escravidão, a prostituição, o
comércio de mulheres e jovens; e também as condições
degradantes de trabalho, em que os operários são tratados como
meros instrumentos de lucro e não como pessoas livres e
responsáveis. Todas estas coisas e outras semelhantes são
infamantes; ao mesmo tempo que corrompem a civilização humana,
desonram mais aqueles que assim procedem, do que os que
padecem injustamente; e ofendem gravemente a honra devida ao
Criador».5
4. Infelizmente, este panorama inquietante, longe de
diminuir, tem vindo a dilatar-se: com as perspectivas abertas
pelo progresso científico e tecnológico, nascem outras formas
de atentados à dignidade do ser humano, enquanto se delineia e
consolida uma nova situação cultural que dá aos crimes contra
a vida um aspecto inédito e - se é possível - ainda mais
iníquo, suscitando novas e graves preocupações: amplos
sectores da opinião pública justificam alguns crimes contra a
vida em nome dos direitos da liberdade individual e, sobre tal
pressuposto, pretendem não só a sua impunidade mas ainda a
própria autorização da parte do Estado para os praticar com
absoluta liberdade e, mais, com a colaboração gratuita dos
Serviços de Saúde.
Ora, tudo isto provoca uma profunda alteração na maneira de
considerar a vida e as relações entre os homens. O facto de as
legislações de muitos países, afastando-se quiçá dos próprios
princípios basilares das suas Constituições, terem consentido
em não punir ou mesmo até reconhecer a plena legitimidade de
tais acções contra a vida, é conjuntamente sintoma preocupante
e causa não marginal de uma grave derrocada moral: opções,
outrora consideradas unanimemente criminosas e rejeitadas pelo
senso moral comum, tornam-se pouco a pouco socialmente
respeitáveis. A própria medicina que, por vocação, se orienta
para a defesa e cuidado da vida humana, em alguns dos seus
sectores vai-se prestando em escala cada vez maior a realizar
tais actos contra a pessoa, e, deste modo, deforma o seu
rosto, contradiz-se a si mesma e humilha a dignidade de
quantos a exercem. Em semelhante contexto cultural e legal, os
graves problemas demográficos, sociais ou familiares - que
incidem sobre numerosos povos do mundo e exigem a atenção
responsável e operante das comunidades nacionais e
internacionais -, encontram-se também sujeitos a soluções
falsas e ilusórias, em contraste com a verdade e o bem das
pessoas e das nações.
O resultado de tudo isto é dramático: se é muitíssimo grave
e preocupante o fenómeno da eliminação de tantas vidas humanas
nascentes ou encaminhadas para o seu ocaso, não o é menos o
facto de à própria consciência, ofuscada por tão vastos
condicionalismos, lhe custar cada vez mais a perceber a
distinção entre o bem e o mal, precisamente naquilo que toca o
fundamental valor da vida humana.
Em comunhão com todos os Bispos do mundo
5. Ao problema das ameaças à vida humana no nosso tempo,
foi dedicado o Consistório Extraordinário dos Cardeais,
realizado em Roma de 4 a 7 de Abril de 1991. Depois de amplo e
profundo debate do problema e dos desafios postos à família
humana inteira e, de modo particular, à Comunidade cristã, os
Cardeais, com voto unânime, pediram-me que reafirmasse, com a
autoridade do Sucessor de Pedro, o valor da vida humana e a
sua inviolabilidade, à luz das circunstâncias actuais e dos
atentados que hoje a ameaçam.
Acolhendo tal pedido, no Pentecostes de 1991 escrevi uma
carta pessoal a cada Irmão no Episcopado para que, em espírito
de colegialidade, me oferecesse a sua colaboração com vista à
elaboração de um específico documento.6 Agradeço profundamente
a todos os Bispos que responderam, fornecendo-me preciosas
informações, sugestões e
propostas. Deram também assim testemunho da sua
participação concorde e convicta na missão doutrinal e
pastoral da Igreja acerca do Evangelho da vida.
Nessa mesma carta, que fora enviada poucos dias depois da
celebração do centenário da Encíclica Rerum novarum, chamava a
atenção de todos para esta singular analogia: «Como há um
século, oprimida nos seus direitos fundamentais era a classe
operária, e a Igreja com grande coragem tomou a sua defesa,
proclamando os sacrossantos direitos da pessoa do trabalhador,
assim agora, quando outra categoria de pessoas é oprimida no
direito fundamental à vida, a Igreja sente que deve, com igual
coragem, dar voz a quem a não tem. O seu é sempre o grito
evangélico em defesa dos pobres do mundo, de quantos estão
ameaçados, desprezados e oprimidos nos seus direitos humanos».7
Espezinhada no direito fundamental à vida, é hoje uma
grande multidão de seres humanos débeis e indefesos, como o
são, em particular, as crianças ainda não nascidas. Se, ao
findar do século passado, não fora consentido à Igreja calar
perante as injustiças então reinantes, menos ainda pode ela
calar hoje, quando às injustiças sociais do passado -
infelizmente ainda não superadas - se vêm somar, em tantas
partes do mundo, injustiças e opressões ainda mais graves,
mesmo se disfarçadas em elementos de progresso com vista à
organização de uma nova ordem mundial.
A presente Encíclica, fruto da colaboração do Episcopado de
cada país do mundo, quer ser uma reafirmação precisa e firme
do valor da vida humana e da sua inviolabilidade, e,
conjuntamente, um ardente apelo dirigido em nome de Deus a
todos e cada um: respeita, defende, ama e serve a vida, cada
vida humana! Unicamente por esta estrada, encontrarás justiça,
progresso, verdadeira liberdade, paz e felicidade!
Cheguem estas palavras a todos os filhos e filhas da
Igreja! Cheguem a todas as pessoas de boa vontade, solícitas
pelo bem de cada homem e mulher e pelo destino da sociedade
inteira!
6. Em profunda comunhão com cada irmão e irmã na fé e
animado por sincera amizade para com todos, quero meditar de
novo e anunciar o Evangelho da vida, clara luz que ilumina as
consciências, esplendor de verdade que cura o olhar ofuscado,
fonte inexaurível de constância e coragem para enfrentar os
desafios sempre novos que encontramos no nosso caminho.
Tendo no pensamento a rica experiência vivida durante o Ano
da Família, e quase completando idealmente a Carta que dirigi
«a cada família concreta de cada região da terra»,8 olho com
renovada confiança para todas as comunidades domésticas e faço
votos por que renasça ou se reforce, em todos e aos diversos
níveis, o compromisso de apoiarem a família, para que também
hoje - mesmo no meio de numerosas dificuldades e graves
ameaças - ela se conserve sempre, segundo o desígnio de Deus,
como «santuário da vida».9
A todos os membros da Igreja, povo da vida e pela vida,
dirijo o mais premente convite para que, juntos, possamos dar
novos sinais de esperança a este nosso mundo, esforçando-nos
por que cresçam a justiça e a solidariedade e se afirme uma
nova cultura da vida humana, para a edificação de uma
autêntica civilização da verdade e do amor.
CAPÍTULO I
A VOZ DO SANGUE DO TEU IRMÃO CLAMA DA TERRA ATÉ MIM
AS ACTUAIS AMEAÇAS À VIDA HUMANA
«Caim levantou a mão contra o irmão Abel e matou-o» (Gn 4,
8): na raiz da violência contra a vida
7. «Deus não é o autor da morte, a perdição dos vivos não
Lhe dá nenhuma alegria. Porquanto Ele criou tudo para a
existência. (...) Com efeito, Deus criou o homem para a
incorruptibilidade, e fê-lo à imagem da Sua própria
natureza. Por inveja do demónio é que a morte entrou no mundo
e prová-la-ão os que pertencem ao demónio» (Sab 1, 13-14; 2,
23-24).
O Evangelho da vida, que ressoa, logo ao princípio, com a
criação do homem à imagem de Deus para um destino de vida
plena e perfeita (cf. Gn 2, 7; Sab 9, 2-3), vê-se contestado
pela experiência dilacerante da morte que entra no mundo,
lançando o espectro da falta de sentido sobre toda a
existência do homem.
A morte entra por causa da inveja do diabo (cf. Gn 3,
1.4-5) e do pecado dos primeiros pais (cf. Gn 2, 17; 3,
17-19). E entra de modo violento, através do assassínio de
Abel por obra do seu irmão: «Logo que chegaram ao campo, Caim
levantou a mão contra o irmão Abel e matou-o» (Gn 4, 8).
Este primeiro assassínio é apresentado, com singular
eloquência, numa página paradigmática do Livro do Génesis:
página transcrita cada dia, sem cessar e com degradante
repetição, no livro da história dos povos.
Queremos ler de novo, juntos, esta página bíblica, que,
apesar do seu aspecto arcaico e extrema simplicidade, se
apresenta riquíssima de ensinamentos.
«Abel foi pastor; e Caim, lavrador. Ao fim de algum tempo,
Caim apresentou ao Senhor uma oferta de frutos da terra. Por
seu lado, Abel ofereceu primogénitos do seu rebanho e as
gorduras deles. O Senhor olhou favoravelmente para Abel e para
a sua oferta, mas não olhou para Caim nem para a sua oferta.
Caim ficou muito irritado e o rosto transtornou-se-lhe. O
Senhor disse a Caim: "Porque estás zangado e o teu rosto
abatido? Se procederes bem, certamente voltarás a erguer o
rosto; se procederes mal, o pecado deitar-se-á à tua porta e
andará a espreitar-te. Cuidado, pois ele tem muita inclinação
para ti, mas deves dominá-lo".
Entretanto, Caim disse a Abel, seu irmão: "Vamos ao campo".
Porém, logo que chegaram ao campo, Caim levantou a mão contra
o irmão Abel e matou-o.
O Senhor disse a Caim: "Onde está Abel, teu irmão?" Caim
respondeu: "Não sei dele. Sou, porventura, guarda do meu
irmão?" O Senhor replicou: "Que fizeste? A voz do sangue do
teu irmão clama da terra até Mim. De futuro, serás maldito
sobre a terra que abriu a sua boca para beber da tua mão o
sangue do teu irmão. Quando a cultivares, negar-te-á as suas
riquezas. Serás vagabundo e fugitivo sobre a terra".
Caim disse ao Senhor: "A minha culpa é grande demais para
obter perdão! Expulsas-me hoje desta terra; obrigado a
ocultar-me longe da tua face, terei de andar fugitivo e
vagabundo pela terra, e o primeiro a encontrar-me matar-me-á".
O Senhor respondeu: "Não, se alguém matar Caim, será
castigado sete vezes mais". E o Senhor marcou-o com um sinal,
a fim de nunca ser morto por quem o viesse a encontrar. Caim
afastou-se da presença do Senhor e foi residir na região de
Nod, ao oriente do Éden» (Gn 4, 2-16).
8. Caim está «muito irritado» e tem o rosto «transtornado», porque
«o Senhor olhou favoravelmente para
Abel e para a sua oferta» (Gn 4, 4). O texto bíblico não
revela o motivo pelo qual Deus preferiu o sacrifício de Abel
ao de Caim; mas indica claramente que, mesmo preferindo a
oferta de Abel, não interrompe o seu diálogo com Caim.
Acautela-o, recordando-lhe a sua liberdade frente ao mal: o
homem não está de forma alguma predestinado para o mal.
Certamente, à semelhança de Adão, ele é tentado pela força
maléfica do pecado que, como um animal feroz, se agacha à
porta do seu coração, à espera de lançar-se sobre a presa. Mas
Caim permanece livre diante do pecado. Pode e deve dominá-lo:
«Cuidado, pois ele tem muita inclinação para ti, mas deves
dominá-lo» (Gn 4, 7).
Sobre a advertência feita pelo Senhor, porém, levam a
melhor o ciúme e a ira, e Caim atira-se contra o próprio irmão
e mata-o. Como lemos no Catecismo da Igreja Católica, «a
Sagrada Escritura, na narrativa da morte de Abel por seu irmão
Caim, revela, desde os primórdios da história humana, a
presença no homem da cólera e da inveja, consequências do
pecado original. O homem tornou-se inimigo do seu semelhante».10
O irmão mata o irmão. Como naquele primeiro fratricídio,
também em cada homicídio é violado o parentesco «espiritual»
que congrega os homens numa única grande família,11 sendo
todos participantes do mesmo bem fundamental: a igual
dignidade pessoal. E, não raro, resulta violado também o
parentesco «da carne e do sangue», quando, por exemplo, as
ameaças à vida se verificam ao nível do relacionamento pais e
filhos, como sucede com o aborto ou quando, no mais vasto
contexto familiar ou de parentela, é encorajada ou provocada a
eutanásia.
Na raiz de qualquer violência contra o próximo, há uma
cedência à «lógica» do maligno, isto é, daquele que «foi
assassino desde o princípio» (Jo 8, 44), como nos recorda o
apóstolo João: «Porque esta é a mensagem que ouvistes desde o
princípio: que nos amemos uns aos outros. Não seja como Caim
que era do maligno, e matou o seu irmão» (1 Jo 3, 11-12).
Assim o assassinato do irmão, desde os alvores da história, é
o triste testemunho de como o mal progride com rapidez
impressionante: à revolta do homem contra Deus no paraíso
terreal segue-se a luta mortal do homem contra o homem.
Depois do crime, Deus intervém para vingar a vítima. Frente
a Deus que o interroga sobre a sorte de Abel, Caim, em vez de
se mostrar confundido e desculpar-se, esquiva-se à pergunta
com arrogância: «Não sei dele. Sou, porventura, guarda do meu
irmão?» (Gn 4, 9). «Não sei dele»: com a mentira, Caim
procura encobrir o crime. Assim aconteceu frequentemente e
continua a verificar-se quando se servem das mais diversas
ideologias para justificar e mascarar os crimes mais atrozes
contra a pessoa. «Sou, porventura, guarda do meu irmão?»:
Caim não quer pensar no irmão, e recusa-se a assumir aquela
responsabilidade que cada homem tem pelo outro. Saltam
espontaneamente ao pensamento as tendências actuais para
sonegar a responsabilidade do homem pelo seu semelhante, de
que são sintomas, entre outros, a falta de solidariedade com
os membros mais débeis da sociedade - como são os idosos, os
doentes, os imigrantes, as crianças -, e a indiferença que
tantas vezes se regista nas relações entre os povos, mesmo
quando estão em jogo valores fundamentais como a
sobrevivência, a liberdade e a paz.
9. Mas Deus não pode deixar impune o crime: da terra onde
foi derramado, o sangue da vítima exige que Ele faça justiça
(cf. Gn 37, 26; Is 26, 21; Ez 24, 7-8). Deste texto, a Igreja
retirou a denominação de «pecados que bradam ao Céu»,
incluindo em primeiro lugar o homicídio voluntário.12 Para os
hebreus, como para muitos povos da antiguidade, o sangue é a
sede da vida, ou melhor «o sangue é a vida» (Dt 12, 23), e a
vida, sobretudo a humana, pertence unicamente a Deus: por
isso, quem atenta contra a vida do homem, de algum modo atenta
contra o próprio Deus.
Caim é amaldiçoado por Deus como também pela terra, que lhe
recusará os seus frutos (cf. Gn 4, 11-12). E é punido: habitará
em terras agrestes e desertas. A violência homicida altera
profundamente o ambiente da vida do homem. A terra, que era o
«jardim do Éden» (Gn 2, 15), lugar de abundância, de serenas
relações interpessoais e de amizade com Deus, torna-se o «país de Nod» (Gn 4, 16), lugar de
«miséria», de solidão e
de afastamento de Deus. Caim será «fugitivo e vagabundo pela
terra» (Gn 4, 14): dúvida e instabilidade sempre o
acompanharão.
Contudo Deus, misericordioso mesmo quando castiga, «marcou
com um sinal, a fim de nunca ser morto por quem o viesse a
encontrar» (Gn 4, 15): põe-lhe um sinal, cujo objectivo não é
condená-lo à abominação dos outros homens, mas protegê-lo e
defendê-lo daqueles que o quiserem matar, ainda que seja para
vingar a morte de Abel. Nem sequer o homicida perde a sua
dignidade pessoal e o próprio Deus Se constitui seu garante. E
é precisamente aqui que se manifesta o mistério paradoxal da
justiça misericordiosa de Deus, como escreve Santo Ambrósio: «Visto que tinha sido cometido um fratricídio - ou seja, o
maior dos crimes -, no momento em que se introduziu o pecado,
teve imediatamente de ser ampliada a lei da misericórdia
divina; para que, caso o castigo atingisse imediatamente o
culpado, não sucedesse que os homens, ao punirem, não usassem
de qualquer tolerância nem mansidão, mas entregassem
imediatamente ao castigo os culpados. (...) Deus repeliu Caim
da sua presença e, renegado pelos seus pais, como que o
desterrou para o exílio de uma habitação separada, pelo facto
de ter passado da mansidão humana à crueldade selvagem.
Todavia Deus não quer punir o homicida com um homicídio,
porque prefere o arrependimento do pecador à sua morte».13
«Que fizeste?» (Gn 4, 10): o eclipse do valor da vida
10. O Senhor disse a Caim: «Que fizeste? A voz do sangue
do teu irmão clama da terra até Mim» (Gn 4, 10). A voz do
sangue derramado pelos homens não cessa de clamar, de geração
em geração, assumindo tons e acentos sempre novos e diversos.
A pergunta do Senhor «que fizeste?», à qual Caim não se
pode esquivar, é dirigida também ao homem contemporâneo, para
que tome consciência da amplitude e gravidade dos atentados à
vida que continuam a registar-se na história da humanidade,
para que vá à procura das múltiplas causas que os geram e
alimentam, e, enfim, para que reflicta com extrema seriedade
sobre as consequências que derivam desses mesmos atentados
para a existência das pessoas e dos povos.
Algumas ameaças provêm da própria natureza, mas são
agravadas pelo descuido culpável e pela negligência dos homens
que, não raro, lhes poderiam dar remédio; outras, ao
contrário, são fruto de situações de violência, de ódio, de
interesses contrapostos, que induzem homens a agredirem outros
homens com homicídios, guerras, massacres, genocídios.
Como não pensar na violência causada à vida de milhões de
seres humanos, especialmente crianças, constrangidos à
miséria, à subnutrição e à fome, por causa da iníqua
distribuição das riquezas entre os povos e entre as classes
sociais? Ou na violência inerente às guerras, e ainda antes
delas, ao escandaloso comércio de armas, que favorece o
torvelinho de tantos conflitos armados que ensanguentam o
mundo? Ou então na sementeira de morte que se provoca com a
imprudente alteração dos equilíbrios ecológicos, com a
criminosa difusão da droga, ou com a promoção do uso da
sexualidade segundo modelos que, além de serem moralmente
inaceitáveis, acarretam ainda graves riscos para a vida? É
impossível registar de modo completo a vasta gama das ameaças
à vida humana, tantas são as formas, abertas ou camufladas, de
que se revestem no nosso tempo!
11. Mas queremos concentrar a nossa atenção, de modo
particular, sobre outro género de atentados, relativos à vida
nascente e terminal, que apresentam novas características em
relação ao passado e levantam problemas de singular gravidade:
é que, na consciência colectiva, aqueles tendem a perder o
carácter de «crimes» para assumir, paradoxalmente, o
carácter de «direitos», a ponto de se pretender um
verdadeiro e próprio reconhecimento legal da parte do Estado e
a consequente execução gratuita por intermédio dos
profissionais da saúde. Tais atentados ferem a vida humana em
situações de máxima fragilidade, quando se acha privada de
qualquer capacidade de defesa. Mais grave ainda é o facto de
serem consumados, em grande parte, mesmo no seio e por obra da
família que está, pelo contrário, chamada constitutivamente a
ser «santuário da vida».
Como se pôde criar semelhante situação? Há que tomar em
consideração diversos factores. Como pano de fundo, existe uma
crise profunda da cultura, que gera cepticismo sobre os
próprios fundamentos do conhecimento e da ética e torna cada
vez mais difícil compreender claramente o sentido do homem,
dos seus direitos e dos seus deveres. A isto, vêm juntar-se as
mais diversas dificuldades existenciais e interpessoais,
agravadas pela realidade de uma sociedade complexa, onde
frequentemente as pessoas, os casais, as famílias são deixadas
sozinhas a braços com os seus problemas. Não faltam situações
de particular pobreza, angústia e exasperação, onde a luta
pela sobrevivência, a dor nos limites do suportável, as
violências sofridas, especialmente aquelas que investem as
mulheres, tornam por vezes exigentes até ao heroísmo as opções
de defesa e promoção da vida.
Tudo isto explica - pelo menos em parte - como possa o
valor da vida sofrer hoje uma espécie de «eclipse», apesar
da consciência não cessar de o apontar como valor sagrado e
intocável; e comprova-o o próprio fenómeno de se procurar
encobrir alguns crimes contra a vida nascente ou terminal com
expressões de âmbito terapêutico, que desviam o olhar do facto
de estar em jogo o direito à existência de uma pessoa humana
concreta.
12. Com efeito, se muitos e graves aspectos da problemática
social actual podem, de certo modo, explicar o clima de difusa
incerteza moral e, por vezes, atenuar a responsabilidade
subjectiva no indivíduo, não é menos verdade que estamos
perante uma realidade mais vasta que se pode considerar como
verdadeira e própria estrutura de pecado, caracterizada pela
imposição de uma cultura anti-solidária, que em muitos casos
se configura como verdadeira «cultura de morte». É
activamente promovida por fortes correntes culturais,
económicas e políticas, portadoras de uma concepção eficientista da sociedade.
Olhando as coisas deste ponto de vista, pode-se, em certo
sentido, falar de uma guerra dos poderosos contra os débeis: a
vida que requereria mais acolhimento, amor e cuidado, é
reputada inútil ou considerada como um peso insuportável, e,
consequentemente, rejeitada sob múltiplas formas. Todo aquele
que, pela sua enfermidade, a sua deficiência ou, mais
simplesmente ainda, a sua própria presença, põe em causa o
bem-estar ou os hábitos de vida daqueles que vivem mais
avantajados, tende a ser visto como um inimigo do qual
defender-se ou um inimigo a eliminar. Desencadeia-se assim uma
espécie de «conjura contra a vida». Esta não se limita
apenas a tocar os indivíduos nas suas relações pessoais,
familiares ou de grupo, mas alarga-se muito para além até
atingir e subverter, a nível mundial, as relações entre os
povos e os Estados.
13. Para facilitar a difusão do aborto, foram investidas -
e continuam a sê-lo - somas enormes, destinadas à criação de
fármacos que tornem possível a morte do feto no ventre
materno, sem necessidade de recorrer à ajuda do médico. A
própria investigação científica, neste âmbito, parece quase
exclusivamente preocupada em obter produtos cada vez mais
simples e eficazes contra a vida e, ao mesmo tempo, capazes de
subtrair o aborto a qualquer forma de controlo e
responsabilidade social.
Afirma-se frequentemente que a contracepção, tornada segura
e acessível a todos, é o remédio mais eficaz contra o aborto.
E depois acusa-se a Igreja Católica de, na realidade,
favorecer o aborto, porque continua obstinadamente a ensinar a
ilicitude moral da contracepção.
Bem vista, porém, a objecção é falaciosa. De facto, pode
acontecer que muitos recorram aos contraceptivos com a
intenção também de evitar depois a tentação do aborto. Mas os
pseudo-valores inerentes à «mentalidade contraceptiva» -
muito diversa do exercício responsável da paternidade e
maternidade, actuada no respeito pela verdade plena do acto
conjugal - são tais que tornam ainda mais forte essa tentação,
na eventualidade de ser concebida uma vida não desejada. De
facto, a cultura pro-aborto aparece sobretudo desenvolvida nos
mesmos ambientes que recusam o ensinamento da Igreja sobre a
contracepção. Certo é que a contracepção e o aborto são males
especificamente diversos do ponto de vista moral: uma
contradiz a verdade integral do acto sexual enquanto expressão
própria do amor conjugal, o outro destrói a vida de um ser
humano; a primeira opõe-se à virtude da castidade matrimonial,
o segundo opõe-se à virtude da justiça e viola directamente o
preceito divino «não matarás».
Mas, apesar de terem natureza e peso moral diversos, eles
surgem, com muita frequência, intimamente relacionados como
frutos da mesma planta. É verdade que não faltam casos onde, à
contracepção e ao próprio aborto se vem juntar a pressão de
diversas dificuldades existenciais que, no entanto, não podem
nunca exonerar do esforço de observar plenamente a lei de
Deus. Mas, em muitíssimos outros casos, tais práticas afundam
as suas raízes numa mentalidade hedonista e
desresponsabilizadora da sexualidade, e supõem um conceito
egoísta da liberdade que vê na procriação um obstáculo ao
desenvolvimento da própria personalidade. A vida que poderia
nascer do encontro sexual torna-se assim o inimigo que se
há-de evitar absolutamente, e o aborto a única solução
possível diante de uma contracepção falhada.
Infelizmente, emerge cada vez mais a estreita conexão que
existe, a nível de mentalidade, entre as práticas da
contracepção e do aborto, como o demonstra, de modo alarmante,
a produção de fármacos, dispositivos intra-uterinos e
preservativos, os quais, distribuídos com a mesma facilidade
dos contraceptivos, actuam na prática como abortivos nos
primeiros dias de desenvolvimento da vida do novo ser humano.
14. Também as várias técnicas de reprodução artificial, que
pareceriam estar ao serviço da vida e que, não raro, são
praticadas com essa intenção, na realidade abrem a porta a
novos atentados contra a vida. Para além do facto de serem
moralmente inaceitáveis, porquanto separam a procriação do
contexto integralmente humano do acto conjugal,14 essas
técnicas registam altas percentagens de insucesso: este diz
respeito não tanto à fecundação como sobretudo ao
desenvolvimento sucessivo do embrião, sujeito ao risco de
morte em tempos geralmente muito breves. Além disso, são
produzidos às vezes embriões em número superior ao necessário
para a implantação no útero da mulher e esses, chamados «embriões supranumerários», são depois suprimidos ou
utilizados para pesquisas que, a pretexto de progresso
científico ou médico, na realidade reduzem a vida humana a
simples «material biológico», de que se pode livremente
dispor.
Os diagnósticos pré-natais, que não apresentam dificuldades
morais quando feitos para individuar a eventualidade de curas
necessárias à criança ainda no seio materno, tornam-se, com
muita frequência, ocasião para propor e solicitar o aborto. É
o aborto eugénico, cuja legitimação, na opinião pública, nasce
de uma mentalidade - julgada, erradamente, coerente com as
exigências «terapêuticas» - que acolhe a vida apenas sob
certas condições, e que recusa a limitação, a deficiência, a
enfermidade.
Seguindo a mesma lógica, chegou-se a negar os cuidados
ordinários mais elementares, mesmo até a alimentação, a
crianças nascidas com graves deficiências ou enfermidades. E o
cenário contemporâneo apresenta-se ainda mais desconcertante
com as propostas - avançadas aqui e além - para, na mesma
linha do direito ao aborto, se legitimar até o infanticídio,
retornando assim a um estado de barbárie que se esperava
superado para sempre.
15. Ameaças não menos graves pesam também sobre os doentes
incuráveis e os doentes terminais, num contexto social e
cultural que, tornando mais difícil enfrentar e suportar o
sofrimento, aviva a tentação de resolver o problema do
sofrimento eliminando-o pela raiz, com a antecipação da morte
para o momento considerado mais oportuno.
Para tal decisão concorrem, muitas vezes, elementos de
natureza diversa mas infelizmente convergentes para essa
terrível saída. Pode ser decisivo, na pessoa doente, o
sentimento de angústia, exasperação, ou até desespero,
provocado por uma experiência de dor intensa e prolongada.
Vêem-se, assim, duramente postos à prova os equilíbrios, por
vezes já abalados, da vida pessoal e familiar, de maneira que,
por um lado, o doente, não obstante os auxílios cada vez mais
eficazes da assistência médica e social, corre o risco de se
sentir esmagado pela própria fragilidade; por outro lado,
naqueles que lhe estão afectivamente ligados, pode gerar-se um
sentimento de compreensível, ainda que mal-entendida,
compaixão. Tudo isto fica agravado por uma atmosfera cultural
que não vê qualquer significado nem valor no sofrimento, antes
considera-o como o mal por excelência, que se há-de eliminar a
todo o custo; isto verifica-se especialmente quando não se
possui uma visão religiosa que ajude a decifrar positivamente
o mistério da dor.
Mas, no conjunto do horizonte cultural, não deixa de
incidir também uma espécie de atitude prometeica do homem que,
desse modo, se ilude de poder apropriar-se da vida e da morte
para decidir delas, quando na realidade acaba derrotado e
esmagado por uma morte irremediavelmente fechada a qualquer
perspectiva de sentido e a qualquer esperança. Uma trágica
expressão de tudo isto, encontramo-la na difusão da eutanásia,
ora mascarada e subreptícia, ora actuada abertamente e até
legalizada. Para além do motivo de suposta compaixão diante
da dor do paciente, às vezes pretende-se justificar a
eutanásia também com uma razão utilitarista, isto é, para
evitar despesas improdutivas demasiado gravosas para a
sociedade. Propõe-se, assim, a supressão dos recém-nascidos
defeituosos, dos deficientes profundos, dos inválidos, dos
idosos, sobretudo quando não auto-suficientes, e dos doentes
terminais. Nem nos é lícito calar frente a outras formas mais
astuciosas, mas não menos graves e reais, de eutanásia, como
são as que se poderiam verificar, por exemplo, quando, para
aumentar a disponibilidade de material para transplantes, se
procedesse à extracção dos órgãos sem respeitar os critérios
objectivos e adequados de certificação da morte do dador.
16. Outro motivo actual, que frequentemente é acompanhado
por ameaças e atentados à vida, é o fenómeno demográfico. Este
reveste aspectos diversos, nas várias partes do mundo: nos
países ricos e desenvolvidos, regista-se uma preocupante
diminuição ou queda da natalidade; os países pobres, ao
contrário, apresentam em geral uma elevada taxa de aumento da
população, dificilmente suportável num contexto de menor
progresso económico e social, ou até de grave
subdesenvolvimento. Face ao sobrepovoamento dos países pobres,
verifica-se, a nível internacional, a falta de intervenções
globais - sérias políticas familiares e sociais, programas de
crescimento cultural e de justa produção e distribuição dos
recursos - enquanto se continuam a actuar políticas
anti-natalistas.
Devendo, sem dúvida, incluir-se a contracepção, a
esterilização e o aborto entre as causas que contribuem para
determinar as situações de forte queda da natalidade, pode ser
fácil a tentação de recorrer aos mesmos métodos e atentados
contra a vida, nas situações de «explosão demográfica».
O antigo Faraó, sentindo como um pesadelo a presença e a
multiplicação dos filhos de Israel, sujeitou-os a todo o tipo
de opressão e ordenou que fossem mortas todas as crianças do
sexo masculino (cf. Ex 1, 7-22). Do mesmo modo se comportam
hoje bastantes poderosos da terra.
Também estes vêem como um pesadelo o crescimento demográfico
hodierno, e temem que os povos mais prolíferos e mais pobres
representem uma ameaça para o bem-estar e a tranquilidade dos
seus países. Consequentemente, em vez de procurarem enfrentar
e resolver estes graves problemas dentro do respeito da
dignidade das pessoas e das famílias e do inviolável direito
de cada homem à vida, preferem promover e impor, por qualquer
meio, um maciço planeamento da natalidade. As próprias ajudas
económicas, que se dizem dispostos a dar, ficam injustamente
condicionadas à aceitação desta política anti-natalista.
17. A humanidade de hoje oferece-nos um espectáculo
verdadeiramente alarmante, se pensarmos não só aos diversos
âmbitos em que se realizam os atentados à vida, mas também à
singular dimensão numérica dos mesmos, bem como ao múltiplo e
poderoso apoio que lhes é dado pelo amplo consenso social,
pelo frequente reconhecimento legal, pelo envolvimento de uma
parte dos profissionais da saúde.
Como senti dever bradar em Denver, por ocasião do VIII Dia
Mundial da Juventude, «com o tempo, as ameaças contra a vida
não diminuíram. Elas, ao contrário, assumem dimensões enormes.
Não se trata apenas de ameaças vindas do exterior, de forças
da natureza ou dos «Cains» que assassinam os «Abéis»; não,
trata-se de ameaças programadas de maneira científica e
sistemática. O século XX ficará considerado uma época de
ataques maciços contra a vida, uma série infindável de guerras
e um massacre permanente de vidas humanas inocentes. Os falsos
profetas e os falsos mestres conheceram o maior sucesso
possível».15 Para além das intenções, que podem ser várias e
quiçá assumir formas persuasivas em nome até da solidariedade,
a verdade é que estamos perante uma objectiva «conjura contra
a vida» que vê também implicadas Instituições Internacionais,
empenhadas a encorajar e programar verdadeiras e próprias
campanhas para difundir a contracepção, a esterilização e o
aborto. Não se pode negar, enfim, que os mass-media são
frequentemente cúmplices dessa conjura, ao abonarem junto da
opinião pública aquela cultura que apresenta o recurso à
contracepção, à esterilização, ao aborto e à própria eutanásia
como sinal do progresso e conquista da liberdade, enquanto
descrevem como inimigas da liberdade e do progresso as
posições incondicionalmente a favor da vida.
«Sou, porventura, guarda do meu irmão?» (Gn 4, 9): uma
noção perversa de liberdade
18. O panorama descrito requer ser conhecido não somente
nos fenómenos de morte que o caracterizam, mas também nas
múltiplas causas que o determinam. A pergunta do Senhor «que
fizeste?» (Gn 4, 10) quase parece um convite dirigido a Caim
para que, ultrapassando a materialidade do gesto homicida,
veja toda a gravidade nas motivações que estão na sua origem e
nas consequências que dele derivam.
As opções contra a vida nascem, às vezes, de situações
difíceis ou mesmo dramáticas de profundo sofrimento, de
solidão, de carência total de perspectivas económicas, de
depressão e de angústia pelo futuro. Estas circunstâncias
podem atenuar, mesmo até notavelmente, a responsabilidade
subjectiva e, consequentemente, a culpabilidade daqueles que
realizam tais opções em si mesmas criminosas. Hoje, todavia, o
problema estende-se muito para além do reconhecimento, sempre
necessário, destas situações pessoais. Põe-se também no plano
cultural, social e político, onde apresenta o seu aspecto mais
subversivo e perturbador na tendência, cada vez mais
largamente compartilhada, de interpretar os mencionados crimes
contra a vida como legítimas expressões da liberdade
individual, que hão-de ser reconhecidas e protegidas como
verdadeiros e próprios direitos.
Chega assim a uma viragem de trágicas consequências, um
longo processo histórico, o qual, depois de ter descoberto o
conceito de «direitos humanos» - como direitos inerentes a
cada pessoa e anteriores a qualquer Constituição e legislação
dos Estados -, incorre hoje numa estranha contradição:
precisamente numa época em que se proclamam solenemente os
direitos invioláveis da pessoa e se afirma publicamente o
valor da vida, o próprio direito à vida é praticamente negado
e espezinhado, particularmente nos momentos mais emblemáticos
da existência, como são o nascer e o morrer.
Por um lado, as várias declarações dos direitos do homem e
as múltiplas iniciativas que nelas se inspiram, indicam a
consolidação a nível mundial de uma sensibilidade moral mais
diligente em reconhecer o valor e a dignidade de cada ser
humano enquanto tal, sem qualquer distinção de raça,
nacionalidade, religião, opinião política, estrato social.
Por outro lado, a estas nobres proclamações contrapõem-se,
infelizmente nos factos, a sua trágica negação. Esta é ainda
mais desconcertante, antes mais escandalosa, precisamente
porque se realiza numa sociedade que faz da afirmação e tutela
dos direitos humanos o seu objectivo principal e,
conjuntamente, o seu título de glória. Como pôr de acordo
essas repetidas afirmações de princípio com a contínua
multiplicação e a difusa legitimação dos atentados à vida
humana? Como conciliar estas declarações com a recusa do mais
débil, do mais carenciado, do idoso, daquele que acaba de ser
concebido? Estes atentados encaminham-se exactamente na
direcção contrária à do respeito pela vida e representam uma
ameaça frontal a toda a cultura dos direitos do homem. É uma
ameaça capaz, em última análise, de pôr em risco o próprio
significado da convivência democrática: de sociedade de «conviventes», as nossas cidades correm o risco de passar a
sociedade de excluídos, marginalizados, irradiados e
suprimidos. Se depois o olhar se alarga ao horizonte mundial,
como não pensar que a afirmação dos direitos das pessoas e dos
povos, verificada em altas reuniões internacionais, se reduz a
um estéril exercício retórico, se lá não é desmascarado o
egoísmo dos países ricos que fecham aos países pobres o acesso
ao desenvolvimento ou o condicionam a proibições absurdas de
procriação, contrapondo o progresso ao homem? Porventura não é
de pôr em discussão os próprios modelos económicos, adoptados
pelos Estados frequentemente também por pressões e
condicionamentos de carácter internacional, que geram e
alimentam situações de injustiça e violência, nas quais a vida
humana de populações inteiras fica degradada e espezinhada?
19. Onde estão as raízes de uma contradição tão paradoxal?
Podemo-las encontrar em avaliações globais de ordem
cultural e moral, a começar por aquela mentalidade que,
exasperando e até deformando o conceito de subjectividade, só
reconhece como titular de direitos quem se apresente com plena
ou, pelo menos, incipiente autonomia e esteja fora da condição
de total dependência dos outros. Mas, como conciliar tal
atitude com a exaltação do homem enquanto ser «não-disponível»?
A teoria dos direitos humanos funda-se precisamente na
consideração do facto de o homem, ao contrário dos animais e
das coisas, não poder estar sujeito ao domínio de ninguém.
Devemos mencionar ainda aquela lógica que tende a
identificar a dignidade pessoal com a capacidade de
comunicação verbal e explícita e, em todo o caso, experimentável. Claro que, com tais pressupostos, não há
espaço no mundo para quem, como o nascituro ou o doente
terminal, é um sujeito estruturalmente débil, parece
totalmente à mercê de outras pessoas e radicalmente dependente
delas, e sabe comunicar apenas mediante a linguagem muda de
uma profunda simbiose de afectos. Assim a força torna-se o
critério de decisão e de acção, nas relações interpessoais e
na convivência social. Mas isto é precisamente o contrário
daquilo que, historicamente, quis afirmar o Estado de direito,
como comunidade onde as «razões da força» são substituídas
pela «força da razão».
A outro nível, as raízes da contradição que se verifica
entre a solene afirmação dos direitos do homem e a sua trágica
negação na prática, residem numa concepção da liberdade que
exalta o indivíduo de modo absoluto e não o predispõe para a
solidariedade, o pleno acolhimento e serviço do outro. Se é
certo que, por vezes, a supressão da vida nascente ou terminal
aparece também matizada com um sentido equivocado de altruísmo
e de compaixão humana, não se pode negar que tal cultura de
morte, no seu todo, manifesta uma concepção da liberdade
totalmente individualista que acaba por ser a liberdade dos «mais fortes» contra os débeis, destinados a sucumbir.
Precisamente neste sentido, se pode interpretar a resposta
de Caim à pergunta do Senhor «onde está Abel, teu irmão?»: «Não sei dele. Sou, porventura, guarda do meu irmão?» (Gn 4,
9). Sim, todo o homem é «guarda do seu irmão», porque Deus
confia o homem ao homem. E é tendo em vista também tal entrega
que Deus dá a cada homem a liberdade, que possui uma dimensão
relacional essencial. Trata-se de um grande dom do Criador,
quando colocada como deve ser ao serviço da pessoa e da sua
realização mediante o dom de si e o acolhimento do outro;
quando, pelo contrário, a liberdade é absolutizada em chave
individualista, fica esvaziada do seu conteúdo originário e
contestada na sua própria vocação e dignidade.
Mas há um aspecto ainda mais profundo a sublinhar: a
liberdade renega-se a si mesma, autodestrói-se e predispõe-se
à eliminação do outro, quando deixa de reconhecer e respeitar
a sua ligação constitutiva com a verdade. Todas as vezes que a
razão humana, querendo emancipar-se de toda e qualquer
tradição e autoridade, se fecha até às evidências primárias de
uma verdade objectiva e comum, fundamento da vida pessoal e
social, a pessoa acaba por assumir como única e indiscutível
referência para as próprias decisões, não já a verdade sobre o
bem e o mal, mas apenas a sua subjectiva e volúvel opinião ou,
simplesmente, o seu interesse egoísta e o seu capricho.
20. Nesta concepção da liberdade, a convivência social fica
profundamente deformada. Se a promoção do próprio eu é vista
em termos de autonomia absoluta, inevitavelmente chega-se à
negação do outro, visto como um inimigo de quem defender-se.
Deste modo, a sociedade torna-se um conjunto de indivíduos,
colocados uns ao lado dos outros mas sem laços recíprocos:
cada um quer afirmar-se independentemente do outro, mais, quer
fazer prevalecer os seus interesses. Todavia, na presença de
análogos interesses da parte do outro, terá de se render a
procurar qualquer forma de compromisso, se se quer que, na
sociedade, seja garantido a cada um o máximo de liberdade
possível. Deste modo, diminui toda a referência a valores
comuns e a uma verdade absoluta para todos: a vida social
aventura-se pelas areias movediças de um relativismo total.
Então, tudo é convencional, tudo é negociável: inclusivamente
o primeiro dos direitos fundamentais, o da vida.
É aquilo que realmente acontece, mesmo no âmbito mais
especificamente político e estatal: o primordial e inalienável
direito à vida é posto em discussão ou negado com base num
voto parlamentar ou na vontade de uma parte - mesmo que seja
maioritária - da população. É o resultado nefasto de um
relativismo que reina incontestado: o próprio «direito»
deixa de o ser, porque já não está solidamente fundado sobre a
inviolável dignidade da pessoa, mas fica sujeito à vontade do
mais forte. Deste modo e para descrédito das suas regras, a
democracia caminha pela estrada de um substancial
totalitarismo. O Estado deixa de ser a «casa comum», onde
todos podem viver segundo princípios de substancial igualdade,
e transforma-se num Estado tirano, que presume de poder dispor
da vida dos mais débeis e indefesos, desde a criança ainda não
nascida até ao idoso, em nome de uma utilidade pública que, na
realidade, não é senão o interesse de alguns.
Tudo parece acontecer no mais firme respeito da legalidade,
pelo menos quando as leis, que permitem o aborto e a
eutanásia, são votadas segundo as chamadas regras
democráticas. Na verdade, porém, estamos perante uma mera e
trágica aparência de legalidade, e o ideal democrático, que é
verdadeiramente tal apenas quando reconhece e tutela a
dignidade de toda a pessoa humana, é atraiçoado nas suas
próprias bases: «Como é possível falar ainda de dignidade de
toda a pessoa humana, quando se permite matar a mais débil e a
mais inocente? Em nome de qual justiça se realiza a mais
injusta das discriminações entre as pessoas, declarando
algumas dignas de ser defendidas, enquanto a outras esta
dignidade é negada?».16 Quando se verificam tais condições,
estão já desencadeados aqueles mecanismos que levam à
dissolução da convivência humana autêntica e à desagregação da
própria realidade estatal.
Reivindicar o direito ao aborto, ao infanticídio, à
eutanásia, e reconhecê-lo legalmente, equivale a atribuir à
liberdade humana um significado perverso e iníquo: o
significado de um poder absoluto sobre os outros e contra os
outros. Mas isto é a morte da verdadeira liberdade: «Em
verdade, em verdade vos digo: todo aquele que comete o pecado
é escravo do pecado» (Jo 8, 34).
«Obrigado a ocultar-me longe da tua face» (Gn 4, 14): o
eclipse do sentido de Deus e do homem
21. Quando se procuram as raízes mais profundas da luta
entre a «cultura da vida» e a «cultura da morte», não
podemos deter-nos na noção perversa de liberdade acima
referida. É necessário chegar ao coração do drama vivido pelo
homem contemporâneo: o eclipse do sentido de Deus e do homem,
típico de um contexto social e cultural dominado pelo
secularismo que, com os seus tentáculos invasivos, não deixa
às vezes de pôr à prova as próprias comunidades cristãs. Quem
se deixa contagiar por esta atmosfera, entra facilmente na
voragem de um terrível círculo vicioso: perdendo o sentido de
Deus, tende-se a perder também o sentido do homem, da sua
dignidade e da sua vida; por sua vez, a sistemática violação
da lei moral, especialmente na grave matéria do respeito da
vida humana e da sua dignidade, produz uma espécie de ofuscamento progressivo da capacidade de enxergar a presença
vivificante e salvífica de Deus.
Podemos, mais uma vez, inspirar-nos na narração da morte de
Abel provocada pelo seu irmão. Depois da maldição infligida
por Deus a Caim, este dirige-se ao Senhor dizendo: «A minha
culpa é grande demais para obter perdão. Expulsas-me hoje
desta terra; obrigado a ocultar-me longe da tua face, terei de
andar fugitivo e vagabundo pela terra, e o primeiro a
encontrar-me matar-me-á» (Gn 4, 13-14).
Caim pensa que o seu pecado não poderá obter perdão do
Senhor e que o seu destino inevitável será «ocultar-se longe» d'Ele. Se Caim chega a confessar que a sua culpa é
«grande
demais», é por saber que se encontra diante de Deus e do seu
justo juízo. Na realidade, só diante do Senhor é que o homem
pode reconhecer o seu pecado e perceber toda a sua gravidade.
Tal foi a experiência de David, que, depois «de ter feito o
que é mal aos olhos do Senhor» e de ser repreendido pelo
profeta Natã (cf. 2 Sam 11-12), exclama: «Eu reconheço os
meus pecados, e as minhas culpas tenho-as sempre diante de
mim. Pequei contra Vós, só contra Vós, e fiz o mal diante dos
vossos olhos» (Sal 5150, 5-6).
22. Por isso, quando declina o sentido de Deus, também o
sentido do homem fica ameaçado e adulterado, como afirma de
maneira lapidar o Concílio Vaticano II: «Sem o Criador, a
criatura não subsiste. (...) Antes, se se esquece Deus, a
própria criatura se obscurece».17 O homem deixa de conseguir
sentir-se como «misteriosamente outro» face às diversas
criaturas terrenas; considera-se apenas como um de tantos
seres vivos, como um organismo que, no máximo, atingiu um
estado muito elevado de perfeição. Fechado no estreito
horizonte da sua dimensão física, reduz-se de certo modo a «uma coisa», deixando de captar o carácter
«transcendente»
do seu «existir como homem». Deixa de considerar a vida como
um dom esplêndido de Deus, uma realidade «sagrada» confiada
à sua responsabilidade e, consequentemente, à sua amorosa
defesa, à sua «veneração». A vida torna-se simplesmente «uma coisa», que ele reivindica como sua exclusiva
propriedade, que pode plenamente dominar e manipular.
Assim, diante da vida que nasce e da vida que morre, o
homem já não é capaz de se deixar interrogar sobre o sentido
mais autêntico da sua existência, assumindo com verdadeira
liberdade estes momentos cruciais do próprio «ser».
Preocupa-se somente com o «fazer», e, recorrendo a qualquer
forma de tecnologia, moureja a programar, controlar e dominar
o nascimento e a morte. Estes acontecimentos, em vez de
experiências primordiais que requerem ser «vividas»,
tornam-se coisas que se pretende simplesmente «possuir» ou «rejeitar».
Aliás, uma vez excluída a referência a Deus, não surpreende
que o sentido de todas as coisas resulte profundamente
deformado, e a própria natureza, já não vista como mater
[mãe],
fique reduzida a «material» sujeito a todas as manipulações.
A isto parece conduzir certa mentalidade técnico-científica,
predominante na cultura contemporânea, que nega a ideia mesma
de uma verdade própria da criação que se há-de reconhecer, ou
de um desígnio de Deus sobre a vida que temos de respeitar. E
isto não é menos verdade, quando a angústia pelos resultados
de tal «liberdade sem lei» induz alguns à exigência oposta
de uma «lei sem liberdade», como sucede, por exemplo, em
ideologias que contestam a legitimidade de qualquer forma de
intervenção sobre a natureza, como que em nome de uma sua «divinização», o que uma vez mais menospreza a sua dependência
do desígnio do Criador.
Na realidade, vivendo «como se Deus não existisse», o
homem perde o sentido não só do mistério de Deus, mas também
do mistério do mundo, e do mistério do seu próprio ser.
23. O eclipse do sentido de Deus e do homem conduz
inevitavelmente ao materialismo prático, no qual prolifera o
individualismo, o utilitarismo e o hedonismo. Também aqui se
manifesta a validade perene daquilo que escreve o Apóstolo: «Como não procuraram ter de Deus conhecimento perfeito,
entregou-os Deus a um sentimento pervertido, a fim de que
fizessem o que não convinha (Rm 1, 28). Assim os valores do
ser ficam substituídos pelos do ter.
O único fim que conta, é a busca do próprio bem-estar
material. A chamada «qualidade de vida» é interpretada
prevalente ou exclusivamente como eficiência económica,
consumismo desenfreado, beleza e prazer da vida física,
esquecendo as dimensões mais profundas da existência, como são
as interpessoais, espirituais e religiosas.
Em tal contexto, o sofrimento - peso inevitável da
existência humana mas também factor de possível crescimento
pessoal -, é «deplorado», rejeitado como inútil, ou mesmo
combatido como mal a evitar sempre e por todos os modos.
Quando não é possível superá-lo e a perspectiva de um
bem-estar, pelo menos futuro, se desvanece, parece então que a
vida perdeu todo o significado e cresce no homem a tentação de
reivindicar o direito à sua eliminação.
Sempre no mesmo horizonte cultural, o corpo deixa de ser
visto como realidade tipicamente pessoal, sinal e lugar da
relação com os outros, com Deus e com o mundo. Fica reduzido à
dimensão puramente material: é um simples complexo de órgãos,
funções e energias, que há-de ser usado segundo critérios de
mero prazer e eficiência. Consequentemente, também a
sexualidade fica despersonalizada e instrumentalizada: em
lugar de ser sinal, lugar e linguagem do amor, ou seja, do dom
de si e do acolhimento do outro na riqueza global da pessoa,
torna-se cada vez mais ocasião e instrumento de afirmação do
próprio eu e de satisfação egoísta dos próprios desejos e
instintos. Deste modo se deforma e falsifica o conteúdo
original da sexualidade humana, e os seus dois significados -
unitivo e procriativo -, inerentes à própria natureza do acto
conjugal, acabam artificialmente separados: assim a união é
atraiçoada e a fecundidade fica sujeita ao arbítrio do homem e
da mulher. A geração torna-se, então, o «inimigo» a evitar
no exercício da sexualidade: se aceite, é-o apenas porque
exprime o próprio desejo ou mesmo a determinação de ter o
filho «a todo o custo», e não já porque significa total
acolhimento do outro e, por conseguinte, abertura à riqueza de
vida que o filho é portador.
Na perspectiva materialista até aqui descrita, as relações
interpessoais experimentam um grave empobrecimento. E os
primeiros a sofrerem os danos são a mulher, a criança, o
enfermo ou atribulado, o idoso. O critério próprio da
dignidade pessoal - isto é, o do respeito, do altruísmo e do
serviço - é substituído pelo critério da eficiência, do
funcional e da utilidade: o outro é apreciado não por aquilo
que «é», mas por aquilo que «tem, faz e rende». É a
supremacia do mais forte sobre o mais fraco.
24. É no íntimo da consciência moral que se consuma o
eclipse do sentido de Deus e do homem, com todas as suas
múltiplas e funestas consequências sobre a vida. Em questão
está, antes de mais, a consciência de cada pessoa, onde esta,
na sua unicidade e irrepetibilidade, se encontra a sós com
Deus.18 Mas, em certo sentido, é posta em questão também a
«consciência moral» da sociedade: esta é, de algum modo,
responsável, não só porque tolera ou favorece comportamentos
contrários à vida, mas também porque alimenta a «cultura da
morte», chegando a criar e consolidar verdadeiras e próprias «estruturas de pecado» contra a vida. A consciência moral,
tanto do indivíduo como da sociedade, está hoje - devido
também à influência invasora de muitos meios de comunicação
social -, exposta a um perigo gravíssimo e mortal: o perigo da
confusão entre o bem e o mal, precisamente no que se refere ao
fundamental direito à vida. Uma parte significativa da
sociedade actual revela-se tristemente semelhante àquela
humanidade que Paulo descreve na Carta aos Romanos. É feita «de homens que sufocam a verdade na injustiça» (1, 18): tendo
renegado Deus e julgando poder construir a cidade terrena sem
Ele, «desvaneceram nos seus pensamentos», pelo que «se
obscureceu o seu insensato coração» (1, 21); «considerando-se sábios, tornaram-se néscios» (1, 22),
fizeram-se autores de obras dignas de morte, e «não só as
cometem, como também aprovam os que as praticam» (1, 32).
Quando a consciência, esse luminoso olhar da alma (cf. Mt 6,
22-23), chama «bem ao mal e mal ao bem» (Is 5, 20), está já
no caminho da sua degeneração mais preocupante e da mais
tenebrosa cegueira moral.
Mas todos esses condicionalismos e tentativas de impor
silêncio não conseguem sufocar a voz do Senhor, que ressoa na
consciência de cada homem: é sempre deste sacrário íntimo da
consciência que pode recomeçar um novo caminho de amor, de
acolhimento e de serviço à vida humana.
«Aproximaste-vos do sangue de aspersão» (cf. Heb 12,
22.24): sinais de esperança e convite ao compromisso
25. «A voz do sangue do teu irmão clama da terra até Mim!» (Gn 4, 10). Não é só a voz do sangue de Abel, o primeiro
inocente morto, a gritar por Deus, fonte e defensor da vida.
Também o sangue de todos os outros homens, assassinados depois
de Abel, é voz que brada ao Senhor. De uma forma absolutamente
única, porém, grita a Deus a voz do sangue de Cristo, de quem
Abel, na sua inocência, é figura profética, como nos recorda o
autor da Carta aos Hebreus: «Vós, porém, aproximaste-vos do
monte de Sião, da cidade do Deus vivo, (...) de Jesus, o
Mediador da Nova Aliança, e de um sangue de aspersão que fala
melhor do que o de Abel» (12, 22.24).
É o sangue de aspersão. Símbolo e sinal prefigurador dele
fora o sangue dos sacrifícios da Antiga Aliança, com os quais
Deus exprimia a vontade de comunicar a sua vida aos homens,
purificando-os e consagrando-os (cf. Ex 24, 8; Lv 17, 11).
Agora em Cristo, tudo isso se cumpre e realiza: o d'Ele é o
sangue de aspersão que redime, purifica e salva; é o sangue do
Mediador da Nova Aliança, «derramado por muitos, em remissão
dos pecados» (Mt 26, 28). Este sangue, que brota do peito
trespassado de Cristo na Cruz (cf. Jo 19, 34), «fala melhor»
do que o sangue de Abel; aquele, com efeito, exprime e exige
uma «justiça» mais profunda, mas sobretudo implora
misericórdia,19 torna-se junto do Pai intercessão pelos irmãos
(cf. Heb 7, 25), é fonte de perfeita redenção e dom de vida
nova.
O sangue de Cristo, ao mesmo tempo que revela a grandeza do
amor do Pai, manifesta também como o homem é precioso aos
olhos de Deus e quão inestimável seja o valor da sua vida.
Isto mesmo nos recorda o apóstolo Pedro: «Sabei que fostes
resgatados da vossa vã maneira de viver, recebida por tradição
dos vossos pais, não a preço de coisas corruptíveis, prata ou
ouro, mas pelo sangue precioso de Cristo, como de um cordeiro
imaculado e sem defeito algum» (1 Ped 1, 18-19). Contemplando
precisamente o sangue precioso de Cristo, sinal da sua doação
de amor (cf. Jo 13, 1), o crente aprende a reconhecer e a
apreciar a dignidade quase divina de cada homem, e pode
exclamar com incessante e agradecida admiração: «Que grande
valor deve ter o homem aos olhos do Criador, se "mereceu tão
grande Redentor" (Precónio Pascal), se "Deus deu o seu Filho",
para que ele, o homem, "não pereça, mas tenha a vida eterna"
(cf. Jo 3, 16)»! 20
Além disso, o sangue de Cristo revela ao homem que a sua
grandeza e, consequentemente, a sua vocação consiste no dom
sincero de si. Precisamente porque é derramado como dom de
vida, o sangue de Jesus já não é sinal de morte, de separação
definitiva dos irmãos, mas instrumento de uma comunhão que é
riqueza de vida para todos. Quem, no sacramento da Eucaristia,
bebe este sangue e permanece em Jesus (cf. Jo 6, 56), vê-se
associado ao mesmo dinamismo de amor e doação de vida d'Ele,
para levar à plenitude a primordial vocação ao amor que é
própria de cada homem (cf. Gn 1, 27; 2, 18-24).
É, enfim, do sangue de Cristo que todos os homens recebem a
força para se empenharem a favor da vida. Precisamente esse
sangue é o motivo mais forte de esperança, melhor é o
fundamento da certeza absoluta de que, segundo o desígnio de
Deus, a vitória será da vida. «Nunca mais haverá morte» -
exclama a voz poderosa que sai do trono de Deus na Jerusalém
celeste (Ap 21, 4). E S. Paulo assegura-nos que a vitória
actual sobre o pecado é sinal e antecipação da vitória
definitiva sobre a morte, quando «se cumprirá o que está
escrito: "A morte foi tragada pela vitória. Onde está, ó
morte, a tua vitória? Onde está, ó morte, o teu aguilhão?"»
(1 Cor 15, 54-55).
26. Na realidade, não faltam prenúncios desta vitória nas
nossas sociedade e culturas, apesar de marcadas tão fortemente
pela «cultura da morte». Dar-se-ia, por conseguinte, uma
imagem unilateral que poderia induzir a um estéril desânimo,
se a denúncia das ameaças contra a vida não fosse acompanhada
pela apresentação dos sinais positivos, operantes na actual
situação da humanidade.
Infelizmente, estes sinais positivos têm com frequência
dificuldade em manifestar-se e ser reconhecidos, talvez também
porque não recebem adequada atenção dos meios de comunicação
social. Mas quantas iniciativas de ajuda e amparo às pessoas
mais débeis e indefesas surgiram - e continuam a surgir - na
comunidade cristã e na sociedade, a nível local, nacional e
internacional, por obra de indivíduos, grupos, movimentos e
organizações de vário género!
Muitos são ainda os esposos que, com generosa
responsabilidade, sabem acolher os filhos como «o maior dom
do matrimónio».21 E não faltam famílias que, para além do seu
serviço quotidiano à vida, sabem também abrir-se ao
acolhimento de crianças abandonadas, de adolescentes e jovens
em dificuldade, de pessoas inválidas, de idosos que vivem na
solidão. Numerosos são os centros de ajuda à vida ou
instituições análogas, dinamizadas por pessoas e grupos que,
com admirável dedicação e sacrifício, oferecem apoio moral e
material às mães em dificuldade, tentadas a recorrer ao
aborto. Surgem e multiplicam-se ainda os grupos de
voluntários, empenhados em dar hospitalidade a quem não tem
família, encontra-se em condições de particular dificuldade ou
precisa de reencontrar um ambiente educativo que o ajude a
superar hábitos destrutivos e recuperar o sentido da vida.
A medicina, promovida com grande empenho por investigadores
e profissionais, prossegue no seu esforço por encontrar
remédios cada vez mais eficazes: resultados, antes totalmente
impensáveis e capazes de abrir promissoras perspectivas, são
hoje obtidos em favor da vida nascente, das pessoas que sofrem
e dos doentes em fase grave ou terminal. Várias entidades e
organizações se mobilizam para levar aos países mais atingidos
pela miséria e por doenças crónicas, tais benefícios da
medicina mais avançada. Do mesmo modo, associações nacionais e
internacionais de médicos movem-se rapidamente, para prestar
socorro às populações provadas por calamidades naturais,
epidemias ou guerras. Apesar de estar ainda longe da sua plena
consecução uma verdadeira justiça internacional na partilha
dos recursos médicos, como não reconhecer, nos passos até
agora dados, o sinal de crescente solidariedade entre os
povos, de apreciável sensibilidade humana e moral, e de maior
respeito pela vida?
27. Face a legislações que permitiram o aborto e a
tentativas, aqui e além concretizadas, de legalizar a
eutanásia, surgiram em todo o mundo movimentos e iniciativas
de sensibilização social a favor da vida. Quando estes
movimentos, de acordo com a sua inspiração autêntica, agem com
determinada firmeza mas sem recorrer à violência, então eles
favorecem uma tomada de consciência mais ampla e profunda do
valor da vida, fazem apelo e realizam um empenho mais decisivo
em sua defesa.
Como não recordar, além disso, todos aqueles gestos diários
de acolhimento, de sacrifício, de cuidado desinteressado, que
um número incalculável de pessoas realiza com amor nas
famílias, nos hospitais, nos orfanatos, nos lares da terceira
idade, e noutros centros ou comunidades em defesa da vida? A
Igreja, deixando-se guiar pelo exemplo de Jesus, «bom
samaritano» (cf. Lc 10, 29-37), e sustentada pela sua força,
sempre esteve em primeira fila nestes confins da caridade:
muitos dos seus filhos e filhas, especialmente religiosas e
religiosos, em formas antigas e novas, consagraram e continuam
a consagrar a sua vida a Deus, dando-a por amor do próximo
mais débil e necessitado.
Estes gestos constroem em profundidade aquela «civilização
do amor e da vida», sem a qual a existência das pessoas e da
sociedade perde o seu significado humano mais autêntico. Ainda
que ninguém os notasse, e ficassem escondidos aos olhos dos
outros, a fé assegura que o Pai, «que vê no segredo» (Mt 6,
4), saberá não só recompensá-los, mas também torná-los desde
já fecundos de frutos duradouros para todos.
Entre os sinais de esperança, há que incluir ainda o
crescimento, em muitos estratos da opinião pública, de uma
nova sensibilidade cada vez mais contrária à guerra como
instrumento de solução dos conflitos entre os povos, e sempre
mais inclinada à busca de instrumentos eficazes, mas «não
violentos», para bloquear o agressor armado. No mesmo
horizonte, se coloca igualmente a aversão cada vez mais difusa
na opinião pública à pena de morte - mesmo vista só como
instrumento de «legítima defesa» social -, tendo em
consideração as possibilidades que uma sociedade moderna
dispõe para reprimir eficazmente o crime, de forma que,
enquanto torna inofensivo aquele que o cometeu, não lhe tira
definitivamente a possibilidade de se redimir.
Também ocorre saudar favoravelmente a atenção crescente à
qualidade de vida e à ecologia, que se regista sobretudo nas
sociedades mais avançadas, nas quais os anseios das pessoas já
não estão concentrados tanto sobre os problemas da
sobrevivência como sobretudo na procura de um melhoramento
global das condições de vida. Particularmente significativo é
o despertar da reflexão ética acerca da vida: a aparição e o
desenvolvimento cada vez maior da bioética favoreceu a
reflexão e o diálogo - entre crentes e não crentes, como
também entre crentes de diversas religiões - sobre problemas
éticos, mesmo fundamentais, que dizem respeito à vida do
homem.
28. Este horizonte de luzes e sombras deve tornar-nos, a
todos, plenamente conscientes de que nos encontramos perante
um combate gigantesco e dramático entre o mal e o bem, a morte
e a vida, a «cultura da morte» e a «cultura da vida».
Encontramo-nos não só «diante», mas necessariamente «no
meio» de tal conflito: todos estamos implicados e tomamos
parte nele, com a responsabilidade iniludível de decidir
incondicionalmente a favor da vida.
Também para nós, ressoa claro e forte o convite de Moisés:
«Vê, ofereço-te hoje, de um lado, a vida e o bem; do outro, a
morte e o mal. (...) Coloco diante de ti a vida e a morte, a
felicidade e a maldição. Escolhe a vida, e então viverás com
toda a tua posteridade» (Dt 30, 15.19). É um convite muito
apropriado para nós, chamados cada dia a ter de escolher entre
a «cultura da vida» e a «cultura da morte». Mas o apelo do Deuteronómio é ainda mais profundo, porque nos chama a uma
opção especificamente religiosa e moral. Trata-se de dar à
própria existência uma orientação fundamental, vivendo com
fidelidade e coerência a Lei do Senhor: «Recomendo-te hoje
que ames o Senhor, teu Deus, que andes nos seus caminhos, que
guardes os seus preceitos, suas leis e seus decretos. (...)
Escolhe a vida, e então viverás com toda a tua posteridade.
Ama o Senhor, teu Deus, escuta a sua voz e permanece-Lhe fiel,
porque é Ele a tua vida e a longevidade dos teus dias» (30,
16.19-20).
A decisão incondicional a favor da vida atinge em plenitude
o seu significado religioso e moral, quando brota, é plasmada
e alimentada pela fé em Cristo. Nada ajuda tanto a enfrentar
positivamente o conflito entre a morte e a vida, no qual
estamos imersos, como a fé no Filho de Deus que Se fez homem e
veio habitar entre os homens, «para que tenham vida, e a
tenham em abundância» (Jo 10, 10): é a fé no Ressuscitado,
que venceu a morte; é a fé no sangue de Cristo «que fala
melhor do que o de Abel» (Heb 12, 24).
Assim, com a luz e a força desta fé, perante os desafios da
situação actual, a Igreja toma consciência mais viva da graça
e da responsabilidade, que lhe vêm do seu Senhor, de anunciar,
celebrar e servir o Evangelho da vida.
CAPÍTULO II
VIM PARA QUE TENHAM VIDA
A MENSAGEM CRISTÃ SOBRE A VIDA
«A vida manifestou-se, nós vimo-la» (1 Jo 1, 2): o olhar
voltado para Cristo, «o Verbo da vida»
29. Frente às inumeráveis e graves ameaças contra a vida,
presentes no mundo contemporâneo, poder-se-ia ficar como que
dominado por um sentido de impotência insuperável: jamais o
bem poderá ter força para vencer o mal!
Este é o momento em que o Povo de Deus, e nele cada um dos
crentes, é chamado a professar, com humildade e coragem, a
própria fé em Jesus Cristo, «o Verbo da vida» (1 Jo 1, 1). O
Evangelho da vida não é uma simples reflexão, mesmo se
original e profunda, sobre a vida humana; nem é apenas um
preceito destinado a sensibilizar a consciência e provocar
mudanças significativas na sociedade; tampouco é a ilusória
promessa de um futuro melhor. O Evangelho da vida é uma
realidade concreta e pessoal, porque consiste no anúncio da
própria pessoa de Jesus. Ao apóstolo Tomé, e nele a cada
homem, Jesus apresenta-Se com estas palavras: «Eu sou o
caminho, a verdade e a vida» (Jo 14, 6). A mesma identidade
foi referida a Marta, irmã de Lázaro: «Eu sou a ressurreição
e a vida; quem crê em Mim, ainda que esteja morto, viverá; e
todo aquele que vive e crê em Mim, não morrerá jamais» (Jo
11, 25-26). Jesus é o Filho que, desde toda a eternidade,
recebe a vida do Pai (cf. Jo 5, 26) e veio estar com os
homens, para os tornar participantes deste dom: «Eu vim para
que tenham vida, e a tenham em abundância» (Jo 10, 10).
Deste modo, a possibilidade de «conhecer» a verdade plena
sobre o valor da vida humana é oferecida ao homem pela
palavra, a acção e a própria pessoa de Jesus; e desta «fonte», vem-lhe, de forma especial, a capacidade de
«praticar»
perfeitamente tal verdade (cf. Jo 3, 21), ou seja, a
capacidade de assumir e realizar em plenitude a
responsabilidade de amar e servir, de defender e promover a
vida humana.
Em Cristo, de facto, é anunciado definitivamente e
concedido plenamente aquele Evangelho da vida, que, oferecido
já na Revelação do Antigo Testamento e, antes ainda, de algum
modo escrito no próprio coração de cada homem e mulher, ressoa
em toda a consciência «desde o princípio», ou seja, desde a
própria criação, de tal modo que, não obstante os
condicionalismos negativos do pecado, pode também ser
conhecido nos seus traços essenciais pela razão humana. Como
escreve o Concílio Vaticano II, Cristo «com toda a sua
presença e manifestação da sua pessoa, com palavras e obras,
sinais e milagres, e sobretudo com a sua morte e gloriosa
ressurreição, enfim, com o envio do Espírito da verdade,
completa totalmente e confirma com o testemunho divino a
revelação, a saber, que Deus está connosco para nos libertar
das trevas do pecado e da morte e para nos ressuscitar para a
vida eterna».22
30. É, pois, com o olhar fixo no Senhor Jesus que desejamos
novamente escutar d'Ele «as palavras de Deus» (Jo 3, 34) e
meditar o Evangelho da vida. O sentido mais profundo e
original desta meditação sobre a mensagem revelada relativa à
vida humana foi recolhido pelo apóstolo João, quando escreve,
no início da sua Primeira Carta: «O que era desde o
princípio, o que ouvimos, o que vimos com os nossos olhos, o
que contemplámos e as nossas mãos apalparam acerca do Verbo da
vida, - porque a vida manifestou-se, nós vimo-la, damos
testemunho dela e vos anunciamos esta vida eterna que estava
no Pai e que nos foi manifestada - o que vimos e ouvimos, isso
vos anunciamos, para que também vós tenhais comunhão connosco» (1, 1-3).
Então, a vida divina e eterna é anunciada e comunicada em
Jesus, «Verbo da vida». Graças a este anúncio e a este dom,
a vida física e espiritual do homem, mesmo na sua fase
terrena, adquire plenitude de valor e significado: com efeito,
a vida divina e eterna é o fim, para o qual está orientado e
chamado o homem que vive neste mundo. Assim, o Evangelho da
vida encerra tudo aquilo que a própria experiência e a razão
humana dizem acerca do valor da vida humana: acolhe-o, eleva-o
e condu-lo à sua plena realização.
«O Senhor é a minha força e a minha glória, foi Ele quem
me salvou» (Ex 15, 2): a vida é sempre um bem
31. Na verdade, a plenitude evangélica do anúncio sobre a
vida fora preparada já no Antigo Testamento. É sobretudo nos
acontecimentos do Êxodo, fulcro da experiência de fé do Antigo
Testamento, que Israel descobre quão preciosa é aos olhos de
Deus a sua vida. Quando já parece votado ao extermínio, dado
que sobre todos os seus recém-nascidos do sexo masculino grava
a ameaça de morte (cf. Ex 1, 15-22), o Senhor revela-Se-lhes
como salvador, capaz de assegurar um futuro a quem vive sem
esperança. Nasce, assim, em Israel uma certeza bem precisa: a
sua vida não se acha à mercê de um faraó que a pode usar com
despótico arbítrio; mas, ao contrário, é objecto de um terno e
intenso amor da parte de Deus.
A libertação da escravidão é o dom de uma identidade, o
reconhecimento de uma dignidade indelével e o início de uma
história nova, na qual caminham lado a lado a descoberta de
Deus e a descoberta de si próprio. A experiência do Êxodo é
constitutiva e paradigmática. Lá Israel compreendeu que, todas
as vezes que estiver ameaçado na sua existência, terá apenas
de recorrer a Deus com renovada confiança para encontrar n'Ele
eficaz assistência: «Formei-te, tu és meu servo; Israel, não
te posso esquecer» (Is 44, 21).
Assim, enquanto reconhece o valor da própria existência
como povo, Israel avança também na percepção do sentido e
valor da vida como tal. É uma reflexão que se desenvolve
particularmente nos Livros Sapienciais, partindo da
experiência quotidiana da precariedade da vida e da
consciência das ameaças que a tramam. Diante das contradições
da existência, a fé é chamada a dar uma resposta.
É sobretudo o problema da dor, o que mais pressiona a fé e
a põe à prova. Como não identificar o gemido universal do
homem na meditação do Livro de Job? O inocente esmagado pelo
sofrimento é compreensivelmente levado a interrogar-se: «Por
que razão foi concedida a luz ao infeliz, e a vida àquele cuja
alma está desconsolada, os quais esperam a morte sem que ela
venha e a procuram com mais ardor que um tesouro?» (3,
20-21). Mas, mesmo na escuridão mais densa, a fé encaminha
para o reconhecimento confiante e adorador do «mistério»: «Sei que podes tudo e que nada Te é impossível» (Job 42, 2).
Progressivamente a Revelação faz ver, com uma clareza cada
vez maior, o germe de vida imortal posto pelo Criador no
coração dos homens: «Todas as coisas que Deus fez são boas no
seu tempo. Além disso, pôs no coração 1 a duração inteira, sem
que ninguém possa compreender a obra divina de um extremo ao
outro» (Ecl 3, 11). Este germe de totalidade e plenitude
anseia por se manifestar no amor e realizar-se, por dom
gratuito de Deus, na participação da sua vida eterna.
«Pela fé no nome de Jesus, este homem recobrou as forças»
(Act 3, 16): na precariedade da existência humana, Jesus
realiza plenamente o sentido da vida
32. A experiência do povo da Aliança renova-se em todos os
«pobres» que encontram Jesus de Nazaré. Como Deus, «amante
da vida» (Sab 11, 26), já tinha tranquilizado Israel no meio
dos perigos, assim agora o Filho de Deus anuncia a quantos se
sentem ameaçados e limitados na própria existência, que a sua
vida é um bem, ao qual o amor do Pai dá sentido e valor.
«Os cegos vêem, os coxos andam, os leprosos ficam limpos,
os surdos ouvem, os mortos ressuscitam, a boa nova é anunciada
aos pobres» (Lc 7, 22). Com estas palavras do profeta Isaías
(35, 5-6; 61, 1), Jesus apresenta o significado da sua própria
missão: deste modo, aqueles que sofrem por causa de uma
existência de qualquer modo «limitada» ouvem d'Ele a boa
nova do interesse que Deus nutre por eles e têm a confirmação
de que também a sua vida é um dom zelosamente guardado nas
mãos do Pai (cf. Mt 6, 25-34).
Quem se sente particularmente interpelado pela pregação e
acção de Jesus, são os «pobres». As multidões de doentes e
marginalizados, que O seguem e procuram (cf. Mt 4, 23-25),
encontram na sua palavra e nos seus gestos a revelação do
valor imenso da vida deles e de quão fundados sejam os seus
anseios de salvação.
Acontece o mesmo na missão da Igreja, já desde as suas
origens. Ao anunciar Jesus como Aquele que «andou de lugar em
lugar, fazendo o bem e curando todos os que eram oprimidos
pelo diabo, porque Deus estava com Ele» (Act 10, 38), ela
sabe que é portadora de uma mensagem de salvação que ressoa,
com toda a sua novidade, precisamente nas situações de miséria
e pobreza da vida humana. Assim faz Pedro, ao curar o
paralítico que estava colocado diariamente junto da porta «Formosa» do templo de Jerusalém a pedir esmola:
«Não tenho
ouro nem prata, mas vou dar-te o que tenho: Em nome de Jesus
Cristo Nazareno, levanta-te e anda!» (Act 3, 6). Pela fé em
Jesus, «Príncipe da vida» (Act 3, 15), a vida que ali jaz
abandonada e suplicante, reencontra a consciência de si mesma
e a sua plena dignidade.
A palavra e os gestos de Jesus e da sua Igreja não dizem
respeito apenas a quem está enfermo, aflito pela provação, ou
é vítima das diversas formas de marginalização social. Vão
mais fundo, tocando o próprio sentido da vida de cada homem
nas suas dimensões morais e espirituais. Só quem reconhece que
a própria vida está tocada pelas mazelas do pecado, pode
reencontrar a verdade e a autenticidade da própria existência
junto de Jesus Salvador, segundo as suas próprias palavras: «Não são os que têm saúde que precisam de médico, mas os que
estão doentes. Não foram os justos, mas os pecadores, que Eu
vim chamar ao arrependimento» (Lc 5, 31-32).
Pelo contrário, aquele que à semelhança do rico agricultor
da parábola evangélica julga poder assegurar a própria vida
com a posse de simples bens materiais, na realidade engana-se.
A vida está-lhe escapando, e bem depressa ficará privado dela
sem ter chegado a perceber o seu verdadeiro significado: «Insensato! Nesta mesma noite, pedir-te-ão a tua alma; e o que
acumulaste para quem será?» (Lc 12, 20).
33. Na vida de Jesus, desde o início até ao fim,
encontra-se esta «dialéctica» singular entre a experiência
da contingência da vida humana e a afirmação do seu valor. De
facto, a precariedade caracteriza a vida de Jesus, desde o seu
nascimento. Ele depara certamente com o acolhimento dos
justos, que se unem ao «sim» pronto e feliz de Maria (cf. Lc
1, 38). Mas logo aparece também a rejeição por parte de um
mundo que se torna hostil e procura o Menino «para O matar»
(Mt 2, 13), ou então fica indiferente e alheio ao cumprimento
do mistério desta vida que entra no mundo: «não havia para
eles lugar na hospedaria» (Lc 2, 7). Exactamente por este
contraste - as ameaças e inseguranças, por um lado, e o poder
do dom de Deus, pelo outro - resplandece com maior força a
glória que irradia da casa de Nazaré e da manjedoura de Belém:
esta vida que nasce é salvação para a humanidade inteira (cf.
Lc 2, 10-11).
As contradições e riscos da vida são assumidos plenamente
por Jesus: «sendo rico, fez-Se pobre por vós, a fim de vos
enriquecer pela pobreza» (2 Cor 8, 9). Esta pobreza, de que
fala Paulo, não é apenas despojamento dos privilégios divinos,
mas também partilha das condições mais humildes e precárias da
vida humana (cf. Fil 2, 6-7). Jesus vive esta pobreza ao longo
de toda a sua vida até ao momento culminante da cruz: «Humilhou-Se a Si mesmo, feito obediente até à morte e morte de
cruz. Por isso é que Deus O exaltou e Lhe deu um nome que está
acima de todo o nome» (Fil 2, 8-9). É precisamente na sua
morte que Jesus revela toda a grandeza e valor da vida,
enquanto a sua doação na cruz se torna fonte de vida nova para
todos os homens (cf. Jo 12, 32). Neste peregrinar por entre as
contradições e a própria perda da vida, Jesus é guiado pela
certeza de que ela está nas mãos do Pai. Por isso, na cruz
pode dizer-Lhe: «Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito»
(Lc 23, 46), isto é, a minha vida. Verdadeiramente grande é o
valor da vida humana, se o Filho de Deus a assumiu e fez dela
o lugar onde se realiza a salvação para a humanidade inteira!
«Chamados (...) a ser conformes à imagem do Seu Filho» (Rm
8, 28-29): a glória de Deus resplandece no rosto do homem
34. A vida é sempre um bem. Esta é uma intuição ou até um
dado de experiência, cuja razão profunda o homem é chamado a
compreender.
Por que motivo a vida é um bem? Esta pergunta percorre a
Bíblia inteira, encontrando já nas primeiras páginas uma
resposta eficaz e admirável. A vida que Deus dá ao homem é
diversa e original, se comparada com a de qualquer outra
criatura viva, dado que ele, apesar de aparentado com o pó da
terra (cf. Gn 2, 7; 3, 19; Job 34, 15; Sal 103102, 14; 104103,
29), é, no mundo, manifestação de Deus, sinal da sua presença,
vestígio da sua glória (cf. Gn 1, 26-27; Sal 8, 6). Isto mesmo
quis sublinhar Santo Ireneu de Lião, com a célebre definição:
«A glória de Deus é o homem vivo».23 Ao homem foi dada uma
dignidade sublime, que tem as suas raízes na ligação íntima
que o une ao seu Criador: no homem, brilha um reflexo da
própria realidade de Deus.
Afirma-o o Livro do Génesis, na primeira narração das
origens, ao colocar o homem no vértice da actividade criadora
de Deus, como seu coroamento, no termo de um processo que vai
do caos indefinido até à criatura mais perfeita. Na criação,
tudo está ordenado para o homem e tudo lhe fica submetido: «Enchei e dominai a terra. Dominai (...) sobre todos os animais
que se movem na terra» (1, 28) - ordena Deus ao homem e à
mulher. Mensagem semelhante aparece também no outro relato das
origens: «O Senhor levou o homem e colocou-o no jardim do
Éden para o cultivar e, também, para o guardar» (Gn 2, 15).
Confirma- -se assim o primado do homem sobre as coisas: estas
estão ordenadas ao homem e entregues à sua responsabilidade,
enquanto por nenhuma razão pode o homem ser subjugado pelos
seus semelhantes e como que reduzido ao estatuto de coisa.
Na narração bíblica, a distinção entre o homem e as demais
criaturas é evidenciada sobretudo pelo facto de apenas a sua
criação ser apresentada como fruto de uma especial decisão da
parte de Deus, de uma deliberação que consiste em estabelecer
uma ligação particular e específica com o Criador: «Façamos o
homem à nossa imagem, à nossa semelhança» (Gn 1, 26). A vida
que Deus oferece ao homem, é um dom, pelo qual Deus participa
algo de Si mesmo à sua criatura.
Israel interrogar-se-á longamente acerca do sentido desta
ligação particular e específica do homem com Deus. O Livro de
Ben-Sirá reconhece que Deus, ao criar os homens, «revestiu-os
da força conveniente e fê-los à própria imagem» (17, 3). E a
isso subordina o autor sagrado, não só o domínio sobre o
mundo, mas também as faculdades espirituais mais específicas
do homem, como a razão, o discernimento do bem e do mal, a
vontade livre: «Encheu-os de saber e inteligência, e
mostrou-lhes o bem e o mal» (Sir 17, 7). A capacidade de
alcançar a verdade e a liberdade são prerrogativas do homem
enquanto criatura feita à imagem do seu Criador, o Deus
verdadeiro e justo (cf. Dt 32, 4). Dentre todas as criaturas
visíveis, apenas o homem é «capaz de conhecer e amar o seu
Criador».24 A vida que Deus dá ao homem, é muito mais do que
uma existência no tempo. É tensão para uma plenitude de vida;
é germe de uma existência que ultrapassa os próprios limites
do tempo: «Deus criou o homem para a incorruptibilidade, e
fê-lo à imagem da sua própria natureza» (Sab 2, 23).
35. Também o relato jahvista das origens exprime a mesma
convicção. Esta antiga narração fala de um sopro divino que
é insuflado no homem, para que este dê entrada na vida: «O
Senhor Deus formou o homem do pó da terra e insuflou-lhe pelas
narinas o sopro da vida, e o homem transformou-se num ser vivo» (Gn 2, 7).
A origem divina deste espírito de vida explica a perene
insatisfação que acompanha o homem, ao longo dos seus dias.
Obra plasmada pelo Senhor e trazendo em si mesmo um traço
indelével de Deus, o homem tende naturalmente para Ele. Quando
escuta o anseio profundo do coração, não pode deixar de fazer
sua esta afirmação de Santo Agostinho: «Criastes-nos para
Vós, Senhor, e o nosso coração vive inquieto enquanto não
repousa em Vós».25
Como é eloquente aquela insatisfação que se apodera da vida
do homem no Éden, quando lhe resta como única referência o
mundo vegetal e animal (cf. Gn 2, 20)! Somente a aparição da
mulher, isto é, de um ser que é carne da sua carne e osso dos
seus ossos (cf. Gn 2, 23) e no qual vive igualmente o espírito
de Deus Criador, pode satisfazer a exigência de diálogo
interpessoal, tão vital para a existência humana. No outro,
homem ou mulher, reflecte-Se o próprio Deus, abrigo definitivo
e plenamente feliz de toda a pessoa.
«Que é o homem para Vos lembrardes dele, o filho do homem
para dele cuidardes?» - interroga-se o Salmista (Sal 8, 5).
Diante da imensidão do universo, coisa bem pequena é o homem;
mas é precisamente este contraste que faz sobressair a sua
grandeza: «Pouco lhe falta para que seja um ser divino; de
glória e de honra o coroastes» (Sal 8, 6). A glória de Deus
resplandece no rosto do homem. Nele, o Criador encontra o seu
repouso, como comenta, maravilhado e comovido, Santo Ambrósio:
«Terminou o sexto dia, ficando concluída a criação do mundo
com a formação daquela obra-prima, o homem, que exerce o
domínio sobre todos os seres vivos e é como que o ápice do
universo e a suprema beleza de todo o ser criado.
Verdadeiramente deveremos manter um silêncio reverente, já que
o Senhor Se repousou de toda a obra do mundo. Repousou-Se no
íntimo do homem, repousou-Se na sua mente e no seu pensamento;
de facto, tinha criado o homem dotado de razão, capaz de O
imitar, émulo das suas virtudes, desejoso das graças celestes.
Nestes seus dotes, repousa Deus que disse: "Sobre quem
repousarei senão naquele que é humilde, pacífico e teme as
minhas palavras?" (Is 66, 1-2). Agradeço ao Senhor nosso Deus
que criou uma obra tão maravilhosa que nela encontra o seu
repouso».26
36. Infelizmente, este projecto maravilhoso de Deus ficou
ofuscado pela irrupção do pecado na história. Com o pecado, o
homem revolta-se contra o Criador, acabando por idolatrar as
criaturas: «Veneraram a criatura e prestaram-lhe culto de
preferência ao Criador» (Rm 1, 25). Deste modo, o ser humano
não só deturpa a imagem de Deus em si mesmo, mas é tentado a
ofendê-la também nos outros, substituindo as relações de
comunhão por atitudes de desconfiança, indiferença, inimizade,
até chegar ao ódio homicida. Quando não se reconhece Deus como
tal, atraiçoa-se o sentido profundo do homem e prejudica-se a
comunhão entre os homens.
Na vida do homem, a imagem de Deus volta a resplandecer e
manifesta-se em toda a sua plenitude com a vinda do Filho de
Deus em carne humana: «Ele é a imagem do Deus invisível» (Col
1, 15), «o resplendor da sua glória e a imagem da sua
substância» (Heb 1, 3). Ele é a imagem perfeita do Pai.
O projecto de vida confiado ao primeiro Adão encontra
finalmente em Cristo a sua realização. Enquanto a
desobediência de Adão arruína e deturpa o desígnio de Deus
sobre a vida do homem e introduz a morte no mundo, a
obediência redentora de Cristo é fonte de graça que se derrama
sobre os homens, abrindo a todos, de par em par, as portas do
reino da vida (cf. Rm 5, 12-21). Afirma o apóstolo Paulo: «O
primeiro homem, Adão, foi feito alma vivente; o último Adão é
um espírito vivificante» (1 Cor 15, 45).
A todos aqueles que aceitam seguir Cristo, é-lhes dada a
plenitude da vida: neles, a imagem divina é restaurada,
renovada e levada à perfeição. Este é o desígnio de Deus para
os seres humanos: tornarem-se «conformes à imagem do seu
Filho» (Rm 8, 29). Só assim, no esplendor desta imagem, é que
o homem pode ser liberto da escravidão da idolatria, pode
reconstruir a fraternidade perdida e reencontrar a sua
identidade.
«Quem crê em Mim, ainda que esteja morto viverá» (Jo 11,
26): o dom da vida eterna
37. A vida que o Filho de Deus veio dar aos homens, não se
reduz meramente à existência no tempo. A vida, que desde
sempre está «n'Ele» e constitui «a luz dos homens» (Jo 1,
4), consiste em ser gerados por Deus e participar na plenitude
do seu amor: «A todos os que O receberam, aos que crêem n'Ele,
deu-lhes o poder de se tornarem filhos de Deus; eles que não
nasceram do sangue, nem de vontade carnal, nem de vontade do
homem, mas sim de Deus» (Jo 1, 12-13).
Umas vezes, Jesus designa esta vida, que Ele veio dar,
simplesmente como «a vida»; e apresenta o ser gerado por
Deus como condição necessária para poder alcançar o fim para o
qual o homem foi criado: «Quem não nascer de novo, não pode
ver o Reino de Deus» (Jo 3, 3). O dom desta vida constitui o
objecto próprio da missão de Jesus; Ele «é Aquele que desce
do Céu e dá a vida ao mundo» (Jo 6, 33), de tal modo que pode
afirmar com toda a verdade: «Quem Me segue (...) terá a luz
da vida» (Jo 8, 12).
Outras vezes, Jesus fala de «vida eterna», sem querer com
o adjectivo aludir apenas a uma perspectiva supratemporal. «Eterna» é a vida que Jesus promete e dá, porque é plenitude
de participação na vida do «Eterno». Todo aquele que crê em
Jesus e vive em comunhão com Ele tem a vida eterna (cf. Jo 3,
15; 6, 40), porque d'Ele escuta as únicas palavras que revelam
e infundem plenitude de vida à sua existência; são as «palavras de vida eterna», que Pedro reconhece na sua
confissão de fé: «Senhor, para quem havemos nós de ir? Tu
tens palavras de vida eterna; e nós acreditamos e sabemos que
és o Santo de Deus» (Jo 6, 68-69). O que seja essa vida
eterna, declara-o Jesus quando se dirigiu ao Pai na grande
oração sacerdotal: «A vida eterna consiste nisto: que Te
conheçam a Ti, por único Deus verdadeiro, e a Jesus Cristo, a
Quem enviaste» (Jo 17, 3). Conhecer a Deus e ao seu Filho é
acolher o mistério da comunhão de amor do Pai, do Filho e do
Espírito Santo, na própria vida que se abre, já desde agora, à
vida eterna pela participação na vida divina.
38. Por conseguinte, a vida eterna é a própria vida de Deus
e simultaneamente a vida dos filhos de Deus. Um assombro
incessante e uma gratidão sem limites não podem deixar de se
apoderar do crente diante desta inesperada e inefável verdade
que nos vem de Deus em Cristo. O crente faz suas as palavras
do apóstolo João: «Vede com que amor nos amou o Pai, ao
querer que fôssemos chamados filhos de Deus. E somo-lo de
facto! (...) Caríssimos, agora somos filhos de Deus, mas ainda
não se manifestou o que havemos de ser. Sabemos, porém, que,
quando Ele Se manifestar, seremos semelhantes a Ele, porque O
veremos como Ele é» (1 Jo 3, 1-2).
Assim, chega ao seu auge a verdade cristã acerca da vida. A
dignidade desta não está ligada apenas às suas origens, à sua
proveniência de Deus, mas também ao seu fim, ao seu destino de
comunhão com Deus no conhecimento e no amor d'Ele. É à luz
desta verdade que Santo Ireneu especifica e completa a sua
exaltação do homem: «glória de Deus» é, sim, «o homem vivo», mas
«a vida do homem consiste na visão de Deus».27
Daqui resultam consequências imediatas para a vida humana
em sua própria condição terrena, na qual já germinou e está a
crescer a vida eterna. Se o homem ama instintivamente a vida
porque é um bem, tal amor encontra ulterior motivação e força,
nova amplitude e profundidade nas dimensões divinas desse bem.
Em semelhante perspectiva, o amor que cada ser humano tem pela
vida não se reduz à simples busca de um espaço onde poder
exprimir-se a si mesmo e entrar em relação com os outros, mas
evolui até à certeza feliz de poder fazer da própria
existência o «lugar» da manifestação de Deus, do encontro e
comunhão com Ele. A vida que Jesus nos dá, não desvaloriza a
nossa existência no tempo, mas assume-a e condu-la ao seu
último destino: «Eu sou a ressurreição e a vida; (...) todo
aquele que vive e crê em Mim não morrerá jamais» (Jo 11,
25.26).
«A cada um, pedirei contas do seu irmão» (cf. Gn 9, 5):
veneração e amor pela vida dos outros
39. A vida do homem provém de Deus, é dom seu, é imagem e
figura d'Ele, participação do seu sopro vital. Desta vida,
portanto, Deus é o único senhor: o homem não pode dispor dela.
Deus mesmo o confirma a Noé, depois do dilúvio: «Ao homem,
pedirei contas da vida do homem, seu irmão» (Gn 9, 5). E o
texto bíblico preocupa-se em sublinhar como a sacralidade da
vida tem o seu fundamento em Deus e na sua acção criadora: «Porque Deus fez o homem à sua imagem» (Gn 9, 6).
Portanto, a vida e a morte do homem estão nas mãos de Deus,
em seu poder: «Deus tem nas suas mãos a alma de todo o ser
vivente, e o sopro de vida de todos os homens» - exclama Job
(12, 10). «O Senhor é que dá a morte e a vida, leva à
habitação dos mortos e retira de lá» (1 Sam 2, 6). Apenas Ele
pode afirmar: «Só Eu é que dou a vida e dou a morte» (Dt 32,
39).
Mas Deus não exerce esse poder como arbítrio ameaçador,
mas, sim, como cuidado e solicitude amorosa pelas suas
criaturas. Se é verdade que a vida do homem está nas mãos de
Deus, não o é menos que estas são mãos amorosas como as de uma
mãe que acolhe, nutre e toma conta do seu filho: «Fico
sossegado e tranquilo como criança deitada nos braços de sua
mãe, como um menino deitado é a minha alma» (Sal 131130, 2;
cf. Is 49, 15; 66, 12-13; Os 11, 4). Assim nas vicissitudes
dos povos e na sorte dos indivíduos, Israel não vê o fruto de
pura casualidade ou de um destino cego, mas o resultado de um
desígnio de amor, pelo qual Deus resguarda todas as
potencialidades da vida e se contrapõe às forças de morte que
nascem do pecado: «Deus não é o autor da morte, a perdição
dos vivos não Lhe dá nenhuma alegria. Porquanto Ele criou tudo
para a existência» (Sab 1, 13-14).
40. Da sacralidade da vida dimana a sua inviolabilidade,
inscrita desde as origens no coração do homem, na sua
consciência. A pergunta «que fizeste?» (Gn 4, 10), dirigida
por Deus a Caim depois de ter assassinado o irmão Abel, traduz
a experiência de cada homem: no fundo da sua consciência, ele
sente incessantemente o apelo à inviolabilidade da vida - a
própria e a alheia -, como realidade que não lhe pertence,
pois é propriedade e dom de Deus Criador e Pai.
O preceito relativo à inviolabilidade da vida humana ocupa
o centro dos «dez mandamentos» na aliança do Sinai (cf. Ex
34, 28). Nele se proíbe, antes de mais, o homicídio: «Não
matarás» (Ex 20, 13), «não causarás a morte do inocente e do
justo» (Ex 23, 7); mas proíbe também - como se explicita na
legislação posterior de Israel - qualquer lesão infligida a
outrem (cf. Ex 21, 12-27). Tem-se de reconhecer que esta
sensibilidade pelo valor da vida no Antigo Testamento, apesar
de já tão notável, não alcança ainda a perfeição do Sermão da
Montanha, como resulta de alguns aspectos da legislação penal
então vigente, que previa castigos corporais pesados e até
mesmo a pena de morte. Mas globalmente esta mensagem, que o
Novo Testamento levará à perfeição, é já um forte apelo ao
respeito pela inviolabilidade da vida física e da integridade
pessoal, e tem o seu ápice no mandamento positivo que obriga a
cuidar do próximo como de si mesmo: «Amarás o teu próximo
como a ti mesmo» (Lv 19, 18).
41. O mandamento «não matarás», contido e aprofundado no
mandamento positivo do amor do próximo, é confirmado em toda a
sua validade pelo Senhor Jesus. Ao jovem rico que Lhe pede «Mestre, que hei-de fazer de bom para alcançar a vida eterna?», responde:
«Se queres entrar na vida eterna, cumpre os
mandamentos» (Mt 19, 16.17). E, logo em primeiro lugar, cita
«não matarás» (19, 18). No Sermão da Montanha, Jesus exige
dos discípulos uma justiça superior à dos escribas e fariseus,
no campo do respeito pela vida: «Ouvistes que foi dito aos
antigos: "Não matarás; aquele que matar está sujeito a ser
condenado". Eu, porém, digo-vos: quem se irritar contra o seu
irmão será réu perante o tribunal» (Mt 5, 21-22).
Com a sua palavra e os seus gestos, Jesus explicita
ulteriormente as exigências positivas do mandamento referente
à inviolabilidade da vida. Estavam já presentes no Antigo
Testamento, onde a legislação se preocupava em garantir e
salvaguardar as situações de vida débil e ameaçada: o
estrangeiro, a viúva, o órfão, o enfermo, o pobre em geral, a
própria vida antes de nascer (cf. Ex 21, 22; 22, 20-26). Mas
com Jesus, essas exigências positivas adquirem novo vigor e
ímpeto, manifestando-se em toda a sua amplitude e
profundidade: vão desde o velar pela vida do irmão (familiar,
membro do mesmo povo, estrangeiro que habita na terra de
Israel), passam pelo cuidar do desconhecido, para chegarem até
ao amor do inimigo.
O desconhecido deixa de ser tal para quem deve fazer-se
próximo de todo aquele que se encontra necessitado, até
assumir a responsabilidade da sua vida, como ensina, de modo
eloquente e incisivo, a parábola do bom samaritano (cf. Lc 10,
25-37). Também o inimigo cessa de o ser para quem é obrigado a
amá-lo (cf. Mt 5, 38-48; Lc 6, 27-35) e «fazer-lhe bem» (cf. Lc 6, 27.33.35), levando remédio às carências da sua vida, com
prontidão e sem esperar recompensa (cf. Lc 6, 34-35). No
vértice deste amor, está a oração pelo inimigo, pela qual nos
colocamos em sintonia com o amor providente de Deus: «Eu,
porém, digo-vos: Amai os vossos inimigos e orai pelos que vos
perseguem. Fazendo assim, tornar-vos-eis filhos do vosso Pai
que está nos Céus; pois Ele faz que o sol se levante sobre os
bons e os maus e faz cair a chuva sobre os justos e os
pecadores» (Mt 5, 44-45; cf. Lc 6, 28.35).
Assim, o mandamento de Deus, orientado para a defesa da
vida do homem, tem a sua dimensão mais profunda na exigência
de veneração e amor por toda a pessoa e sua vida. Este é o
ensinamento que o apóstolo Paulo, dando eco às palavras de
Jesus (cf. Mt 19, 17-18), dirige aos cristãos de Roma: «Com
efeito: "Não cometerás adultério, não matarás, não furtarás,
não cobiçarás" e qualquer dos outros mandamentos resumem-se
nestas palavras: "Amarás ao próximo como a ti mesmo". A
caridade não faz mal ao próximo. A caridade é, pois, o pleno
cumprimento da lei» (Rm 13, 9-10).
«Crescei e multiplicai-vos, enchei e dominai a terra» (Gn
1, 28): as responsabilidades do homem pela vida
42. Defender e promover, venerar e amar a vida é tarefa que
Deus confia a cada homem, ao chamá-lo enquanto sua imagem viva
a participar no domínio que Ele tem sobre o mundo: «Abençoando-os, Deus disse: "Crescei e multiplicai-vos, enchei
e dominai a terra. Dominai sobre os peixes do mar, sobre as
aves dos céus e sobre todos os animais que se movem na terra"» (Gn 1, 28).
O texto bíblico manifesta claramente a amplitude e
profundidade do domínio que Deus concede ao homem. Trata-se,
antes de mais, de domínio sobre a terra e sobre todo o ser
vivo, como recorda o Livro da Sabedoria: «Deus dos nossos
pais e Senhor de misericórdia, (...) formastes o homem pela
vossa sabedoria, para dominar sobre as criaturas a quem destes
a vida, para governar o mundo com santidade e justiça» (9,
1.2-3). Também o Salmista exalta o domínio do homem como sinal
da glória e honra recebidas do Criador: «Destes-lhe domínio
sobre as obras das vossas mãos. Tudo submetestes debaixo dos
seus pés; os rebanhos e os gados sem excepção, até mesmo os
animais selvagens; as aves do céu e os peixes do mar, tudo o
que se move nos oceanos» (Sal 8, 7-9).
Chamado a cultivar e guardar o jardim do mundo (cf. Gn 2,
15), o homem detém uma responsabilidade específica sobre o
ambiente de vida, ou seja, sobre a criação que Deus pôs ao
serviço da sua dignidade pessoal, da sua vida: e isto não só
em relação ao presente, mas também às gerações futuras. É a
questão ecológica - desde a preservação do «habitat» natural
das diversas espécies animais e das várias formas de vida, até
à «ecologia humana» propriamente dita 28 - que, no texto
bíblico, encontra luminosa e forte indicação ética para uma
solução respeitosa do grande bem da vida, de toda a vida. Na
realidade, «o domínio conferido ao homem pelo Criador não é
um poder absoluto, nem se pode falar de liberdade de "usar e
abusar", ou de dispor das coisas como melhor agrade. A
limitação imposta pelo mesmo Criador, desde o princípio, e
expressa simbolicamente com a proibição de "comer o fruto da
árvore" (cf. Gn 2, 16-17), mostra com suficiente clareza que,
nas relações com a natureza visível, nós estamos submetidos a
leis, não só biológicas, mas também morais, que não podem
impunemente ser transgredidas».29
43. Uma certa participação do homem no domínio de Deus
manifesta-se também na específica responsabilidade que lhe
está confiada no referente à vida propriamente humana. Essa
responsabilidade atinge o auge na doação da vida, através da
geração por obra do homem e da mulher no matrimónio, como nos
recorda o Concílio Vaticano II: «O mesmo Deus que disse "não
é bom que o homem esteja só" (Gn 2, 18) e que "desde a origem
fez o ser humano varão e mulher" (Mt 19, 4), querendo
comunicar uma participação especial na sua obra criadora,
abençoou o homem e a mulher dizendo: "crescei e
multiplicai-vos" (Gn 1, 28)».30
Ao falar de «uma participação especial» do homem e da
mulher na «obra criadora» de Deus, o Concílio pretende pôr
em relevo como a geração do filho é um facto não só
profundamente humano mas também altamente religioso, enquanto
implica os cônjuges, que formam «uma só carne» (Gn 2, 24), e
simultaneamente o próprio Deus que Se faz presente. Como
escrevi na Carta às Famílias, «quando da união conjugal dos
dois nasce um novo homem, este traz consigo ao mundo uma
particular imagem e semelhança do próprio Deus: na biologia da
geração está inscrita a genealogia da pessoa. Ao afirmarmos
que os cônjuges, enquanto pais, são colaboradores de Deus
Criador na concepção e geração de um novo ser humano, não nos
referimos apenas às leis da biologia; pretendemos sobretudo
sublinhar que, na paternidade e maternidade humana, o próprio
Deus está presente de um modo diverso do que se verifica em
qualquer outra geração "sobre a terra". Efectivamente, só de
Deus pode provir aquela "imagem e semelhança" que é própria do
ser humano, tal como aconteceu na criação. A geração é a
continuação da criação».31
Isto mesmo ensina, com linguagem clara e eloquente, o texto
sagrado ao mencionar o grito jubiloso da primeira mulher, a «mãe de todos os viventes» (Gn 3, 20); consciente da
intervenção de Deus, Eva exclama: «Gerei um homem com o
auxílio do Senhor» (Gn 4, 1). Assim, na geração, através da
comunicação da vida dos pais ao filho transmite-se, graças à
criação da alma imortal,32 a imagem e semelhança do próprio
Deus. Neste sentido, se exprime o início do «livro da
genealogia de Adão»: «Quando Deus criou o homem, fê-lo à
semelhança de Deus. Criou-os varão e mulher, e abençoou-os.
Deu-lhes o nome de Homem no dia em que os criou. Com cento e
trinta anos, Adão gerou um filho à sua imagem e semelhança, e
pôs-lhe o nome de Set» (Gn 5, 1-3). Precisamente neste papel
de colaboradores de Deus, que transmite a sua imagem à nova
criatura, está a grandeza dos cônjuges, dispostos «a
colaborar com o amor do Criador e Salvador, que por meio deles
aumenta cada dia mais e enriquece a sua família».33 À luz
disto, o bispo Anfilóquio exaltava o «matrimónio santo,
eleito e elevado acima de todos os dons terrenos», porque «gerador da humanidade, artífice de imagens de Deus».34
Assim o homem e a mulher, unidos pelo matrimónio, estão
associados a uma obra divina: por meio do acto da geração, o
dom de Deus é acolhido, e uma nova vida se abre ao futuro.
Mas, uma vez realçada a missão específica dos pais, há que
acrescentar: a obrigação de acolher e servir a vida compete a
todos e deve manifestar-se sobretudo a favor da vida em
condições de maior fragilidade. É o próprio Cristo quem no-lo
recorda, ao pedir para ser amado e servido nos irmãos provados
por qualquer tipo de sofrimento: famintos, sedentos,
estrangeiros, nus, doentes, encarcerados... Aquilo que for
feito a cada um deles, é feito ao próprio Cristo (cf. Mt 25,
31-46).
«Vós é que plasmastes o meu interior» (Sal 139138, 13): a
dignidade da criança ainda não nascida
44. A vida humana atravessa situações de grande
fragilidade, quer ao entrar no mundo, quer quando sai do tempo
para ir ancorar-se na eternidade. Na Palavra de Deus,
encontramos numerosos apelos ao cuidado e respeito pela vida,
sobretudo quando esta aparece ameaçada pela doença e pela
velhice. Se faltam apelos directos e explícitos para
salvaguardar a vida humana nas suas origens, especialmente a
vida ainda não nascida, ou então a vida próxima do seu termo,
isso explica-se facilmente pelo facto de que a mera
possibilidade de ofender, agredir ou mesmo negar a vida em
tais condições estava fora do horizonte religioso e cultural
do Povo de Deus.
No Antigo Testamento, a esterilidade era temida como uma
maldição, enquanto se considerava uma bênção a prole numerosa:
«Os filhos são bênçãos do Senhor; os frutos do ventre, um
mimo do Senhor» (Sal 127126, 3; cf. Sal 128127, 3-4). Para
esta convicção, concorre certamente a consciência que Israel
tem de ser o povo da Aliança, chamado a multiplicar-se segundo
a promessa feita a Abraão: «Ergue os olhos para os céus e
conta as estrelas, se fores capaz de as contar (...) será
assim a tua descendência» (Gn 15, 5). Mas influi sobretudo a
certeza de que a vida transmitida pelos pais tem a sua origem
em Deus, como o atestam tantas páginas bíblicas que, com
respeito e amor, falam da concepção, da moldagem da vida no
ventre materno, do nascimento e da ligação íntima entre o
momento inicial da existência e a acção de Deus Criador.
«Antes que fosses formado no ventre de tua mãe, Eu já te
conhecia; antes que saísses do seio materno, Eu te consagrei»
(Jr 1, 5): a existência de cada indivíduo, desde as suas
origens, obedece ao desígnio de Deus. Job, na profundidade da
sua dor, detém-se a contemplar a obra de Deus na miraculosa
formação do seu corpo no ventre da mãe, retirando daí motivo
de confiança e exprimindo a certeza da existência de um
projecto divino para a sua vida: «As tuas mãos formaram-me e
fizeram-me e, de repente, vais aniquilar-me? Lembra-Te que me
formaste com o barro; far-me-ás, agora, voltar ao pó? Não me
espremeste como o leite e coalhaste como o queijo? De pele e
de carne me revestiste, de ossos e de nervos me consolidaste.
Deste-me a vida e favoreceste-me; a tua providência conservou
o meu espírito» (10, 8-12). Modulações cheias de enlevo
adorador pela intervenção de Deus na vida em formação no
ventre materno ressoam também nos Salmos.35
Como pensar que este maravilhoso processo de germinação da
vida possa subtrair-se, por um só momento, à obra sapiente e
amorosa do Criador para ficar abandonado ao arbítrio do homem?
Não o pensa, seguramente, a mãe dos sete irmãos que professa a
sua fé em Deus, princípio e garantia da vida desde a concepção
e ao mesmo tempo fundamento da esperança da nova vida para
além da morte: «Não sei como aparecestes nas minhas
entranhas, porque não fui eu quem vos deu a alma nem a vida e
nem fui eu quem ajuntou os vossos membros. Mas o Criador do
mundo, autor do nascimento do homem e criador de todas as
coisas, restituir-vos-á, na sua misericórdia, tanto o espírito
como a vida, se agora fizerdes pouco caso de vós mesmos por
amor das suas leis» (2 Mac 7, 22-23).
45. A revelação do Novo Testamento confirma o
reconhecimento indiscutível do valor da vida desde os seus
inícios. A exaltação da fecundidade e o trepidante anseio da
vida ressoam nas palavras com que Isabel rejubila pela sua
gravidez: ao Senhor «aprouve retirar a minha ignomínia» (Lc
1, 25). Mas o valor da pessoa, desde a sua concepção, é
celebrado ainda melhor no encontro da Virgem Maria e Isabel e
entre as duas crianças, que trazem no seio. São precisamente
eles, os meninos, a revelarem a chegada da era messiânica: no
seu encontro, começa a agir a força redentora da presença do
Filho de Deus no meio dos homens. «Depressa se manifestam -
escreve Santo Ambrósio - os benefícios da chegada de Maria e
da presença do Senhor. (...) Isabel foi a primeira a escutar a
voz, mas João foi o primeiro a pressentir a graça. Aquela
escutou segundo a ordem da natureza; este exultou em virtude
do mistério. Ela apreendeu a chegada de Maria; este, a do
Senhor. A mulher ouviu a voz da mulher; o menino sentiu a
presença do Filho. Aquelas proclamam a graça de Deus, estes
realizam-na interiormente, iniciando no seio de suas mães o
mistério de piedade; e, por um duplo milagre, as mães
profetizam sob a inspiração de seus filhos. O filho exultou de
alegria; a mãe ficou cheia do Espírito Santo. A mãe não se
antecipou ao filho; foi este que, uma vez cheio do Espírito
Santo, o comunicou a sua mãe».36
«Confiei mesmo quando disse: "Sou um homem de todo
infeliz"» (Sal 116115, 10): a vida na velhice e no sofrimento
46. Também no que se refere aos últimos dias da existência,
seria anacrónico esperar da revelação bíblica uma referência
expressa à problemática actual do respeito pelas pessoas
idosas e doentes, ou uma explícita condenação das tentativas
de lhes antecipar violentamente o fim: encontramo-nos, de
facto, perante um contexto cultural e religioso que não está
pervertido por tais tentações, mas antes reconhece na
sabedoria e experiência do ancião uma riqueza insubstituível
para a família e a sociedade.
A velhice goza de prestígio e é circundada de veneração
(cf. 2 Mac 6, 23). O justo não pede para ser privado da
velhice nem do seu peso; antes pelo contrário: «Vós sois a
minha esperança, a minha confiança, Senhor, desde a minha
juventude. (...) Agora, na velhice e na decrepitude, não me
abandoneis, ó Deus; para que narre às gerações a força do
vosso braço, o vosso poder a todos os que hão-de vir» (Sal
7170, 5.18). O ideal do tempo messiânico é apresentado como
aquele em que «não mais haverá (...) um velho que não
complete os seus dias» (Is 65, 20).
Mas, como enfrentar o declínio inevitável da vida, na
velhice?Como comportar-se frente à morte? O crente sabe que a
sua vida está nas mãos de Deus: «Senhor, nas tuas mãos está a
minha vida» (cf. Sal 1615, 5); e d'Ele aceite também a morte:
«Este é o juízo do Senhor sobre toda a humanidade; e porque
quererias reprovar a lei do Altíssimo?» (Sir 41, 4). O homem
não é senhor nem da vida nem da morte; tanto numa como noutra,
deve abandonar-se totalmente à «vontade do Altíssimo», ao
seu desígnio de amor.
Também no momento da doença, o homem é chamado a viver a
mesma entrega ao Senhor e a renovar a sua confiança
fundamental n'Aquele que «sara todas as enfermidades» (cf.
Sal 103102, 3). Quando toda e qualquer esperança de saúde
parece fechar-se para o homem - a ponto de o levar a gritar: «Os meus dias são como a sombra que declina, e vou-me secando
como o feno» (Sal 102101, 12) - , mesmo então o crente está
animado pela fé inabalável no poder vivificador de Deus. A
doença não o leva ao desespero nem ao desejo da morte, mas a
uma invocação cheia de esperança: «Confiei mesmo quando
disse: "Sou um homem de todo infeliz"» (Sal 116115, 10);
«Senhor, meu Deus, a vós clamei e fui curado. Senhor, livrastes
a minha alma da mansão dos mortos; destes-me a vida quando já
descia ao túmulo» (Sal 3029, 3-4).
47. A missão de Jesus, com as numerosas curas realizadas,
indica quanto Deus tem a peito também a vida corporal do
homem. «Médico do corpo e do espírito»,37 Jesus foi mandado
pelo Pai para anunciar a boa nova aos pobres e para curar os
de coração despedaçado (cf. Lc 4, 18; Is 61, 1). Depois, ao
enviar os seus discípulos pelo mundo, confia-lhes uma missão
na qual a cura dos doentes acompanha o anúncio do Evangelho: «Pelo caminho, proclamai que o reino dos Céus está perto. Curai
os enfermos, ressuscitai os mortos, purificai os leprosos,
expulsai os demónios» (Mt 10, 7-8; cf. Mc 6, 13; 16, 18).
Certamente, a vida do corpo na sua condição terrena não é
um absoluto para o crente, de tal modo que lhe pode ser pedido
para a abandonar por um bem superior; como diz Jesus, «quem
quiser salvar a sua vida, perdê-la-á, e quem perder a sua vida
por Mim e pelo Evangelho, salvá-la-á» (Mc 8, 35). A este
propósito, o Novo Testamento oferece diversos testemunhos.
Jesus não hesita em sacrificar-Se a Si próprio e, livremente,
faz da sua vida uma oferta ao Pai (cf. Jo 10, 17) e aos seus
(cf. Jo 10, 15). Também a morte de João Baptista, precursor do
Salvador, atesta que a existência terrena não é o bem
absoluto: é mais importante a fidelidade à palavra do Senhor,
ainda que esta possa pôr em jogo a vida (cf. Mc 6, 17-29). E
Estêvão, ao ser privado da vida temporal porque testemunha
fiel da ressurreição do Senhor, segue os passos do Mestre e
vai ao encontro dos seus lapidadores com as palavras do perdão
(cf. Act 7, 59-60), abrindo a estrada do exército inumerável
dos mártires, venerados pela Igreja desde o princípio.
Todavia, ninguém pode escolher arbitrariamente viver ou
morrer; efectivamente, senhor absoluto de tal decisão é apenas
o Criador, Aquele em quem «vivemos, nos movemos e existimos»
(Act 17, 28).
«Todos os que a seguirem alcançarão a vida» (Bar 4, 1):
da Lei do Sinai ao dom do Espírito
48. A vida traz indelevelmente inscrita nela uma verdade
sua. O homem, ao acolher o dom de Deus, deve comprometer-se a
manter a vida nesta verdade, que lhe é essencial. Desviar-se
dela, equivale a condenar-se a si próprio à insignificância e
à infelicidade, com a consequência de poder tornar-se também
uma ameaça para a existência dos outros, já que foram rompidos
os diques que garantiam o respeito e a defesa da vida, em
qualquer situação.
A verdade da vida é revelada pelo mandamento de Deus. A
palavra do Senhor indica concretamente a direcção que a vida
deve seguir, para poder respeitar a própria verdade e
salvaguardar a sua dignidade. Não é apenas o mandamento
específico - «não matarás» (Ex 20, 13; Dt 5, 17) - a
garantir a protecção da vida; mas a Lei do Senhor em toda a
sua extensão está ao serviço dessa protecção, porque revela
aquela verdade na qual a vida encontra o seu pleno
significado.
Não admira, pois, que a Aliança de Deus com o seu povo
esteja tão intensamente ligada à perspectiva da vida, mesmo na
sua dimensão corpórea. Naquela, o mandamento é dado como
caminho da vida: «Vê, ofereço-te hoje, de um lado, a vida e o
bem; de outro, a morte e o mal. Recomendo-te hoje que ames o
Senhor, teu Deus, que andes nos seus caminhos, que guardes os
seus preceitos, suas leis e seus decretos. Se assim fizeres,
viverás, engrandecer-te-ás e serás abençoado pelo Senhor, teu
Deus, na terra em que vais entrar para a possuir» (Dt 30,
15-16). Não está em questão apenas a terra de Canaã e a
existência do povo de Israel, mas também o mundo de hoje e do
futuro e a existência de toda a humanidade. De facto, não é
possível, absolutamente, a vida permanecer autêntica e plena,
quando se afasta do bem; e o bem, por sua vez, está
essencialmente ligado aos mandamentos do Senhor, isto é, à «lei da vida» (Sir 17, 11). O bem que se tem de realizar, não
é imposto à vida como um fardo que pesa sobre ela, porque a
própria razão da vida é precisamente o bem, e a vida é
construída apenas mediante o cumprimento do bem.
Portanto, é a Lei no seu todo que salvaguarda plenamente a
vida do homem. Isto explica como é difícil manter-se fiel ao
preceito «não matarás», quando não são observadas as demais «palavras de vida» (Act 7, 38), às quais ele está ligado.
Fora deste horizonte, o mandamento acaba por se tornar uma
mera obrigação extrínseca, da qual bem depressa desejar-se-ão
ver os limites e procurar-se-ão as atenuantes ou as excepções.
Só se nos abrirmos à plenitude da verdade acerca de Deus, do
homem e da história, é que o preceito «não matarás» voltará
a resplandecer como o melhor para o homem em todas as suas
dimensões e relações. Nesta perspectiva, podemos atingir a
plenitude da verdade contida na passagem do Livro do Deuteronómio, retomada por Jesus na resposta à primeira
tentação: «O homem não vive somente de pão, mas de tudo o que
sai da boca do Senhor» (8, 3; cf. Mt 4, 4).
É escutando a palavra do Senhor que o homem pode viver com
dignidade e justiça; é observando a lei de Deus que o homem
pode produzir frutos de vida e de felicidade: «Todos os que a
seguirem alcançarão a vida, e os que a abandonarem cairão na
morte» (Bar 4, 1).
49. A história de Israel mostra como é difícil permanecer
fiel à lei da vida, que Deus inscreveu no coração dos homens e
entregou no Sinai ao povo da Aliança. Contra a busca de
projectos de vida alternativos ao plano de Deus, levantam-se
de modo particular os Profetas, recordando insistentemente que
só o Senhor é a autêntica fonte da vida. Assim escreve
Jeremias: «O meu povo cometeu um duplo crime: abandonou-Me a
Mim, fonte de águas vivas, para cavar cisternas, cisternas
rotas, que não podem reter as águas» (2, 13). Os Profetas
apontam o dedo acusador contra aqueles que desprezam a vida e
violam os direitos das pessoas: «Esmagam como o pó da terra a
cabeça do pobre» (Am 2, 7); «mancharam este lugar com o
sangue de inocentes» (Jr 19, 4). E a estes, vem juntar-se o
profeta Ezequiel que mais de uma vez verbera a cidade de
Jerusalém, designando-a como «a cidade sanguinária» (22, 2;
24, 6.9), a «cidade que derramou o sangue no seu seio» (22,
3).
Mas, ao mesmo tempo que denunciam as ofensas contra a vida,
os Profetas preocupam-se sobretudo por suscitar a esperança de
um novo princípio de vida, capaz de fundar um renovado
relacionamento com Deus e com os irmãos, entreabrindo
possibilidades inéditas e extraordinárias para compreender e
actuar todas as exigências contidas no Evangelho da vida. Isso
será possível unicamente mediante um dom de Deus, que
purifique e renove: «Derramarei sobre vós uma água pura e
sereis purificados; Eu vos purificarei de todas as manchas e
de todos os pecados. Dar-vos-ei um coração novo e infundirei
em vós um espírito novo» (Ez 36, 25-26; cf. Jr 31, 31-34).
Graças a este «coração novo», pode-se compreender e realizar
o sentido mais verdadeiro e profundo da vida: ser um dom que
se consuma no dar-se. É a mensagem luminosa sobre o valor da
vida que nos vem da figura do Servo do Senhor: «Oferecendo a
sua vida em sacrifício expiatório, terá uma posteridade
duradoura e viverá longos dias. (...) Livrada a sua alma dos
tormentos, verá a luz» (Is 53, 10.11).
Na existência de Jesus de Nazaré, a Lei teve pleno
cumprimento, ao ser dado o coração novo por meio do seu
Espírito. Com efeito, Cristo não revoga a Lei, mas leva-a ao
seu pleno cumprimento (cf.Mt 5, 17): a Lei e os Profetas
resumem-se na regra-áurea do amor recíproco (cf. Mt 7, 12).
N'Ele, a Lei torna-se definitivamente «evangelho», feliz
notícia do domínio de Deus sobre o mundo, que reconduz toda a
existência às suas raízes e perspectivas originais. É a Nova
Lei, «a lei do Espírito que dá vida em Cristo Jesus» (Rm 8,
2), cuja expressão fundamental, a exemplo do Senhor que dá a
vida pelos próprios amigos (cf. Jo 15, 13), é o dom de si no
amor aos irmãos: «Nós sabemos que passámos da morte para a
vida, porque amamos os irmãos» (1 Jo 3, 14). É lei de
liberdade, alegria e felicidade.
«Hão-de olhar para Aquele que trespassaram» (Jo 19, 37):
na árvore da Cruz, cumpre-se o Evangelho da Vida
50. No final deste capítulo, em que meditámos a mensagem
cristã sobre a vida, quereria deter-me com cada um de vós a
contemplar Aquele que trespassaram e que atrai todos a Si (cf.
Jo 19, 37; 12, 32). Levantando os olhos para «o espectáculo»
da cruz (cf. Lc 23, 48), poderemos descobrir, nesta árvore
gloriosa, o cumprimento e a plena revelação de todo o
Evangelho da vida.
Nas primeiras horas da tarde de Sexta-feira Santa, «as
trevas cobriram toda a terra (...) por o sol se haver
eclipsado. O véu do Templo rasgou-se ao meio» (Lc 23, 44.45).
É o símbolo de uma grande perturbação cósmica e de uma luta
atroz das forças do bem contra as do mal, da vida contra a
morte. Também hoje nos encontramos no meio de uma luta
dramática entre a «cultura da morte» e a «cultura da vida». Mas o esplendor da Cruz não fica submerso pelas trevas;
pelo contrário, aquela desenha-se ainda mais clara e luminosa,
revelando-se como o centro, o sentido e o fim da história
inteira e de toda a vida humana.
Jesus é pregado na cruz e levantado da terra. Vive o
momento da sua máxima «impotência», e a sua vida parece
totalmente abandonada aos insultos dos seus adversários e às
mãos dos seus carrascos: é humilhado, escarnecido, ultrajado
(cf. Mc 15, 24-36). E contudo, precisamente diante de tudo
isso e «ao vê-Lo expirar daquela maneira», o centurião
romano exclama: «Verdadeiramente este homem era o Filho de
Deus!» (Mc 15, 39). Revela-se assim, no momento da sua
extrema debilidade, a identidade do Filho de Deus: na Cruz,
manifesta-se a sua glória!
Com a sua morte, Jesus ilumina o sentido da vida e da morte
de todo o ser humano. Antes de morrer, Jesus reza ao Pai,
pedindo o perdão para os seus perseguidores (cf. Lc 23, 34), e
ao malfeitor, que Lhe pede para Se recordar dele no seu reino,
responde: «Em verdade te digo: hoje estarás Comigo no Paraíso» (Lc 23, 43). Depois da sua morte,
«abriram-se os túmulos e
muitos corpos de santos que estavam mortos, ressuscitaram» (Mt
27, 52). A salvação, operada por Jesus, é doação de vida e de
ressurreição. Ao longo da sua existência, Jesus tinha
concedido a salvação, curando e fazendo o bem a todos (cf. Act
10, 38). Mas os milagres, as curas e as próprias ressurreições
eram sinal de outra salvação que consiste no perdão dos
pecados, ou seja, na libertação do homem do mal mais profundo,
e na sua elevação à própria vida de Deus.
Na Cruz, renova-se e realiza-se, em sua perfeição plena e
definitiva, o prodígio da serpente erguida por Moisés no
deserto (cf. Jo 3, 14-15; Nm 21, 8-9). Também hoje, voltando o
olhar para Aquele que foi trespassado, cada homem com a sua
existência ameaçada recobra a esperança segura de encontrar
libertação e redenção.
51. Mas há ainda outro acontecimento específico que atrai o
meu olhar e merece compenetrada meditação. «Quando Jesus
tomou o vinagre, exclamou: "Tudo está consumado". E inclinando
a cabeça, entregou o espírito» (Jo 19, 30). E o soldado romano
«perfurou-Lhe o lado com uma lança e logo saiu sangue
e água» (Jo 19, 34).
Tudo chegou já ao seu pleno cumprimento. O «entregar o
espírito» exprime certamente a morte de Jesus, semelhante à
de qualquer outro ser humano, mas parece aludir também ao «dom do Espírito», com que Ele nos resgata da morte e desperta
para uma vida nova.
A própria vida de Deus é participada ao homem. Mediante os
sacramentos da Igreja - cujo símbolo são o sangue e a água,
que brotam do lado de Cristo -, aquela vida é incessantemente
comunicada aos filhos de Deus, constituídos como povo da nova
aliança. Da Cruz, fonte de vida, nasce e se propaga o «povo
da vida».
Deste modo, a contemplação da Cruz leva-nos às raízes mais
profundas daquilo que sucedeu. Jesus que, ao entrar no mundo,
tinha dito: «Eis que venho, ó Deus, para fazer a tua vontade» (cf. Heb 10, 9), fez-Se em tudo obediente ao Pai, e tendo
«amado os seus que estavam no mundo, amou-os até ao fim» (Jo
13, 1), entregando-Se inteiramente por eles.
Ele que não «veio para ser servido, mas para servir e dar
a vida em resgate por todos» (Mc 10, 45), chega ao vértice do
amor na Cruz: «Ninguém tem maior amor do que aquele que dá a
vida pelos seus amigos» (Jo 15, 13). E Ele morreu por nós,
quando éramos ainda pecadores (cf. Rm 5, 8).
Deste modo, Cristo proclama que a vida atinge o seu centro,
sentido e plenitude quando é doada.
Chegada a este ponto, a meditação faz-se louvor e
agradecimento e, ao mesmo tempo, estimula-nos a imitar Jesus e
a seguir os seus passos (cf. 1 Ped 2, 21).
Também nós somos chamados a dar a nossa vida pelos irmãos,
realizando assim, na sua verdade mais plena, o sentido e o
destino da nossa existência.
Podê-lo-emos fazer porque Vós, Senhor, nos destes o exemplo
e comunicastes a força do Espírito. Podê-lo-emos fazer se cada
dia, Convosco e como Vós, formos obedientes ao Pai e fizermos
a sua vontade.
Concedei-nos, pois, ouvir com coração dócil e generoso toda
a palavra que sai da boca de Deus: aprenderemos assim não
apenas a «não matar» a vida do homem, mas também a sabê-la
venerar, amar e promover.
CAPÍTULO III
NÃO MATARÁS
A LEI SANTA DE DEUS
«Se queres entrar na vida eterna, cumpre os mandamentos»
(Mt 19, 17): Evangelho e mandamento
52. «Aproximou-se d'Ele um jovem e disse- -Lhe: "Que
hei-de fazer de bom para alcançar a vida eterna?"» (Mt 19,
16). Jesus respondeu: «Se queres entrar na vida eterna,
cumpre os mandamentos» (Mt 19, 17). O Mestre fala da vida
eterna, isto é, da participação na própria vida de Deus. A
esta vida, chega-se através da observância dos mandamentos,
incluindo naturalmente aquele que diz «não matarás». Este é
precisamente o primeiro preceito do Decálogo que Jesus recorda
ao jovem, quando este Lhe solicita os mandamentos que terá de
cumprir: «Retorquiu Jesus: "Não matarás; não cometerás
adultério; não roubarás..."» (Mt 19, 18).
O mandamento de Deus nunca está separado do seu amor: é
sempre um dom para o crescimento e a alegria do homem. Como
tal, constitui um aspecto essencial e um elemento inalienável
do Evangelho, mais, o próprio mandamento se configura como «evangelho», ou seja, uma boa e feliz notícia. Também o
Evangelho da vida é um grande dom de Deus e simultaneamente
uma exigente tarefa para o homem. Aquele suscita assombro e
gratidão na pessoa livre e pede para ser acolhido, guardado e
valorizado com vivo sentimento de responsabilidade: dando-lhe
a vida, Deus exige do homem que a ame, respeite e promova.
Deste modo, o dom faz-se mandamento, e o mandamento é em si
mesmo um dom.
Imagem viva de Deus, o homem foi querido pelo seu Criador
como rei e senhor. «Deus fez o homem - escreve S. Gregório de Nissa - de forma tal que pudesse desempenhar a sua função de
rei da terra. (...) O homem foi criado à imagem d'Aquele que
governa o universo. Tudo indica que, desde o princípio, a sua
natureza está marcada pela realeza. (...) Assim a natureza
humana, criada para ser senhora das outras criaturas, à
semelhança do Soberano do universo, foi estabelecida como sua
imagem viva, participante da dignidade do divino Arquétipo».38 Chamado para ser fecundo e multiplicar-se, sujeitar a
terra e dominar sobre os seres que lhe são inferiores (cf. Gn
1, 28), o homem é rei e senhor não apenas das coisas, mas
também e primariamente de si mesmo 39 e, em certo sentido, da
vida que lhe é dada e que ele pode transmitir por meio da
geração cumprida no amor e no respeito do desígnio de Deus. No
entanto, o seu domínio não é absoluto, mas ministerial: é
reflexo concreto do domínio único e infinito de Deus. Por
isso, o homem deve vivê-lo com sabedoria e amor, participando
da sabedoria e do amor incomensurável de Deus. E isto
verifica-se pela obediência à sua Lei santa: uma obediência
livre e alegre (cf. Sal 119118) que nasce e se alimenta da
certeza de que os preceitos do Senhor são dons de graça,
confiados ao homem sempre e só para o seu bem, para a defesa
da sua dignidade pessoal e para a prossecução da sua
felicidade.
Aquilo que foi dito no referente às coisas, vale ainda mais
agora no contexto da vida: o homem não é senhor absoluto e
árbitro incontestável, mas - e nisso está a sua grandeza
incomparável - é «ministro do desígnio de Deus».40
A vida é confiada ao homem como um tesouro que não pode
malbaratar, como um talento que há-de pôr a render. Dela terá
de prestar contas ao seu Senhor (cf. Mt 25, 14-30; Lc 19,
12-27).
«Ao homem, pedirei contas da vida do homem» (Gn 9, 5): a
vida humana é sagrada e inviolável
53. «A vida humana é sagrada, porque, desde a sua origem,
supõe "a acção criadora de Deus" e mantém-se para sempre numa
relação especial com o Criador, seu único fim. Só Deus é
senhor da vida, desde o princípio até ao fim: ninguém, em
circunstância alguma, pode reivindicar o direito de destruir
directamente um ser humano inocente».41 Com estas palavras, a
Instrução Donum vitae expõe o conteúdo central da revelação de
Deus sobre a sacralidade e inviolabilidade da vida humana.
De facto, a Sagrada Escritura apresenta ao homem o preceito
«não matarás» (Ex 20, 13; Dt 5, 17) como mandamento divino.
Como já sublinhei, encontra-se no Decálogo, no coração da
Aliança, que o Senhor concluiu com o povo eleito; mas estava
já contido na aliança primordial de Deus com a humanidade,
após o castigo purificador do dilúvio, que fora provocado pelo
incremento do pecado e da violência (cf. Gn 9, 5-6).
Deus proclama-Se Senhor absoluto da vida do homem, formado
à sua imagem e semelhança (cf. Gn 1, 26-28). A vida humana
possui, portanto, um carácter sagrado e inviolável, no qual se
reflecte a própria inviolabilidade do Criador. Por isso mesmo,
será Deus que Se fará juiz severo de qualquer violação do
mandamento «não matarás», colocado na base de toda a
convivência social. Deus é o go'el, ou seja, o defensor do
inocente (cf. Gn 4, 9-15; Is 41, 14; Jr 50, 34; Sal 1918, 15).
Deus comprova, assim também, que não Se alegra com a perdição
dos vivos (cf. Sab 1, 13). Com esta, apenas Satanás se pode
alegrar: foi pela sua inveja que a morte entrou no mundo (cf.
Sab 2, 24). «Assassino desde o princípio», o diabo é também «mentiroso e pai da mentira» (Jo 8, 44): enganando o homem,
levou-o para metas de pecado e de morte, apresentadas como
objectivos e frutos de vida.
54. O preceito «não matarás», explicitamente, tem um
forte conteúdo negativo: indica o limite extremo que nunca
poderá ser transposto. Implicitamente, porém, induz a uma
atitude positiva de respeito absoluto pela vida, levando a
promovê-la e a crescer seguindo a estrada do amor que se dá,
acolhe e serve. Também o povo da Aliança, ainda que lentamente
e não sem contradições, experimentou um amadurecimento
progressivo nessa direcção, preparando-se assim para a grande
proclamação de Jesus: o amor do próximo é um mandamento
semelhante ao do amor de Deus; «destes dois mandamentos
depende toda a Lei e os Profetas» (Mt 22, 36-40). «Com
efeito, (...) não matarás (...) e qualquer dos outros
mandamentos - sublinha S. Paulo - resumem-se nestas palavras:
"Amarás ao próximo como a ti mesmo"» (Rm 13, 9; cf. Gal 5,
14). Assumido e levado à perfeição na Nova Lei, o preceito «não matarás» permanece como condição indispensável para poder
«entrar na vida» (cf. Mt 19, 16-19). E, nesta mesma
perspectiva, aponta decisivamente a palavra do apóstolo João:
«Todo aquele que odeia o seu irmão é homicida e sabeis que
nenhum homicida tem a vida eterna permanentemente em si» (1 Jo 3, 15).
Desde os seus primórdios, a Tradição viva da Igreja - como
testemunha a Didaké, o escrito cristão extra-bíblico mais
antigo - reafirmou de modo categórico o mandamento «não
matarás»: «Há dois caminhos, um da vida e o outro da morte;
mas entre os dois existe uma grande diferença. (...) Segundo o
preceito da doutrina: não matarás; (...) não matarás o embrião
por meio do aborto, nem farás que morra o recém-nascido. (...)
Este é o caminho da morte: (...) não têm compaixão do pobre,
não sofrem com o enfermo, nem reconhecem o seu Criador;
assassinam os seus filhos e pelo aborto fazem perecer
criaturas de Deus; desprezam o necessitado, oprimem o
atribulado, são defensores dos ricos e juízes injustos dos
pobres; estão cheios de todo o pecado. Possais, filhos,
permanecer sempre longe de todas estas culpas!».42
Ao longo dos tempos, a Tradição da Igreja ensinou sempre e
unanimemente o valor absoluto e permanente do mandamento «não
matarás». É sabido que, nos primeiros séculos, o homicídio se
contava entre os três pecados mais graves - juntamente com a apostasia e o adultério -, e exigia-se uma penitência pública
particularmente onerosa e demorada, antes de ser concedido ao
homicida arrependido o perdão e a readmissão na comunidade
eclesial.
55. Não há de que se maravilhar! Matar o ser humano, no
qual está presente a imagem de Deus, é pecado de particular
gravidade. Só Deus é dono da vida! No entanto, frente aos
múltiplos casos, frequentemente dramáticos, que a vida
individual e social apresenta, a reflexão dos crentes procurou
sempre alcançar um conhecimento mais completo e profundo
daquilo que o mandamento de Deus proíbe e prescreve.43 Com
efeito, há situações onde os valores propostos pela Lei de
Deus parecem formar um verdadeiro paradoxo. É o caso, por
exemplo, da legítima defesa, onde o direito de proteger a
própria vida e o dever de não lesar a alheia se revelam, na
prática, dificilmente conciliáveis. Sem dúvida que o valor
intrínseco da vida e o dever de dedicar um amor a si mesmo não
menor que aos outros, fundam um verdadeiro direito à própria
defesa. O próprio preceito que manda amar os outros, enunciado
no Antigo Testamento e confirmado por Jesus, supõe o amor a si
mesmo como termo de comparação: «Amarás o teu próximo como a
ti mesmo» (Mc 12, 31). Portanto, ninguém poderia renunciar ao
direito de se defender por carência de amor à vida ou a si
mesmo, mas apenas em virtude de um amor heróico que, na linha
do espírito das bem-aventuranças evangélicas (cf. Mt 5, 38-
48), aprofunde o amor a si mesmo, transfigurando-o naquela
oblação radical cujo exemplo mais sublime é o próprio Senhor
Jesus.
Por outro lado, «a legítima defesa pode ser, não somente
um direito, mas um dever grave, para aquele que é responsável
pela vida de outrem, do bem comum da família ou da sociedade».44 Acontece, infelizmente, que a necessidade de colocar o
agressor em condições de não molestar implique, às vezes, a
sua eliminação. Nesta hipótese, o desfecho mortal há-de ser
atribuído ao próprio agressor que a tal se expôs com a sua
acção, inclusive no caso em que ele não fosse moralmente
responsável por falta do uso da razão.45
56. Nesta linha, coloca-se o problema da pena de morte, à
volta do qual se regista, tanto na Igreja como na sociedade, a
tendência crescente para pedir uma aplicação muito limitada,
ou melhor, a total abolição da mesma. O problema há-de ser
enquadrado na perspectiva de uma justiça penal, que seja cada
vez mais conforme com a dignidade do homem e portanto, em
última análise, com o desígnio de Deus para o homem e a
sociedade. Na verdade, a pena, que a sociedade inflige, tem «como primeiro efeito o de compensar a desordem introduzida
pela falta».46 A autoridade pública deve fazer justiça pela
violação dos direitos pessoais e sociais, impondo ao réu uma
adequada expiação do crime como condição para ser readmitido
no exercício da própria liberdade. Deste modo, a autoridade
há-de procurar alcançar o objectivo de defender a ordem
pública e a segurança das pessoas, não deixando, contudo, de
oferecer estímulo e ajuda ao próprio réu para se corrigir e
redimir.47
Claro está que, para bem conseguir todos estes fins, a
medida e a qualidade da pena hão-de ser atentamente ponderadas
e decididas, não se devendo chegar à medida extrema da
execução do réu senão em casos de absoluta necessidade, ou
seja, quando a defesa da sociedade não fosse possível de outro
modo. Mas, hoje, graças à organização cada vez mais adequada
da instituição penal, esses casos são já muito raros, se não
mesmo praticamente inexistentes.
Em todo o caso, permanece válido o princípio indicado pelo
novo Catecismo da Igreja Católica: «na medida em que outros
processos, que não a pena de morte e as operações militares,
bastarem para defender as vidas humanas contra o agressor e
para proteger a paz pública, tais processos não sangrentos
devem preferir-se, por serem proporcionados e mais conformes
com o fim em vista e a dignidade humana».48
57. Se se deve mostrar uma atenção assim tão grande por
qualquer vida, mesmo pela do réu e a do injusto agressor, o
mandamento «não matarás» tem valor absoluto quando se refere
à pessoa inocente. E mais ainda, quando se trata de um ser
frágil e inerme que encontra a sua defesa radical do arbítrio
e da prepotência alheia, unicamente na força absoluta do
mandamento de Deus.
De facto, a inviolabilidade absoluta da vida humana
inocente é uma verdade moral explicitamente ensinada na
Sagrada Escritura, constantemente mantida na Tradição da
Igreja e unanimemente proposta pelo seu Magistério. Tal
unanimidade é fruto evidente daquele «sentido sobrenatural da
fé» que, suscitado e apoiado pelo Espírito Santo, preserva do
erro o Povo de Deus, quando «manifesta consenso universal em
matéria de fé e costumes».49
Face ao progressivo enfraquecimento, nas consciências e na
sociedade, da percepção da absoluta e grave ilicitude moral da
eliminação directa de qualquer vida humana inocente, sobretudo
no seu início e no seu termo, o Magistério da Igreja
intensificou as suas intervenções em defesa da sacralidade e
inviolabilidade da vida humana. Ao Magistério pontifício,
particularmente insistente, sempre se uniu o Magistério
episcopal, com numerosos e amplos documentos doutrinais e
pastorais emanados quer pelas Conferências Episcopais, quer
pelos Bispos individualmente. Não faltou sequer, forte e
incisiva na sua brevidade, a intervenção do Concílio Vaticano
II.50
Portanto, com a autoridade que Cristo conferiu a Pedro e
aos seus Sucessores, em comunhão com os Bispos da Igreja
Católica, confirmo que a morte directa e voluntária de um ser
humano inocente é sempre gravemente imoral. Esta doutrina,
fundada naquela lei não-escrita que todo o homem, pela luz da
razão, encontra no próprio coração (cf. Rm 2, 14-15), é
confirmada pela Sagrada Escritura, transmitida pela Tradição
da Igreja e ensinada pelo Magistério ordinário e universal.51
A decisão deliberada de privar um ser humano inocente da
sua vida é sempre má do ponto de vista moral, e nunca pode ser
lícita nem como fim, nem como meio para um fim bom. É, de
facto, uma grave desobediência à lei moral, antes ao próprio
Deus, autor e garante desta; contradiz as virtudes
fundamentais da justiça e da caridade. «Nada e ninguém pode
autorizar que se dê a morte a um ser humano inocente seja ele
feto ou embrião, criança ou adulto, velho, doente incurável ou
agonizante. E também a ninguém é permitido requerer este gesto
homicida para si ou para outrem confiado à sua
responsabilidade, nem sequer consenti-lo explícita ou
implicitamente. Não há autoridade alguma que o possa
legitimamente impor ou permitir».52
No referente ao direito à vida, cada ser humano inocente é
absolutamente igual a todos os demais. Esta igualdade é a base
de todo o relacionamento social autêntico, o qual, para o ser
verdadeiramente, não pode deixar de se fundar sobre a verdade
e a justiça, reconhecendo e tutelando cada homem e cada mulher
como pessoa, e não como coisa de que se possa dispor. Diante
da norma moral que proíbe a eliminação directa de um ser
humano inocente, «não existem privilégios, nem excepções para
ninguém. Ser o dono do mundo ou o último "miserável" sobre a
face da terra, não faz diferença alguma: perante as exigências
morais, todos somos absolutamente iguais».53
«Vossos olhos contemplaram-me ainda em embrião» (Sal
139138, 16): o crime abominável do aborto
58. Dentre todos os crimes que o homem pode realizar contra
a vida, o aborto provocado apresenta características que o
tornam particularmente grave e abjurável. O Concílio Vaticano
II define-o, juntamente com o infanticídio, «crime abominável».54
Mas hoje, a percepção da sua gravidade vai-se obscurecendo
progressivamente em muitas consciências. A aceitação do aborto
na mentalidade, nos costumes e na própria lei, é sinal
eloquente de uma perigosíssima crise do sentido moral que se
torna cada vez mais incapaz de distinguir o bem do mal, mesmo
quando está em jogo o direito fundamental à vida. Diante de
tão grave situação, impõe-se mais que nunca a coragem de olhar
frontalmente a verdade e chamar as coisas pelo seu nome, sem
ceder a compromissos com o que nos é mais cómodo, nem à
tentação de auto-engano. A propósito disto, ressoa categórica
a censura do Profeta: «Ai dos que ao mal chamam bem, e ao
bem, mal, que têm as trevas por luz e a luz por trevas» (Is
5, 20). Precisamente no caso do aborto, verifica-se a difusão
de uma terminologia ambígua, como «interrupção da gravidez»,
que tende a esconder a verdadeira natureza dele e a atenuar a
sua gravidade na opinião pública. Talvez este fenómeno
linguístico seja já, em si mesmo, sintoma de um mal-estar das
consciências. Mas nenhuma palavra basta para alterar a
realidade das coisas: o aborto provocado é a morte deliberada
e directa, independentemente da forma como venha realizada, de
um ser humano na fase inicial da sua existência, que vai da
concepção ao nascimento.
A gravidade moral do aborto provocado aparece em toda a sua
verdade, quando se reconhece que se trata de um homicídio e,
particularmente, quando se consideram as circunstâncias
específicas que o qualificam. A pessoa eliminada é um ser
humano que começa a desabrochar para a vida, isto é, o que de
mais inocente, em absoluto, se possa imaginar: nunca poderia
ser considerado um agressor, menos ainda um injusto agressor!
É frágil, inerme, e numa medida tal que o deixa privado
inclusive daquela forma mínima de defesa constituída pela
força suplicante dos gemidos e do choro do recém-nascido. Está
totalmente entregue à protecção e aos cuidados daquela que o
traz no seio. E todavia, às vezes, é precisamente ela, a mãe,
quem decide e pede a sua eliminação, ou até a provoca.
É verdade que, muitas vezes, a opção de abortar reveste
para a mãe um carácter dramático e doloroso: a decisão de se
desfazer do fruto concebido não é tomada por razões puramente
egoístas ou de comodidade, mas porque se quereriam
salvaguardar alguns bens importantes como a própria saúde ou
um nível de vida digno para os outros membros da família. Às
vezes, temem-se para o nascituro condições de existência tais
que levam a pensar que seria melhor para ele não nascer. Mas
estas e outras razões semelhantes, por mais graves e
dramáticas que sejam, nunca podem justificar a supressão
deliberada de um ser humano inocente.
59. A decidirem a morte da criança ainda não nascida, a par
da mãe, aparecem, com frequência, outras pessoas. Antes de
mais, culpado pode ser o pai da criança, não apenas quando
claramente constringe a mulher ao aborto, mas também quando
favorece indirectamente tal decisão ao deixá-la sozinha com os
problemas de uma gravidez: 55 desse modo, a família fica
mortalmente ferida e profanada na sua natureza de comunidade
de amor e na sua vocação para ser «santuário da vida». Nem
se podem calar as solicitações que, às vezes, provêm do âmbito
familiar mais alargado e dos amigos. A mulher, não raro, é
sujeita a pressões tão fortes que se sente psicologicamente
constrangida a ceder ao aborto: não há dúvida que, neste caso,
a responsabilidade moral pesa particularmente sobre aqueles
que directa ou indirectamente a forçaram a abortar.
Responsáveis são também os médicos e restantes profissionais
da saúde, sempre que põem ao serviço da morte a competência
adquirida para promover a vida.
Mas a responsabilidade cai ainda sobre os legisladores que
promoveram e aprovaram leis abortistas, e sobre os
administradores das estruturas clínicas onde se praticam os
abortos, na medida em que a sua execução deles dependa. Uma
responsabilidade geral, mas não menos grave, cabe a todos
aqueles que favoreceram a difusão de uma mentalidade de
permissividade sexual e de menosprezo pela maternidade, como
também àqueles que deveriam ter assegurado - e não o fizeram -
válidas políticas familiares e sociais de apoio às famílias,
especialmente às mais numerosas ou com particulares
dificuldades económicas e educativas. Não se pode subestimar,
enfim, a vasta rede de cumplicidades, nela incluindo
instituições internacionais, fundações e associações, que se
batem sistematicamente pela legalização e difusão do aborto no
mundo. Neste sentido, o aborto ultrapassa a responsabilidade
dos indivíduos e o dano que lhes é causado, para assumir uma
dimensão fortemente social: é uma ferida gravíssima infligida
à sociedade e à sua cultura por aqueles que deveriam ser os
seus construtores e defensores. Como escrevi na Carta às
Famílias, «encontramo-nos defronte a uma enorme ameaça contra
a vida, não apenas dos simples indivíduos, mas também de toda
a civilização».56 Achamo-nos perante algo que bem se pode
definir uma «estrutura de pecado» contra a vida humana ainda
não nascida.
60. Alguns tentam justificar o aborto, defendendo que o
fruto da concepção, pelo menos até um certo número de dias,
não pode ainda ser considerado uma vida humana pessoal. Na
realidade, porém, «a partir do momento em que o óvulo é
fecundado, inaugura-se uma nova vida que não é a do pai nem a
da mãe, mas sim a de um novo ser humano que se desenvolve por
conta própria. Nunca mais se tornaria humana, se não o fosse
já desde então. A esta evidência de sempre (...) a ciência
genética moderna fornece preciosas confirmações. Demonstrou
que, desde o primeiro instante, se encontra fixado o programa
daquilo que será este ser vivo: uma pessoa, esta pessoa
individual, com as suas notas características já bem
determinadas. Desde a fecundação, tem início a aventura de uma
vida humana, cujas grandes capacidades, já presentes cada uma
delas, apenas exigem tempo para se organizar e encontrar
prontas a agir».57 Não podendo a presença de uma alma
espiritual ser assinalada através da observação de qualquer
dado experimental, são as próprias conclusões da ciência sobre
o embrião humano a fornecer «uma indicação valiosa para
discernir racionalmente uma presença pessoal já a partir desta
primeira aparição de uma vida humana: como poderia um
indivíduo humano não ser uma pessoa humana?».58
Aliás, o valor em jogo é tal que, sob o perfil moral,
bastaria a simples probabilidade de encontrar-se em presença
de uma pessoa para se justificar a mais categórica proibição
de qualquer intervenção tendente a eliminar o embrião humano.
Por isso mesmo, independentemente dos debates científicos e
mesmo das afirmações filosóficas com os quais o Magistério não
se empenhou expressamente, a Igreja sempre ensinou - e ensina
- que tem de ser garantido ao fruto da geração humana, desde o
primeiro instante da sua existência, o respeito incondicional
que é moralmente devido ao ser humano na sua totalidade e
unidade corporal e espiritual: «O ser humano deve ser
respeitado e tratado como uma pessoa desde a sua concepção e,
por isso, desde esse mesmo momento, devem-lhe ser reconhecidos
os direitos da pessoa, entre os quais e primeiro de todos, o
direito inviolável de cada ser humano inocente à vida».59
61. Os textos da Sagrada Escritura, que nunca falam do
aborto voluntário e, por conseguinte, também não apresentam
condenações directas e específicas do mesmo, mostram pelo ser
humano no seio materno uma consideração tal que exige, como
lógica consequência, que se estenda também a ele o mandamento
de Deus: «não matarás».
A vida humana é sagrada e inviolável em cada momento da sua
existência, inclusive na fase inicial que precede o
nascimento. Desde o seio materno, o homem pertence a Deus que
tudo perscruta e conhece, que o forma e plasma com suas mãos,
que o vê quando ainda é um pequeno embrião informe, e que nele
entrevê o adulto de amanhã, cujos dias estão todos contados e
cuja vocação está já escrita no «livro da vida» (cf. Sal
139138, 1.13-16). Quando está ainda no seio materno - como
testemunham numerosos textos bíblicos 60 - já o homem é
objecto muito pessoal da amorosa e paterna providência de
Deus.
A Tradição cristã - como justamente se realça na Declaração
sobre esta matéria, emanada pela Congregação para a Doutrina
da Fé 61 - é clara e unânime, desde as suas origens até aos
nossos dias, em classificar o aborto como desordem moral
particularmente grave. A comunidade cristã, desde o seu
primeiro confronto com o mundo greco-romano onde se praticava
amplamente o aborto e o infanticídio, opôs-se radicalmente,
com a sua doutrina e a sua praxe, aos costumes generalizados
naquela sociedade, como o demonstra a já citada Didaké.62
Entre os escritores eclesiásticos da área linguística grega, Atenágoras recorda que os cristãos consideram homicidas as
mulheres que recorrem a produtos abortivos, porque os filhos,
apesar de estarem ainda no seio da mãe, «são já objecto dos
cuidados da Providência divina».63 Entre os latinos, Tertuliano afirma:
«É um homicídio premeditado impedir de
nascer; pouco importa que se suprima a alma já nascida ou que
se faça desaparecer durante o tempo até ao nascer. É já um
homem aquele que o será».64
Ao longo da sua história já bimilenária, esta mesma
doutrina foi constantemente ensinada pelos Padres da Igreja,
pelos seus Pastores e Doutores. Mesmo as discussões de
carácter científico e filosófico acerca do momento preciso da
infusão da alma espiritual não incluíram nunca a mínima
hesitação quanto à condenação moral do aborto.
62. O Magistério pontifício mais recente reafirmou, com
grande vigor, esta doutrina comum. Em particular Pio XI, na
encíclicaCasti connubii rejeitou as alegadas justificações do
aborto; 65 Pio XII excluiu todo o aborto directo, isto é,
qualquer acto que vise directamente destruir a vida humana
ainda não nascida, «quer tal destruição seja pretendida como
fim ou apenas como meio para o fim»; 66 João XXIII corroborou
que a vida humana é sagrada, porque «desde o seu despontar
empenha directamente a acção criadora de Deus».67 O Concílio
Vaticano II, como já foi recordado, condenou o aborto com
grande severidade: «A vida deve, pois, ser salvaguardada com
extrema solicitude, desde o primeiro momento da concepção; o
aborto e o infanticídio são crimes abomináveis».68
A disciplina canónica da Igreja, desde os primeiros
séculos, puniu com sanções penais aqueles que se manchavam com
a culpa do aborto, e tal praxe, com penas mais ou menos
graves, foi confirmada nos sucessivos períodos históricos. O
Código de Direito Canónico de 1917, para o aborto, prescrevia
a pena de excomunhão.69 Também a legislação canónica, há pouco
renovada, continua nesta linha quando determina que «quem
procurar o aborto, seguindo-se o efeito, incorre em excomunhão
latae sententiae»,70 isto é, automática. A excomunhão recai
sobre todos aqueles que cometem este crime com conhecimento da
pena, incluindo também cúmplices sem cujo contributo o aborto
não se teria realizado: 71 com uma sanção assim reiterada, a
Igreja aponta este crime como um dos mais graves e perigosos,
incitando, deste modo, quem o comete a ingressar
diligentemente pela estrada da conversão. Na Igreja, de facto,
a finalidade da pena de excomunhão é tornar plenamente
consciente da gravidade de um determinado pecado e,
consequentemente, favorecer a adequada conversão e penitência.
Frente a semelhante unanimidade na tradição doutrinal e
disciplinar da Igreja, Paulo VI pôde declarar que tal
ensinamento não conheceu mudança e é imutável.72 Portanto, com
a autoridade que Cristo conferiu a Pedro e aos seus
Sucessores, em comunhão com os Bispos - que de várias e
repetidas formas condenaram o aborto e que, na consulta
referida anteriormente, apesar de dispersos pelo mundo,
afirmaram unânime consenso sobre esta doutrina - declaro que o
aborto directo, isto é, querido como fim ou como meio,
constitui sempre uma desordem moral grave, enquanto morte
deliberada de um ser humano inocente. Tal doutrina está
fundada sobre a lei natural e sobre a Palavra de Deus escrita,
é transmitida pela Tradição da Igreja e ensinada pelo
Magistério ordinário e universal.73
Nenhuma circunstância, nenhum fim, nenhuma lei no mundo
poderá jamais tornar lícito um acto que é intrinsecamente
ilícito, porque contrário à Lei de Deus, inscrita no coração
de cada homem, reconhecível pela própria razão, e proclamada
pela Igreja.
63. A avaliação moral do aborto deve aplicar-se também às
recentes formas de intervenção sobre embriões humanos, que,
não obstante visarem objectivos em si legítimos, implicam
inevitavelmente a sua morte. É o caso da experimentação sobre
embriões, em crescente expansão no campo da pesquisa biomédica
e legalmente admitida em alguns países. Se «devem ser
consideradas lícitas as intervenções no embrião humano, sob a
condição de que respeitem a vida e a integridade do embrião,
não comportem para ele riscos desproporcionados, e sejam
orientadas para a sua cura, para a melhoria das suas condições
de saúde ou para a sua sobrevivência individual»,74 impõe-se,
pelo contrário, afirmar que o uso de embriões ou de fetos
humanos como objecto de experimentação constitui um crime
contra a sua dignidade de seres humanos, que têm direito ao
mesmo respeito devido à criança já nascida e a qualquer
pessoa.75
A mesma condenação moral vale para o sistema que desfruta
os embriões e os fetos humanos ainda vivos - às vezes «produzidos» propositadamente para este fim através da
fecundação in vitro - seja como «material biológico» à
disposição, seja como fornecedores de órgãos ou de tecidos
para transplante no tratamento de algumas doenças. Na
realidade, o assassínio de criaturas humanas inocentes, ainda
que com vantagem para outras, constitui um acto absolutamente
inaceitável.
Especial atenção há-de ser reservada à avaliação moral das
técnicas de diagnose pré-natal, que permitem individuar
precocemente eventuais anomalias do nascituro. Com efeito,
devido à complexidade dessas técnicas, a avaliação em causa
deve fazer-se mais cuidadosa e articuladamente. Quando estão
isentas de riscos desproporcionados para a criança e para a
mãe, e se destinam a tornar possível uma terapia precoce ou
ainda a favorecer uma serena e consciente aceitação do
nascituro, estas técnicas são moralmente lícitas. Mas, dado
que as possibilidade de cura antes do nascimento são hoje
ainda reduzidas, acontece bastantes vezes que essas técnicas
são postas ao serviço de uma mentalidade eugenista que aceita
o aborto selectivo, para impedir o nascimento de crianças
afectadas por tipos vários de anomalias. Semelhante
mentalidade é ignominiosa e absolutamente reprovável, porque
pretende medir o valor de uma vida humana apenas segundo
parâmetros de «normalidade» e de bem-estar físico, abrindo
assim a estrada à legitimação do infanticídio e da eutanásia.
Na realidade, porém, a própria coragem e serenidade com que
muitos irmãos nossos, afectados por graves deficiências,
conduzem a sua existência quando são aceites e amados por nós,
constituem um testemunho particularmente eficaz dos valores
autênticos que qualificam a vida e a tornam, mesmo em
condições difíceis, preciosa para o próprio e para os outros.
A Igreja sente-se solidária com os cônjuges que, com grande
ansiedade e sofrimento, aceitam acolher os seus filhos
gravemente deficientes, tal como se sente grata a todas as
famílias que, pela adopção, acolhem os que são abandonados
pelos seus pais por causa de limitações ou doenças.
«Só Eu é que dou a vida e dou a morte» (Dt 32, 39): o
drama da eutanásia
64. No outro topo da existência, o homem encontra-se diante
do mistério da morte. Hoje, na sequência dos progressos da
medicina e num contexto cultural frequentemente fechado à
transcendência, a experiência do morrer apresenta-se com
algumas características novas. Com efeito, quando prevalece a
tendência para apreciar a vida só na medida em que proporciona
prazer e bem-estar, o sofrimento aparece como um contratempo
insuportável, de que é preciso libertar-se a todo o custo. A
morte, considerada como «absurda» quando interrompe
inesperadamente uma vida ainda aberta para um futuro rico de
possíveis experiências interessantes, torna-se, pelo
contrário, uma «libertação reivindicada», quando a
existência é tida como já privada de sentido porque mergulhada
na dor e inexoravelmente votada a um sofrimento sempre mais
intenso.
Além disso, recusando ou esquecendo o seu relacionamento
fundamental com Deus, o homem pensa que é critério e norma de
si mesmo e julga que tem inclusive o direito de pedir à
sociedade que lhe garanta possibilidades e modos de decidir da
própria vida com plena e total autonomia. Em particular, o
homem que vive nos países desenvolvidos é que assim se
comporta: a tal se sente impelido, entre outras coisas, pelos
contínuos progressos da medicina e das suas técnicas cada vez
mais avançadas. Por meio de sistemas e aparelhagens
extremamente sofisticadas, hoje a ciência e a prática médica
são capazes de resolver casos anteriormente insolúveis e de
aliviar ou eliminar a dor, como também de sustentar e
prolongar a vida até em situações de debilidade extrema, de
reanimar artificialmente pessoas cujas funções biológicas
elementares sofreram danos imprevistos, de intervir para
tornar disponíveis órgãos para transplante.
Num tal contexto, torna-se cada vez mais forte a tentação
daeutanásia, isto é, de apoderar-se da morte, provocando-a
antes do tempo e, deste modo, pondo fim «docemente» à vida
própria ou alheia. Na realidade, aquilo que poderia parecer
lógico e humano, quando visto em profundidade, apresenta-se
absurdo e desumano. Estamos aqui perante um dos sintomas mais
alarmantes da «cultura de morte» que avança sobretudo nas
sociedades do bem-estar, caracterizadas por uma mentalidade eficientista que faz aparecer demasiadamente gravoso e
insuportável o número crescente das pessoas idosas e
debilitadas. Com muita frequência, estas acabam por ser
isoladas da família e da sociedade, organizada quase
exclusivamente sobre a base de critérios de eficiência
produtiva, segundo os quais uma vida irremediavelmente incapaz
não tem mais qualquer valor.
65. Para um correcto juízo moral da eutanásia, é preciso,
antes de mais, defini-la claramente. Por eutanásia, em sentido
verdadeiro e próprio, deve-se entender uma acção ou uma
omissão que, por sua natureza e nas intenções, provoca a morte
com o objectivo de eliminar o sofrimento. «A eutanásia
situa-se, portanto, ao nível das intenções e ao nível dos
métodos empregues».76
Distinta da eutanásia é a decisão de renunciar ao chamado «excesso terapêutico», ou seja, a certas intervenções médicas
já inadequadas à situação real do doente, porque não
proporcionadas aos resultados que se poderiam esperar ou ainda
porque demasiado gravosas para ele e para a sua família.
Nestas situações, quando a morte se anuncia iminente e
inevitável, pode-se em consciência «renunciar a tratamentos
que dariam somente um prolongamento precário e penoso da vida,
sem, contudo, interromper os cuidados normais devidos ao
doente em casos semelhantes».77 Há, sem dúvida, a obrigação
moral de se tratar e procurar curar-se, mas essa obrigação
há-de medir-se segundo as situações concretas, isto é,
impõe-se avaliar se os meios terapêuticos à disposição são
objectivamente proporcionados às perspectivas de melhoramento.
A renúncia a meios extraordinários ou desproporcionados não
equivale ao suicídio ou à eutanásia; exprime, antes, a
aceitação da condição humana defronte à morte.78
Na medicina actual, têm adquirido particular importância os
denominados «cuidados paliativos», destinados a tornar o
sofrimento mais suportável na fase aguda da doença e assegurar
ao mesmo tempo ao paciente um adequado acompanhamento humano.
Neste contexto, entre outros problemas, levanta-se o da
licitude do recurso aos diversos tipos de analgésicos e
sedativos para aliviar o doente da dor, quando isso comporta o
risco de lhe abreviar a vida. Ora, se pode realmente ser
considerado digno de louvor quem voluntariamente aceita sofrer
renunciando aos meios lenitivos da dor, para conservar a plena
lucidez e, se crente, participar, de maneira consciente, na
Paixão do Senhor, tal comportamento «heróico» não pode ser
considerado obrigatório para todos. Já Pio XII afirmara que é
lícito suprimir a dor por meio de narcóticos, mesmo com a
consequência de limitar a consciência e abreviar a vida, «se
não existem outros meios e se, naquelas circunstâncias, isso
em nada impede o cumprimento de outros deveres religiosos e
morais».79 É que, neste caso, a morte não é querida ou
procurada, embora por motivos razoáveis se corra o risco dela: pretende- -se simplesmente aliviar a dor de maneira eficaz,
recorrendo aos analgésicos postos à disposição pela medicina.
Contudo, «não se deve privar o moribundo da consciência de si
mesmo, sem motivo grave»: 80 quando se aproxima a morte, as
pessoas devem estar em condições de poder satisfazer as suas
obrigações morais e familiares, e devem sobretudo poder-se
preparar com plena consciência para o encontro definitivo com
Deus.
Feitas estas distinções, em conformidade com o Magistério
dos meus Predecessores 81 e em comunhão com os Bispos da
Igreja Católica, confirmo que a eutanásia é uma violação grave
da Lei de Deus, enquanto morte deliberada moralmente
inaceitável de uma pessoa humana. Tal doutrina está fundada
sobre a lei natural e sobre a Palavra de Deus escrita, é
transmitida pela Tradição da Igreja e ensinada pelo Magistério
ordinário e universal.82
A eutanásia comporta, segundo as circunstâncias, a malícia
própria do suicídio ou do homicídio.
66. Ora, o suicídio é sempre moralmente inaceitável, tal
como o homicídio. A tradição da Igreja sempre o recusou, como
opção gravemente má.83 Embora certos condicionalismos
psicológicos, culturais e sociais possam levar a realizar um
gesto que tão radicalmente contradiz a inclinação natural de
cada um à vida, atenuando ou anulando a responsabilidade
subjectiva, o suicídio, sob o perfil objectivo, é um acto
gravemente imoral, porque comporta a recusa do amor por si
mesmo e a renúncia aos deveres de justiça e caridade para com
o próximo, com as várias comunidades de que se faz parte, e
com a sociedade no seu conjunto.84 No seu núcleo mais
profundo, o suicídio constitui uma rejeição da soberania
absoluta de Deus sobre a vida e sobre a morte, deste modo
proclamada na oração do antigo Sábio de Israel: «Vós, Senhor,
tendes o poder da vida e da morte, e conduzis os fortes à
porta do Hades e de lá os tirais» (Sab 16, 13; cf. Tob 13,
2).
Compartilhar a intenção suicida de outrem e ajudar a
realizá-la mediante o chamado «suicídio assistido»,
significa fazer-se colaborador e, por vezes, autor em primeira
pessoa de uma injustiça que nunca pode ser justificada, nem
sequer quando requerida. «Nunca é lícito - escreve com
admirável actualidade Santo Agostinho - matar o outro: ainda
que ele o quisesse, mesmo se ele o pedisse, porque, suspenso
entre a vida e a morte, suplica ser ajudado a libertar a alma
que luta contra os laços do corpo e deseja desprender-se; nem
é lícito sequer quando o doente já não estivesse em condições
de sobreviver».85 Mesmo quando não é motivada pela recusa
egoísta de cuidar da vida de quem sofre, a eutanásia deve
designar-se uma falsa compaixão, antes uma preocupante «perversão» da mesma: a verdadeira
«compaixão», de facto,
torna solidário com a dor alheia, não suprime aquele de quem
não se pode suportar o sofrimento. E mais perverso ainda se
manifesta o gesto da eutanásia, quando é realizado por aqueles
que - como os parentes - deveriam assistir com paciência e
amor o seu familiar, ou por quantos - como os médicos -, pela
sua específica profissão, deveriam tratar o doente, inclusive
nas condições terminais mais penosas.
A decisão da eutanásia torna-se mais grave, quando se
configura como um homicídio, que os outros praticam sobre uma
pessoa que não a pediu de modo algum nem deu nunca qualquer
consentimento para a mesma. Atinge-se, enfim, o cúmulo do
arbítrio e da injustiça, quando alguns, médicos ou
legisladores, se arrogam o poder de decidir quem deve viver e
quem deve morrer. Aparece assim reproposta a tentação do Éden:
tornar-se como Deus «conhecendo o bem e o mal» (cf. Gn 3,
5). Mas, Deus é o único que tem o poder de fazer morrer e de
fazer viver: «Só Eu é que dou a vida e dou a morte» (Dt 32,
39; cf. 2 Re 5, 7; 1 Sam 2, 6). Ele exerce o seu poder sempre
e apenas segundo um desígnio de sabedoria e amor. Quando o
homem usurpa tal poder, subjugado por uma lógica insensata e
egoísta, usa-o inevitavelmente para a injustiça e a morte.
Assim, a vida do mais fraco é abandonada às mãos do mais
forte; na sociedade, perde-se o sentido da justiça e fica
minada pela raiz a confiança mútua, fundamento de qualquer
relação autêntica entre as pessoas.
67. Bem diverso, ao contrário, é o caminho do amor e da
verdadeira compaixão, que nos é imposto pela nossa comum
humanidade e que a fé em Cristo Redentor, morto e
ressuscitado, ilumina com novas razões. A súplica que brota do
coração do homem no confronto supremo com o sofrimento e a
morte, especialmente quando é tentado a fechar-se no desespero
e como que a aniquilar-se nele, é sobretudo uma petição de
companhia, solidariedade e apoio na prova. É um pedido de
ajuda para continuar a esperar, quando falham todas as
esperanças humanas. Como nos recordou o Concílio Vaticano II,
«é em face da morte que o enigma da condição humana mais se
adensa» para o homem; e, todavia, «a intuição do próprio
coração fá-lo acertar, quando o leva a aborrecer e a recusar a
ruína total e o desaparecimento definitivo da sua pessoa. O
germe de eternidade que nele existe, irredutível à pura
matéria, insurge-se contra a morte».86
Esta repugnância natural da morte e este germe de esperança
na imortalidade são iluminadas e levadas à plenitude pela fé
cristã, que promete e oferece a participação na vitória de
Cristo Ressuscitado: é a vitória d'Aquele que, pela sua morte
redentora, libertou o homem da morte, «salário do pecado» (Rm
6, 23), e lhe deu o Espírito, penhor de ressurreição e de vida
(cf. Rm 8, 11). A certeza da imortalidade futura e a esperança
na ressurreição prometida projectam uma luz nova sobre o
mistério do sofrimento e da morte e infundem no crente uma
força extraordinária para se abandonar ao desígnio de Deus.
O apóstolo Paulo exprimiu esta novidade em termos de
pertença total ao Senhor que abraça qualquer condição humana:
«Nenhum de nós vive para si mesmo, e nenhum de nós morre para
si mesmo. Se vivemos, para o Senhor vivemos; se morremos, para
o Senhor morremos. Quer vivamos, quer morramos, pertencemos ao
Senhor» (Rm 14, 7-8). Morrer para o Senhor significa viver a
própria morte como acto supremo de obediência ao Pai (cf. Fil
2, 8), aceitando encontrá-la na «hora» querida e escolhida
por Ele (cf. Jo 13, 1), o único que pode dizer quando está
cumprido o caminho terreno. Viver para o Senhor significa
também reconhecer que o sofrimento, embora permaneça em si
mesmo um mal e uma prova, sempre se pode tornar fonte de bem.
E torna-se tal se é vivido por amor e com amor, na
participação, por dom gratuito de Deus e por livre opção
pessoal, no próprio sofrimento de Cristo crucificado. Deste
modo, quem vive o seu sofrimento no Senhor fica mais
plenamente configurado com Ele (cf. Fil 3, 10; 1 Ped 2, 21) e
intimamente associado à sua obra redentora a favor da Igreja e
da humanidade.87 É esta experiência do Apóstolo, que toda a pessoa
que sofre é chamada a viver: «Alegro-me nos sofrimentos
suportados por vossa causa e completo na minha carne o que
falta aos sofrimentos de Cristo pelo seu Corpo, que é a Igreja» (Col 1, 24).
«Importa mais obedecer a Deus do que aos homens» (Act 5,
29): a lei civil e a lei moral
68. Uma das características dos actuais atentados à vida
humana - como já se disse várias vezes - é a tendência para
exigir a sua legitimação jurídica, como se fossem direitos que
o Estado deveria, pelo menos em certas condições, reconhecer
aos cidadãos e, consequentemente, a pretensão da execução dos
mesmos com a assistência segura e gratuita dos médicos e
restantes profissionais da saúde.
Considera-se, não raro, que a vida daquele que ainda não
nasceu ou está gravemente debilitado, seria um bem
simplesmente relativo: teria de ser confrontada e ponderada
com outros bens, segundo uma lógica proporcionalista ou de
puro cálculo. Igualmente pensa-se que só quem se encontra na
situação concreta e nela está pessoalmente implicado é que
poderia realizar uma justa ponderação dos bens em jogo: por
conseguinte, unicamente essa pessoa poderia decidir sobre a
moralidade da sua escolha. Por isso, e no interesse da
convivência civil e da harmonia social, o Estado deveria
respeitar essa escolha, chegando mesmo a admitir o aborto e a
eutanásia.
Outras vezes, julga-se que a lei civil não poderia exigir
que todos os cidadãos vivessem segundo um grau de moralidade
mais elevado do que aquele que eles mesmos reconhecem e
condividem. Por isso, a lei deveria exprimir sempre a opinião
e a vontade da maioria dos cidadãos e reconhecer-lhes também,
pelo menos em certos casos extremos, o direito ao aborto e à
eutanásia. Nesses casos, aliás, a proibição e a punição dos
referidos actos conduziria inevitavelmente - assim o dizem - a
um aumento de práticas clandestinas: e estas escapariam ao
necessário controlo social e seriam realizadas sem a devida
segurança médica. E interrogam-se, além disso, se o apoiar uma
lei que não é concretamente aplicável não significaria, em
última análise, minar também a autoridade de qualquer outra
lei.
Nas opiniões mais radicais, chega-se mesmo a defender que,
numa sociedade moderna e pluralista, deveria ser reconhecida a
cada pessoa total autonomia para dispor da própria vida e da
vida de quem ainda não nasceu: não seria competência da lei
fazer a escolha entre as diversas opiniões morais, e menos
ainda poderia ela pretender impor uma opinião particular em
detrimento das outras.
69. Certo é que, na cultura democrática do nosso tempo, se
acha amplamente generalizada a opinião, segundo a qual o
ordenamento jurídico de uma sociedade haveria de limitar-se a
registar e acolher as convicções da maioria e,
consequentemente, dever-se-ia construir apenas sobre aquilo
que a própria maioria reconhece e vive como moral. Se, depois,
se chega a pensar que uma verdade comum e objectiva seria
realmente inacessível, então o respeito pela liberdade dos
cidadãos - que, num regime democrático, são considerados os
verdadeiros soberanos - exigiria que, a nível legislativo, se
reconhecesse a autonomia da consciência de cada um e, por
conseguinte, ao estabelecer aquelas normas que são
absolutamente necessárias à convivência social, se adequassem
exclusivamente à vontade da maioria, fosse ela qual fosse.
Desta maneira, todo o político deveria separar claramente, no
seu agir, o âmbito da consciência privada e o do comportamento
público.
Em consequência disto, registam-se duas tendências que na
aparência são diametralmente opostas. Por um lado, os
indivíduos reivindicam para si a mais completa autonomia moral
de decisão, e pedem que o Estado não assuma nem imponha
qualquer concepção ética, mas se limite a garantir o espaço
mais amplo possível à liberdade de cada um, tendo como único
limite externo não lesar o espaço de autonomia a que cada um
dos outros cidadãos também tem direito. Mas por outro lado,
pensa-se que, no desempenho das funções públicas e
profissionais, o respeito pela liberdade alheia de escolha
obrigaria cada qual a prescindir das próprias convicções para
se colocar ao serviço de qualquer petição dos cidadãos, que as
leis reconhecem e tutelam, aceitando como único critério moral
no exercício das próprias funções aquilo que está estabelecido
pelas mesmas leis. Deste modo, a responsabilidade da pessoa é
delegada na lei civil com a abdicação da própria consciência
moral, pelo menos no âmbito da acção pública.
70. Raiz comum de todas estas tendências é o relativismo
ético, que caracteriza grande parte da cultura contemporânea.
Não falta quem pense que tal relativismo seja uma condição da
democracia, visto que só ele garantiria tolerância, respeito
recíproco entre as pessoas e adesão às decisões da maioria,
enquanto as normas morais, consideradas objectivas e
vinculantes, conduziriam ao autoritarismo e à intolerância.
Mas é exactamente a problemática conexa com o respeito da
vida que mostra os equívocos e contradições, com terríveis
resultados práticos, que se escondem nesta posição.
É verdade que a história regista casos de crimes cometidos
em nome da «verdade». Mas crimes não menos graves e negações
radicais da liberdade foram também cometidos e cometem-se em
nome do «relativismo ético». Quando uma maioria parlamentar
ou social decreta a legitimidade da eliminação, mesmo sob
certas condições, da vida humana ainda não nascida, porventura
não assume uma decisão «tirânica» contra o ser humano mais
débil e indefeso? Justamente reage a consciência universal
diante dos crimes contra a humanidade, de que o nosso século
viveu tão tristes experiências. Porventura deixariam de ser
crimes, se, em vez de terem sido cometidos por tiranos sem
escrúpulos, fossem legitimados por consenso popular?
Não se pode mitificar a democracia até fazer dela o
substituto da moralidade ou a panaceia da imoralidade.
Fundamentalmente, é um «ordenamento» e, como tal, um
instrumento, não um fim. O seu carácter «moral» não é
automático, mas depende da conformidade com a lei moral, à
qual se deve submeter como qualquer outro comportamento
humano: por outras palavras, depende da moralidade dos fins
que persegue e dos meios que usa. Regista-se hoje um consenso
quase universal sobre o valor da democracia, o que há-de ser
considerado um positivo «sinal dos tempos», como o
Magistério da Igreja já várias vezes assinalou.88 Mas, o valor
da democracia vive ou morre nos valores que ela encarna e
promove: fundamentais e imprescindíveis são certamente a
dignidade de toda a pessoa humana, o respeito dos seus
direitos intangíveis e inalienáveis, e bem assim a assunção do
«bem comum» como fim e critério regulador da vida política.
Na base destes valores, não podem estar «maiorias» de
opinião provisórias e mutáveis, mas só o reconhecimento de uma
lei moral objectiva que, enquanto «lei natural» inscrita no
coração do homem, seja ponto normativo de referência para a
própria lei civil. Quando, por um trágico obscurecimento da
consciência colectiva, o cepticismo chegasse a pôr em dúvida
mesmo os princípios fundamentais da lei moral, então o próprio
ordenamento democrático seria abalado nos seus fundamentos,
ficando reduzido a puro mecanismo de regulação empírica dos
diversos e contrapostos interesses.89
Alguém poderia pensar que, na falta de melhor, já esta
função reguladora fosse de apreciar em vista da paz social.
Mesmo reconhecendo qualquer ponto de verdade em tal avaliação,
é difícil não ver que, sem um ancoradouro moral objectivo, a
democracia não pode assegurar uma paz estável, até porque é
ilusória a paz não fundada sobre os valores da dignidade de
cada homem e da solidariedade entre todos os homens. Nos
próprios regimes de democracia representativa, de facto, a
regulação dos interesses é frequentemente feita a favor dos
mais fortes, sendo estes os mais competentes para manobrar não
apenas as rédeas do poder, mas também a formação dos
consensos. Em tal situação, facilmente a democracia se torna
uma palavra vazia.
71. Para bem do futuro da sociedade e do progresso de uma
sã democracia, urge, pois, redescobrir a existência de valores
humanos e morais essenciais e congénitos, que derivam da
própria verdade do ser humano, e exprimem e tutelam a
dignidade da pessoa: valores que nenhum indivíduo, nenhuma
maioria e nenhum Estado poderá jamais criar, modificar ou
destruir, mas apenas os deverá reconhecer, respeitar e
promover.
Importa retomar, neste sentido, os elementos fundamentais
da visão das relações entre lei civil e lei moral, tal como os
propõe a Igreja, mas que fazem parte também do património das
grandes tradições jurídicas da humanidade.
Certamente, a função da lei civil é diversa e de âmbito
mais limitado que a da lei moral. De facto, «em nenhum âmbito
da vida, pode a lei civil substituir-se à consciência, nem
pode ditar normas naquilo que ultrapassa a sua competência»,90 que é assegurar o bem comum das pessoas, mediante o
reconhecimento e defesa dos seus direitos fundamentais, a
promoção da paz e da moralidade pública.91 Com efeito, a
função da lei civil consiste em garantir uma convivência
social na ordem e justiça verdadeira, para que todos «tenhamos vida tranquila e sossegada, com toda a piedade e
honestidade» (1 Tm 2, 2). Por isso mesmo, a lei civil deve
assegurar a todos os membros da sociedade o respeito de alguns
direitos fundamentais, que pertencem por natureza à pessoa e
que qualquer lei positiva tem de reconhecer e garantir.
Primeiro e fundamental entre eles é o inviolável direito à
vida de todo o ser humano inocente. Se a autoridade pública
pode, às vezes, renunciar a reprimir algo que, se proibido,
provocaria um dano maior,92 ela não poderá nunca aceitar como
direito dos indivíduos - ainda que estes sejam a maioria dos
membros da sociedade -, a ofensa infligida a outras pessoas
através do menosprezo de um direito tão fundamental como o da
vida. A tolerância legal do aborto ou da eutanásia não pode,
de modo algum, fazer apelo ao respeito pela consciência dos
outros, precisamente porque a sociedade tem o direito e o
dever de se defender contra os abusos que se possam verificar
em nome da consciência e com o pretexto da liberdade.93
A este propósito, João XXIII recordara na Encíclica Pacem
in terris: «Hoje em dia crê-se que o bem comum consiste
sobretudo no respeito dos direitos e deveres da pessoa.
Oriente-se, pois, o empenho dos poderes públicos sobretudo no
sentido que esses direitos sejam reconhecidos, respeitados,
harmonizados, tutelados e promovidos, tornando-se assim mais
fácil o cumprimento dos respectivos deveres. "A função
primordial de qualquer poder público é defender os direitos
invioláveis da pessoa e tornar mais viável o cumprimento dos
seus deveres". Por isso mesmo, se a autoridade não reconhecer
os direitos da pessoa, ou os violar, não só perde ela a sua
razão de ser como também as suas disposições estão privadas de
qualquer valor jurídico».94
72. Também está em continuidade com toda a Tradição da
Igreja, a doutrina da necessidade da lei civil se conformar
com a lei moral, como se vê na citada encíclica de João XXIII:
«A autoridade é exigência da ordem moral e promana de Deus.
Por isso, se os governantes legislarem ou prescreverem algo
contra essa ordem e, portanto, contra a vontade de Deus, essas
leis e essas prescrições não podem obrigar a consciência dos
cidadãos. (...) Neste caso, a própria autoridade deixa de
existir, degenerando em abuso do poder».95 O mesmo
ensinamento aparece claramente em S. Tomás de Aquino, que
escreve: «A lei humana tem valor de lei enquanto está de
acordo com a recta razão: derivando, portanto, da lei eterna.
Se, porém, contradiz a razão, chama-se lei iníqua e, como tal,
não tem valor, mas é um acto de violência».96 E ainda:
«Toda
a lei constituída pelos homens tem força de lei só na medida
em que deriva da lei natural. Se, ao contrário, em alguma
coisa está em contraste com a lei natural, então não é lei mas
sim corrupção da lei».97
Ora, a primeira e mais imediata aplicação desta doutrina
diz respeito à lei humana que menospreza o direito fundamental
e primordial à vida, direito próprio de cada homem. Assim, as
leis que legitimam a eliminação directa de seres humanos
inocentes, por meio do aborto e da eutanásia, estão em
contradição total e insanável com o direito inviolável à vida,
próprio de todos os homens, e negam a igualdade de todos
perante a lei. Poder-se-ia objectar que é diverso o caso da
eutanásia, quando pedida em plena consciência pelo sujeito
interessado. Mas um Estado que legitimasse tal pedido,
autorizando a sua realização, estaria a legalizar um caso de
suicídio-homicídio, contra os princípios fundamentais da não-
-disponibilidade da vida e da tutela de cada vida inocente.
Deste modo, favorece-se a diminuição do respeito pela vida e
abre-se a estrada a comportamentos demolidores da confiança
nas relações sociais.
As leis que autorizam e favorecem o aborto e a eutanásia
colocam-se, pois, radicalmente não só contra o bem do
indivíduo, mas também contra o bem comum e, por conseguinte,
carecem totalmente de autêntica validade jurídica. De facto, o
menosprezo do direito à vida, exactamente porque leva a
eliminar a pessoa, ao serviço da qual a sociedade tem a sua
razão de existir, é aquilo que se contrapõe mais frontal e
irreparavelmente à possibilidade de realizar o bem comum.
Segue-se daí que, quando uma lei civil legitima o aborto ou a
eutanásia, deixa, por isso mesmo, de ser uma verdadeira lei
civil, moralmente obrigatória.
73. O aborto e a eutanásia são, portanto, crimes que
nenhuma lei humana pode pretender legitimar. Leis deste tipo
não só não criam obrigação alguma para a consciência, como, ao
contrário, geram uma grave e precisa obrigação de opor-se a
elas através da objecção de consciência. Desde os princípios
da Igreja, a pregação apostólica inculcou nos cristãos o dever
de obedecer às autoridades públicas legitimamente constituídas
(cf. Rm 13, 1-7; 1 Ped 2, 13-14), mas, ao mesmo tempo,
advertiu firmemente que «importa mais obedecer a Deus do que
aos homens» (Act 5, 29). Já no Antigo Testamento e a
propósito de ameaças contra a vida, encontramos um
significativo exemplo de resistência à ordem injusta da
autoridade. As parteiras dos hebreus opuseram-se ao Faraó, que
lhes tinha dado a ordem de matarem todos os rapazes por
ocasião do parto. «Não cumpriram a ordem do rei do Egipto, e
deixaram viver os rapazes» (Ex 1, 17). Mas há que salientar o
motivo profundo deste seu comportamento: «As parteiras temiam
a Deus» (Ex 1, 17). É precisamente da obediência a Deus - o
único a Quem se deve aquele temor que significa reconhecimento
da sua soberania absoluta - que nascem a força e a coragem de
resistir às leis injustas dos homens. É a força e a coragem de
quem está disposto mesmo a ir para a prisão ou a ser morto à
espada, na certeza de que nisto «está a paciência e a fé dos
Santos» (Ap 13, 10).
Portanto, no caso de uma lei intrinsecamente injusta, como
aquela que admite o aborto ou a eutanásia, nunca é lícito
conformar-se com ela, «nem participar numa campanha de
opinião a favor de uma lei de tal natureza, nem dar-lhe a
aprovação com o próprio voto».98
Um particular problema de consciência poder-se-ia pôr nos
casos em que o voto parlamentar fosse determinante para
favorecer uma lei mais restritiva, isto é, tendente a
restringir o número dos abortos autorizados, como alternativa
a uma lei mais permissiva já em vigor ou posta a votação. Não
são raros tais casos. Sucede, com efeito, que, enquanto,
nalgumas partes do mundo, continuam as campanhas para a
introdução de leis favoráveis ao aborto, tantas vezes apoiadas
por organismos internacionais poderosos, noutras nações, pelo
contrário - particularmente naquelas que já fizeram a amarga
experiência de tais legislações permissivas -, vão-se
manifestando sinais de reconsideração. No caso em hipótese,
quando não fosse possível esconjurar ou abrogar completamente
uma lei abortista, um deputado, cuja absoluta oposição pessoal
ao aborto fosse clara e conhecida de todos, poderia
licitamente oferecer o próprio apoio a propostas que visassem
limitar os danos de uma tal lei e diminuir os seus efeitos
negativos no âmbito da cultura e da moralidade pública. Ao
proceder assim, de facto, não se realiza a colaboração ilícita
numa lei injusta; mas cumpre-se, antes, uma tentativa legítima
e necessária para limitar os seus aspectos iníquos.
74. A introdução de legislações injustas põe frequentemente
os homens moralmente rectos frente a difíceis problemas de
consciência em matéria de colaboração, por causa da imperiosa
afirmação do próprio direito de não ser obrigado a participar
em acções moralmente más. Às vezes, as opções que se impõem
tomar, são dolorosas e podem requerer o sacrifício de posições
profissionais consolidadas ou a renúncia a legítimas
perspectivas de promoção na carreira. Noutros casos, pode
acontecer que o cumprimento de algumas acções, em si mesmas
indiferentes ou mesmo até positivas, previstas no articulado
de legislações globalmente injustas, consinta a salvaguarda de
vidas humanas ameaçadas. Mas, por outro lado, pode-se
justamente temer que a disponibilidade a realizar tais acções
não só provoque um escândalo e favoreça o enfraquecimento da
oposição necessária aos atentados contra a vida, como
insensivelmente induza também a conformar-se cada vez mais com
uma lógica permissiva.
Para iluminar esta difícil questão moral, é preciso
recorrer aos princípios gerais referentes à cooperação em
acções moralmente más. Os cristãos, como todos os homens de
boa vontade, são chamados, sob grave dever de consciência, a
não prestar a sua colaboração formal em acções que, apesar de
admitidas pela legislação civil, estão em contraste com a lei
de Deus. Na verdade, do ponto de vista moral, nunca é lícito
cooperar formalmente no mal. E essa cooperação verifica-se
quando a acção realizada, pela sua própria natureza ou pela
configuração que tem assumido num contexto concreto, se
qualifica como participação directa num acto contra a vida
humana inocente ou como aprovação da intenção moral do agente
principal. Tal cooperação nunca pode ser justificada invocando
o respeito da liberdade alheia, nem apoiando-se no facto de
que a lei civil a prevê e requer: com efeito, nos actos
cumpridos pessoalmente por cada um, existe uma
responsabilidade moral, à qual ninguém poderá jamais
subtrair-se e sobre a qual cada um será julgado pelo próprio
Deus (cf. Rm 2, 6; 14, 12).
Recusar a própria participação para cometer uma injustiça é
não só um dever moral, mas também um direito humano basilar.
Se assim não fosse, a pessoa seria constrangida a cumprir uma
acção intrinsecamente incompatível com a sua dignidade e,
desse modo, ficaria radicalmente comprometida a sua própria
liberdade, cujo autêntico sentido e fim reside na orientação
para a verdade e o bem. Trata-se, pois, de um direito
essencial que, precisamente como tal, deveria estar previsto e
protegido pela própria lei civil. Nesse sentido, a
possibilidade de se recusar a participar na fase consultiva,
preparatória e executiva de semelhantes actos contra a vida,
deveria ser assegurada aos médicos, aos outros profissionais
da saúde e aos responsáveis pelos hospitais, clínicas e casas
de saúde. Quem recorre à objecção de consciência deve ser
salvaguardado não apenas de sanções penais, mas ainda de
qualquer dano no plano legal, disciplinar, económico e
profissional.
«Amarás ao teu próximo como a ti mesmo» (Lc 10, 27): «promove» a vida
75. Os mandamentos de Deus ensinam-nos o caminho da vida.
Os preceitos morais negativos, isto é, aqueles que declaram
moralmente inaceitável a escolha de uma determinada acção, têm
um valor absoluto para a liberdade humana: valem sempre e em
todas as circunstâncias, sem excepção. Indicam que a escolha
de determinado comportamento é radicalmente incompatível com o
amor a Deus e com a dignidade da pessoa, criada à sua imagem:
por isso, tal escolha não pode ser resgatada pela bondade de
qualquer intenção ou consequência, está em contraste insanável
com a comunhão entre as pessoas, contradiz a decisão
fundamental de orientar a própria vida para Deus.99
Já neste sentido, os preceitos morais negativos têm uma
função positiva importantíssima: o "não" que exigem
incondicionalmente, aponta o limite intransponível abaixo do
qual o homem livre não pode descer, e simultaneamente indica o
mínimo que ele deve respeitar e do qual deve partir para
pronunciar inumeráveis «sins», capazes de cobrir
progressivamente todo o horizonte do bem (cf. Mt 5, 48), em
cada um dos seus âmbitos. Os mandamentos, de modo particular
os preceitos morais negativos, são o início e a primeira etapa
necessária do caminho da liberdade: «A primeira liberdade -
escreve Santo Agostinho - consiste em estar isento de crimes
(...), como seja o homicídio, o adultério, a fornicação, o
roubo, a fraude, o sacrilégio, e assim por diante. Quando
alguém começa a não ter estes crimes (e nenhum cristão os deve
ter), começa a levantar a cabeça para a liberdade, mas isto é
apenas o início da liberdade, não a liberdade perfeita».100
76. O mandamento «não matarás» estabelece, pois, o ponto
de partida de um caminho de verdadeira liberdade, que nos leva
a promover activamente a vida e a desenvolver determinadas
atitudes e comportamentos ao seu serviço: procedendo assim,
exercemos a nossa responsabilidade para com as pessoas que nos
estão confiadas, e manifestamos, em obras e verdade, o nosso
reconhecimento a Deus pelo grande dom da vida (cf. Sal 139138,
13-14).
O Criador confiou a vida do homem à sua solicitude
responsável, não para que disponha arbitrariamente dela mas a
guarde com sabedoria e administre com amorosa fidelidade. O
Deus da Aliança confiou a vida de cada homem ao homem, seu
irmão, segundo a lei da reciprocidade no dar e no receber, no
dom de si e no acolhimento do outro. Na plenitude dos tempos,
o Filho de Deus, encarnando e dando a sua vida pelo homem,
mostrou a altura e profundidade a que pode chegar esta lei da
reciprocidade. Com o dom do seu Espírito, Cristo dá conteúdos
e significados novos à lei da reciprocidade, à entrega do
homem ao homem. O Espírito, que é artífice de comunhão no
amor, cria entre os homens uma nova fraternidade e
solidariedade, verdadeiro reflexo do mistério de recíproca
doação e acolhimento próprios da Santíssima Trindade. O
próprio Espírito torna-Se a lei nova, que dá força aos crentes
e apela à sua responsabilidade para viverem reciprocamente o
dom de si e o acolhimento do outro, participando no próprio
amor de Jesus Cristo e segundo a sua medida.
77. Animado e plasmado por esta lei nova está também o
mandamento que diz «não matarás». Para o cristão, isto
implica, em última análise, o imperativo de respeitar, amar e
promover a vida de cada irmão, segundo as exigências e as
dimensões do amor de Deus em Jesus Cristo. «Ele deu a Sua
vida por nós, e nós devemos dar a vida pelos nossos irmãos»
(1 Jo 3, 16).
O mandamento «não matarás», inclusive nos seus conteúdos
mais positivos de respeito, amor e promoção da vida humana,
vincula todo o homem. De facto, ressoa na consciência moral de
cada um como um eco irreprimível da aliança primordial de Deus
criador com o homem; todos o podem conhecer pela luz da razão
e observar pela obra misteriosa do Espírito que, soprando onde
quer (cf. Jo 3, 8), alcança e inspira todo o homem que vive
neste mundo.
Constitui, portanto, um serviço de amor, aquele que todos
estamos empenhados em assegurar ao nosso próximo, para que a
sua vida seja defendida e promovida sempre, mas sobretudo
quando é mais débil ou ameaçada. É uma solicitude pessoal mas
também social, que todos devemos cultivar, pondo o respeito
incondicional da vida humana como fundamento de uma sociedade
renovada.
É-nos pedido que amemos e honremos a vida de cada homem e
de cada mulher, e que trabalhemos, com constância e coragem,
para que, no nosso tempo atravessado por demasiados sinais de
morte, se instaure finalmente uma nova cultura da vida, fruto
da cultura da verdade e do amor.
CAPÍTULO IV
A MIM O FIZESTES
POR UMA NOVA CULTURA DA VIDA HUMANA
«Vós sois o povo adquirido por Deus, para proclamardes as
suas obras maravilhosas» (1 Ped 2, 9): o povo da vida e pela
vida
78. A Igreja recebeu o Evangelho, como anúncio e fonte de
alegria e de salvação. Recebeu-o em dom de Jesus, que foi
enviado pelo Pai «para anunciar a Boa Nova aos pobres» (Lc
4, 18). Recebeu-o através dos Apóstolos, que o Mestre enviou
pelo mundo inteiro (cf. Mc 16, 15; Mt 28, 19-20). Nascida
desta acção missionária, a Igreja ouve ressoar em si mesma
todos os dias aquela palavra de incitamento apostólico: «Ai
de mim se não evangelizar!» (1 Cor 9, 16). «Evangelizar -
como escrevia Paulo VI - constitui, de facto, a graça e a
vocação própria da Igreja, a sua mais profunda identidade. Ela
existe para evangelizar».101
A evangelização é uma acção global e dinâmica que envolve a
Igreja na sua participação da missão profética, sacerdotal e
real do Senhor Jesus. Por isso, a evangelização compreende
indivisivelmente as dimensões do anúncio, da celebração e do
serviço da caridade. É um acto profundamente eclesial, que
compromete todos os operários do Evangelho, cada um segundo os
seus carismas e o próprio ministério.
O mesmo acontece quando se trata de anunciar o Evangelho da
vida, parte integrante do Evangelho que é Jesus Cristo. Nós
estamos ao serviço deste Evangelho, amparados na certeza de o
termos recebido em dom e de sermos enviados a proclamá-lo a
toda a humanidade, «até aos confins do mundo» (Act 1, 8).
Por isso, grata e humildemente conservamos a consciência de
ser o povo da vida e pela vida e assim nos apresentamos diante
de todos.
79. Somos o povo da vida, porque Deus, no seu amor
generoso, deu-nos o Evangelho da vida e, por este mesmo
Evangelho, fomos transformados e salvos. Fomos reconquistados
pelo «Príncipe da vida» (Act 3, 15), com o preço do seu
sangue precioso (cf. 1 Cor 6, 20; 7, 23; 1 Ped 1, 19), e, pelo
banho baptismal, fomos enxertados n'Ele (cf. Rm 6, 4-5; Col 2,
12) como ramos que recebem seiva e fecundidade da única árvore
(cf. Jo 15, 5). Interiormente renovados pela graça do
Espírito, «Senhor que dá a vida», tornámo-nos um povo pela
vida, e como tal somos chamados a comportar-nos.
Somos enviados: estar ao serviço da vida não é para nós um
título de glória, mas um dever que nasce da consciência de
sermos «o povo adquirido por Deus para proclamar as suas
obras maravilhosas» (cf. 1 Ped 2, 9). No nosso caminho,
guia-nos e anima-nos a lei do amor: um amor, cuja fonte e
modelo é o Filho de Deus feito homem que «pela sua morte deu
a vida ao mundo».102
Somos enviados como povo. O compromisso de servir a vida
incumbe sobre todos e cada um. É uma responsabilidade
tipicamente «eclesial», que exige a acção concertada e
generosa de todos os membros e estruturas da comunidade
cristã. Mas a sua característica de dever comunitário não
elimina nem diminui a responsabilidade de cada pessoa, a quem
é dirigido o mandamento do Senhor de «fazer-se próximo» de
todo o homem: «Vai e faz tu também do mesmo modo» (Lc 10,
37).
Todos juntos sentimos o dever de anunciar o Evangelho da
vida, de o celebrar na liturgia e na existência inteira, de o
servir com as diversas iniciativas e estruturas de apoio e
promoção.
«O que vimos e ouvimos, isso vos anunciamos» (1 Jo 1, 3):
anunciar o Evangelho da vida
80. «O que era desde o princípio, o que ouvimos, o que
vimos com os nossos olhos, o que contemplámos e as nossas mãos
apalparam acerca do Verbo da vida (...) isso vos anunciamos,
para que também vós tenhais comunhão connosco» (1 Jo 1, 1.3).
Jesus é o único Evangelho: Ele é tudo o que temos para dizer e
testemunhar.
O próprio anúncio de Jesus é anúncio da vida. Ele, de
facto, é o «Verbo da vida» (1 Jo 1, 1). N'Ele, «a vida
manifestou-se» (1 Jo 1, 2); melhor, Ele mesmo é a «vida
eterna que estava no Pai e que nos foi manifestada» (1 Jo 1,
2). Esta mesma vida, graças ao dom do Espírito, foi comunicada
ao homem. Orientada para a vida em plenitude - a «vida eterna» -, também a vida terrena de cada um adquire o seu sentido
pleno.
Iluminados pelo Evangelho da vida, sentimos a necessidade
de o proclamar e testemunhar pela surpreendente novidade que o
caracteriza: identificando-se com o próprio Jesus, portador de
toda a novidade 103 e vencedor daquele «envelhecimento» que
provém do pecado e conduz à morte,104 este Evangelho supera
toda a expectativa do homem e revela a grandeza excelsa, a que
a dignidade da pessoa é elevada pela graça. Assim a contempla
S. Gregório de Nissa: «Quando comparado com os outros seres,
o homem nada vale, é pó, erva, ilusão; mas, uma vez adoptado
como filho pelo Deus do universo, é feito familiar deste Ser,
cuja excelência e grandeza ninguém pode ver, ouvir nem
compreender. Com que palavra, pensamento ou arroubo de
espírito poderemos celebrar a superabundância desta graça? O
homem supera a sua natureza: de mortal passa a imortal, de
perecível a imperecível, de efémero a eterno, de homem
torna-se deus».105
A gratidão e a alegria por esta dignidade incomensurável do
homem incitam-nos a tornar os demais participantes desta
mensagem: «O que vimos e ouvimos, isso vos anunciamos, para
que também vós tenhais comunhão connosco» (1 Jo 1, 3). É
necessário fazer chegar o Evangelho da vida ao coração de todo
o homem e mulher, e inseri-lo nas pregas mais íntimas do
tecido da sociedade inteira.
81. Trata-se em primeiro lugar de anunciar o núcleo deste
Evangelho: é o anúncio de um Deus vivo e solidário, que nos
chama a uma profunda comunhão Consigo e nos abre à esperança
segura da vida eterna; é a afirmação do laço indivisível que
existe entre a pessoa, a sua vida e a própria corporeidade; é
a apresentação da vida humana como vida de relação, dom de
Deus, fruto e sinal do seu amor; é a proclamação da
extraordinária relação de Jesus com todo o homem, que permite
reconhecer o rosto de Cristo em cada rosto humano; é a
indicação do «dom sincero de si» como tarefa e lugar de
plena realização da própria liberdade.
Importa, depois, mostrar todas as consequências deste mesmo
Evangelho, que se podem resumir assim: a vida humana, dom
precioso de Deus, é sagrada e inviolável, e, por isso mesmo, o
aborto provocado e a eutanásia são absolutamente inaceitáveis;
a vida do homem não apenas não deve ser eliminada, mas há-de
ser protegida com toda a atenção e carinho; a vida encontra o
seu sentido no amor recebido e dado, em cujo horizonte haurem
plena verdade a sexualidade e a procriação humana; nesse amor,
até mesmo o sofrimento e a morte têm um sentido, podendo
tornar-se acontecimentos de salvação, não obstante perdurar o
mistério que os envolve; o respeito pela vida exige que a
ciência e a técnica estejam sempre orientadas para o homem e
para o seu desenvolvimento integral; a sociedade inteira deve
respeitar, defender e promover a dignidade de toda a pessoa
humana, em cada momento e condição da sua vida.
82. Para sermos verdadeiramente um povo ao serviço da vida,
temos de propor, com constância e coragem, estes conteúdos,
desde o primeiro anúncio do Evangelho, e, depois, na catequese
e nas diversas formas de pregação, no diálogo pessoal e em
toda a acção educativa. Aos educadores, professores,
catequistas e teólogos, incumbe o dever de pôr em destaque as razões antropológicas que fundamentam e apoiam o respeito de
cada vida humana. Desta forma, ao mesmo tempo que faremos
resplandecer a original novidade do Evangelho da vida,
poderemos ajudar os demais a descobrirem, inclusive à luz da
razão e da experiência, como a mensagem cristã ilumina
plenamente o homem e o significado do seu ser e existir;
encontraremos valiosos pontos de encontro e diálogo também com
os não crentes, empenhados todos juntos a fazer despertar uma
nova cultura da vida.
Cercados pelas vozes mais constrastantes, enquanto muitos
rejeitam a sã doutrina sobre a vida do homem, sentimos
dirigida a nós a recomendação de Paulo a Timóteo: «Prega a
palavra, insiste oportuna e inoportunamente, repreende,
censura e exorta com bondade e doutrina» (2 Tm 4, 2). Com
particular vigor, há-de ressoar esta exortação no coração de
quantos na Igreja, mais directamente e a diverso título,
participam da sua missão de «mestra» da verdade. Ressoe,
antes de mais, em nós, Bispos, que somos os primeiros a quem é
pedido tornar-se incansável anunciador do Evangelho da vida;
está-nos confiado também o dever de vigiar sobre a transmissão
íntegra e fiel do ensinamento proposto nesta Encíclica, e de
recorrer às medidas mais oportunas para que os fiéis sejam
preservados de toda a doutrina contrária ao mesmo. Havemos de
dedicar especial atenção às Faculdades Teológicas, aos
Seminários e às diversas Instituições Católicas, para que aí
seja comunicado, ilustrado e aprofundado o conhecimento da sã
doutrina.106 A exortação de Paulo seja também ouvida por todos
os teólogos, pastores e quantos desempenham tarefas de ensino,
catequese e formação das consciências: cientes do papel que
lhes cabe, não assumam nunca a grave responsabilidade de
atraiçoar a verdade e a própria missão, expondo ideias
pessoais contrárias ao Evangelho da vida, que o Magistério
fielmente propõe e interpreta.
Quando anunciarmos este Evangelho, não devemos temer a
oposição e a impopularidade, recusando qualquer compromisso e
ambiguidade que nos conformem com a mentalidade deste mundo
(cf. Rm 12, 2). Com a força recebida de Cristo, que venceu o
mundo pela sua morte e ressurreição (cf. Jo 16, 33), devemos
estar no mundo, mas não ser do mundo (cf. Jo 15, 19; 17, 16).
«Eu Vos louvo porque me fizestes como um prodígio» (Sal
139138, 14): celebrar o Evangelho da vida
83. Enviados ao mundo como «povo pela vida», o nosso
anúncio deve tornar-se também uma verdadeira e própria
celebração do Evangelho da vida. É precisamente esta
celebração, com toda a força evocativa dos seus gestos,
símbolos e ritos, que se torna o lugar mais precioso e
significativo para transmitir a beleza e a grandeza desse
Evangelho.
Para isso, urge, antes de mais, cultivar, em nós e nos
outros, um olhar contemplativo.107 Este nasce da fé no Deus da
vida, que criou cada homem fazendo dele um prodígio (cf. Sal
139138, 14). É o olhar de quem observa a vida em toda a sua
profundidade, reconhecendo nela as dimensões de generosidade,
beleza, apelo à liberdade e à responsabilidade. É o olhar de
quem não pretende apoderar-se da realidade, mas a acolhe como
um dom, descobrindo em todas as coisas o reflexo do Criador e
em cada pessoa a sua imagem viva (cf. Gn 1, 27; Sal 8, 6).
Este olhar não se deixa cair em desânimo à vista daquele que
se encontra enfermo, atribulado, marginalizado, ou às portas
da morte; mas deixa-se interpelar por todas estas situações
procurando nelas um sentido, sendo, precisamente em tais
circunstâncias, que se apresenta disponível para ler de novo
no rosto de cada pessoa um apelo ao entendimento, ao diálogo,
à solidariedade.
É tempo de todos assumirem este olhar, tornando-se
novamente capazes de venerar e honrar cada homem, com ânimo
repleto de religioso assombro, como nos convidava a fazer
Paulo VI numa das suas mensagens natalícias.108 Animado por
este olhar contemplativo, o povo novo dos redimidos não pode
deixar de prorromper em hinos de alegria, louvor e gratidão
pelo dom inestimável da vida, pelo mistério do chamamento de
todo o homem a participar, em Cristo, na vida da graça e numa
existência de comunhão sem fim com Deus Criador e Pai.
84. Celebrar o Evangelho da vida significa celebrar o Deus
da vida, o Deus que dá a vida: «Nós devemos celebrar a Vida
eterna, da qual procede qualquer outra vida. Dela recebe a
vida, na proporção das respectivas capacidades, todo o ser
que, de algum modo, participa da vida. Essa Vida divina, que
está acima de qualquer vida, vivifica e conserva a vida. Toda
a vida e qualquer movimento vital procedem desta Vida que
transcende cada vida e cada princípio de vida. A Ela devem as
almas a sua incorruptibilidade, como também vivem, graças a
Ela, todos os animais e todas as plantas que recebem da vida
um eco mais débil. Aos homens, seres compostos de espírito e
matéria, a Vida dá a vida. Se depois nos acontece abandoná-la,
então a Vida, pelo transbordar do seu amor pelo homem,
converte-nos e chama-nos a Si. E mais... Promete também
conduzir-nos - alma e corpo - à vida perfeita, à imortalidade.
É demasiado pouco dizer que esta Vida é viva: Ela é Princípio
de vida, Causa e Fonte única de vida. Todo o vivente deve
contemplá-la e louvá-la: é Vida que transborda de vida».109
Como o Salmista, também nós, na oração diária individual e
comunitária, louvamos e bendizemos a Deus nosso Pai que nos
plasmou no seio materno, viu-nos e amou-nos quando estávamos
ainda em embrião (cf. Sal 139138, 13.15-16), e exclamamos, com
alegria irreprimível: «Eu Vos louvo porque me fizestes como
um prodígio; as vossas obras são admiráveis, conheceis a sério
a minha alma» (Sal 139138, 14). Sim, «esta vida mortal, não
obstante as suas aflições, os seus mistérios obscuros, os seus
sofrimentos, a sua fatal caducidade, é um facto belíssimo, um
prodígio sempre original e enternecedor, um acontecimento
digno de ser cantado com júbilo e glória».110 Mais, o homem e
a sua vida não se revelam apenas como um dos prodígios mais
altos da criação: Deus conferiu ao homem uma dignidade quase
divina (cf. Sal 8, 6-7). Em cada criança que nasce e em cada
homem que vive ou morre, reconhecemos a imagem da glória de
Deus: nós celebramos esta glória em cada homem, sinal do Deus
vivo, ícone de Jesus Cristo.
Somos chamados a exprimir assombro e gratidão pela vida
recebida em dom e a acolher, saborear e comunicar o Evangelho
da vida, não só através da oração pessoal e comunitária, mas
sobretudo com as celebrações do ano litúrgico. No mesmo
contexto, há que recordar, de modo particular, os Sacramentos,
sinais eficazes da presença e acção salvadora do Senhor Jesus
na existência cristã: tornam os homens participantes da vida
divina, assegurando-lhes a energia espiritual necessária para
realizarem plenamente o verdadeiro significado do viver, do
sofrer e do morrer. Graças a uma genuína descoberta do sentido
dos ritos e à sua adequada valorização, as celebrações
litúrgicas, sobretudo as sacramentais, serão capazes de
exprimir cada vez melhor a verdade plena acerca do nascimento,
da vida, do sofrimento e da morte, ajudando a viver estas
realidades como participação no mistério pascal de Cristo
morto e ressuscitado.
85. Na celebração do Evangelho da vida, é preciso saber
apreciar e valorizar também os gestos e os símbolos, de que
são ricas as diversas tradições e costumes culturais dos
povos. Trata-se de momentos e formas de encontro, pelos quais,
nos diversos países e culturas, se manifesta a alegria pela
vida que nasce, o respeito e defesa de cada existência humana,
o cuidado por quem sofre ou passa necessidade, a solidariedade
com o idoso ou o moribundo, a partilha da tristeza de quem
está de luto, a esperança e o desejo da imortalidade.
Nesta perspectiva e acolhendo a sugestão feita pelos
Cardeais no Consistório de 1991, proponho que se celebre
anualmente um Dia em defesa da Vida, nas diversas Nações, à
semelhança do que já se verifica por iniciativa de algumas
Conferências Episcopais. É necessário que essa ocorrência seja
preparada e celebrada com a activa participação de todas as
componentes da Igreja local. O seu objectivo principal é
suscitar nas consciências, nas famílias, na Igreja e na
sociedade, o reconhecimento do sentido e valor da vida humana
em todos os seus momentos e condições, concentrando a atenção
de modo especial na gravidade do aborto e da eutanásia, sem
contudo transcurar os outros momentos e aspectos da vida que
merecem ser, de vez em quando, tomados em atenta consideração,
conforme a evolução da situação histórica sugerir.
86. Em coerência com o culto espiritual agradável a Deus (cf.Rm
12, 1), a celebração do Evangelho da vida requer a sua
concretização sobretudo na existência quotidiana, vivida no
amor pelos outros e na doação de si próprio. Assim, toda a
nossa existência tornar-se-á acolhimento autêntico e
responsável do dom da vida e louvor sincero e agradecido a
Deus que nos fez esse dom. É o que sucede já com tantos e
tantos gestos de doação, frequentemente humilde e escondida,
cumpridos por homens e mulheres, crianças e adultos, jovens e
idosos, sãos e doentes.
É neste contexto, rico de humanidade e amor, que nascem
também os gestos heróicos. Estes são a celebração mais solene
do Evangelho da vida, porque o proclamam com o dom total de
si; são a manifestação refulgente do mais elevado grau de
amor, que é dar a vida pela pessoa amada (cf. Jo 15, 13); são
a participação no mistério da Cruz, na qual Jesus revela quão
grande valor tem para Ele a vida de cada homem e como esta se
realiza em plenitude no dom sincero de si. Além dos factos
clamorosos, existe o heroísmo do quotidiano, feito de pequenos
ou grandes gestos de partilha que alimentam uma autêntica
cultura da vida. Entre estes gestos, merece particular apreço
a doação de órgãos feita, segundo formas eticamente
aceitáveis, para oferecer uma possibilidade de saúde e até de
vida a doentes, por vezes já sem esperança.
A tal heroísmo do quotidiano, pertence o testemunho
silencioso, mas tão fecundo e eloquente, de «todas as mães
corajosas, que se dedicam sem reservas à própria família, que
sofrem ao dar à luz os próprios filhos, e depois estão prontas
a abraçar qualquer fadiga e a enfrentar todos os sacrifícios,
para lhes transmitir quanto de melhor elas conservam em si».111 No cumprimento da sua missão,
«nem sempre estas mães
heróicas encontram apoio no seu ambiente. Antes, os modelos de
civilização, com frequência promovidos e propagados pelos
meios de comunicação, não favorecem a maternidade. Em nome do
progresso e da modernidade, são apresentados como já superados
os valores da fidelidade, da castidade e do sacrifício, nos
quais se distinguiram e continuam a distinguir-se multidões de
esposas e de mães cristãs. (...) Nós vos agradecemos, mães
heróicas, o vosso amor invencível! Nós vos agradecemos a
intrépida confiança em Deus e no seu amor. Nós vos agradecemos
o sacrifício da vossa vida. (...) Cristo, no Mistério Pascal,
restituiu-vos o dom que Lhe fizestes. Ele, de facto, tem o
poder de vos restituir a vida, que Lhe levastes em oferenda».112
«De que aproveitará, irmãos, a alguém dizer que tem fé se
não tiver obras?» (Tg 2, 14): servir o Evangelho da vida
87. Em virtude da participação na missão real de Cristo, o
apoio e a promoção da vida humana devem actuar-se através do
serviço da caridade, que se exprime no testemunho pessoal, nas
diversas formas de voluntariado, na animação social e no
compromisso político. Trata-se de uma exigência sobremaneira
premente na hora actual, em que a «cultura da morte» se
contrapõe à «cultura da vida», de forma tão forte que muitas
vezes parece levar a melhor. Antes ainda, porém, trata-se de
uma exigência que nasce da «fé que actua pela caridade» (Gal
5, 6), como nos adverte a Carta de S. Tiago: «De que
aproveitará, irmãos, a alguém dizer que tem fé se não tiver
obras? Acaso essa fé poderá salvá-lo? Se um irmão ou uma irmã
estiverem nus e precisarem de alimento quotidiano, e um de vós
lhe disser: "Ide em paz, aquecei-vos e saciai-vos", sem lhes
dar o que é necessário ao corpo, de que lhes aproveitará?
Assim também a fé: se ela não tiver obras, é morta em si mesma» (2, 14-17).
No serviço da caridade, há uma atitude que nos há-de animar
e caracterizar: devemos cuidar do outro enquanto pessoa
confiada por Deus à nossa responsabilidade. Como discípulos de
Jesus, somos chamados a fazermo-nos próximo de cada homem (cf.
Lc 10, 29-37), reservando uma preferência especial a quem vive
mais pobre, sozinho e necessitado. É precisamente através da
ajuda prestada ao faminto, ao sedento, ao estrangeiro, ao nu,
ao doente, ao encarcerado - como também à criança ainda não
nascida, ao idoso que está doente ou perto da morte -, que
temos a possibilidade de servir Jesus, como Ele mesmo
declarou: «Sempre que fizestes isto a um destes meus irmãos
mais pequeninos, a Mim mesmo o fizestes» (Mt 25, 40). Por
isso, não podemos deixar de nos sentir interpelados e julgados
por esta página sempre actual de S. João Crisóstomo: «Queres
honrar o corpo de Cristo? Não O desprezes quando se encontrar
nu! Não vale prestares honras aqui no templo com tecidos de
seda, e depois desprezá-Lo lá fora, onde sofre frio e nudez».113
O serviço da caridade a favor da vida deve ser
profundamente unitário: não pode tolerar unilateralismos e
discriminações, já que a vida humana é sagrada e inviolável em
todas as suas fases e situações; é um bem indivisível.
Trata-se de «cuidar» da vida toda e da vida de todos. Ou
melhor ainda e mais profundamente, trata-se de ir até às
próprias raízes da vida e do amor.
Partindo exactamente deste amor profundo por todo o homem e
mulher, foi-se desenvolvendo, ao longo dos séculos, uma
extraordinária história de caridade, que introduziu, na vida
eclesial e civil, numerosas estruturas de serviço à vida, que
suscitam a admiração até do observador menos prevenido. É uma
história que cada comunidade cristã deve, com renovado sentido
de responsabilidade, continuar a escrever graças a uma
múltipla acção pastoral e social. Neste sentido, é preciso
criar formas discretas mas eficazes de acompanhamento da vida
nascente, prestando uma especial solidariedade àquelas mães
que, mesmo privadas do apoio do pai, não temem trazer ao mundo
o seu filho e educá-lo. Cuidado análogo deve ser reservado à
vida provada pela marginalização ou pelo sofrimento, de forma
particular nas suas etapas finais.
88. Tudo isto comporta uma obra educativa paciente e
corajosa, que estimule todos e cada um a carregar os fardos
dos outros (cf. Gal 6, 2); requer uma contínua promoção das
vocações ao serviço, particularmente entre os jovens; implica
a realização de projectos e iniciativas concretas, sólidas e
inspiradas evangelicamente.
Múltiplos são os instrumentos a valorizar por um empenho
competente e sério. Relativamente às fontes da vida, sejam
promovidos os centros com os métodos naturais de regulação da
fertilidade, como válida ajuda à paternidade e maternidade
responsável, na qual cada pessoa, a começar do filho, é
reconhecida e respeitada por si mesma, e cada decisão é
animada e guiada pelo critério do dom sincero de si. Também os
consultórios matrimoniais e familiares, através da sua acção
específica de consulta e prevenção, desenvolvida à luz de uma
antropologia coerente com a visão cristã da pessoa, do casal e
da sexualidade, constituem um precioso serviço para descobrir
o sentido do amor e da vida, e para apoiar e assistir cada
família na sua missão de «santuário da vida». Ao serviço da
vida nascente, estão ainda os centros de ajuda à vida e os
lares de acolhimento da vida. Graças à sua acção, tantas mães-solteiras e casais em dificuldade readquirem razões e
convicções, e encontram assistência e apoio para superar
contrariedades e medos no acolhimento de uma vida nascitura ou
que acaba de vir à luz.
Diante da vida condicionada por dificuldades, extravio,
doença ou marginalização, outros instrumentos - como as
comunidades para a recuperação dos toxicodependentes, os lares
para abrigo de menores ou dos doentes mentais, os centros para
acolhimento e tratamento dos doentes da SIDA, as Cooperativas
de solidariedade sobretudo para inválidos - são expressões
eloquentes daquilo que a caridade sabe inventar para dar novas
razões de esperança e possibilidades concretas de vida a cada
um.
Quando, depois, a existência terrena se encaminha para o
seu termo, é ainda a caridade que encontra as modalidades mais
oportunas para os idosos, sobretudo se não-autosuficientes, e
os chamados doentes terminais poderem gozar de uma assistência
verdadeiramente humana e receber respostas adequadas às suas
exigências, especialmente à sua angústia e solidão. Nestes
casos, é insubstituível o papel das famílias; mas estas podem
encontrar grande ajuda nas estruturas sociais de assistência
e, quando necessário, no recurso aos cuidados paliativos,
valendo-se para o efeito dos idóneos serviços clínicos e
sociais, sejam os existentes nos edifícios públicos de
internamento e tratamento, sejam os disponíveis para apoio no
domicílio.
Em particular, ocorre reconsiderar o papel dos hospitais,
das clínicas e das casas de saúde: a sua verdadeira identidade
não é a de serem apenas estruturas onde se cuida dos enfermos
e doentes terminais, mas e primariamente ambientes nos quais o
sofrimento, a dor e a morte sejam reconhecidos e interpretados
no seu significado humano e especificamente cristão. De modo
especial, tal identidade deve manifestar-se clara e
eficientemente nas instituições dependentes de religiosos ou,
de alguma maneira, ligadas à Igreja.
89. Estas estruturas e lugares de serviço à vida, e todas
as demais iniciativas de apoio e solidariedade, que as
diversas situações poderão sugerir em cada ocasião, precisam
de ser animados por pessoas generosamente disponíveis e
profundamente conscientes de quão decisivo seja o Evangelho da
vida para o bem do indivíduo humano e da sociedade.
Peculiar é a responsabilidade confiada aos profissionais da
saúde - médicos, farmacêuticos, enfermeiros, capelães,
religiosos e religiosas, administradores e voluntários: a sua
profissão pede-lhes que sejam guardiães e servidores da vida
humana. No actual contexto cultural e social, em que a ciência
e a arte médica correm o risco de extraviar-se da sua dimensão
ética originária, podem ser às vezes fortemente tentados a
transformarem-se em fautores de manipulação da vida, ou mesmo
até em agentes de morte. Perante tal tentação, a sua
responsabilidade é hoje muito maior e encontra a sua
inspiração mais profunda e o apoio mais forte precisamente na
intrínseca e imprescindível dimensão ética da profissão
clínica, como já reconhecia o antigo e sempre actual juramento
de Hipócrates, segundo o qual é pedido a cada médico que se
comprometa no respeito absoluto da vida humana e da sua
sacralidade.
O respeito absoluto de cada vida humana inocente exige
inclusivamente o exercício da objecção de consciência frente
ao aborto provocado e à eutanásia. O «fazer morrer» nunca
pode ser considerado um cuidado médico, nem mesmo quando a
intenção fosse apenas a de secundar um pedido do paciente:
pelo contrário, é a própria negação da profissão médica, que
se define como um apaixonado e vigoroso «sim» à vida. Também
a pesquisa biomédica, campo fascinante e promissor de novos e
grandes benefícios para a humanidade, deve sempre rejeitar
experiências, investigações ou aplicações que, menosprezando a
dignidade inviolável do ser humano, deixam de estar ao serviço
dos homens para se transformarem em realidades que, parecendo
socorrê-los, efectivamente os oprimem.
90. Um papel específico são chamadas a desempenhar as
pessoas empenhadas no voluntariado: oferecem um contributo
precioso ao serviço da vida, quando sabem conjugar capacidade
profissional com um amor generoso e gratuito. O Evangelho da
vida impele-as a elevarem os sentimentos de simples
filantropia até à altura da caridade de Cristo; a reavivarem
diariamente, por entre fadigas e cansaços, a consciência da
dignidade de cada homem; a irem à procura das carências das
pessoas, iniciando - se necessário - novos caminhos em lugares
onde a necessidade é mais urgente, e a atenção e o apoio menos
consistentes.
O realismo pertinaz da caridade exige que o Evangelho da
vida seja servido ainda por meio de formas de animação social
e de empenho político, que defendam e proponham o valor da
vida nas nossas sociedades cada vez mais complexas e
pluralistas. Indivíduos, famílias, grupos, entidades
associativas têm a sua responsabilidade, mesmo se a título e
com método diverso, na animação social e na elaboração de
projectos culturais, económicos, políticos e legislativos que,
no respeito de todos e segundo a lógica da convivência
democrática, contribuam para edificar uma sociedade, onde a
dignidade de cada pessoa seja reconhecida e tutelada, e a vida
de todos fique tutelada e promovida.
Semelhante tarefa incumbe, de modo particular, sobre os
responsáveis da vida pública. Chamados a servir o homem e o
bem comum, têm o dever de realizar opções corajosas a favor da
vida, primeiro que tudo, no âmbito das disposições
legislativas. Num regime democrático, onde as leis e as
decisões se estabelecem sobre a base do consenso de muitos,
pode atenuar-se na consciência dos indivíduos investidos de
autoridade o sentido da responsabilidade pessoal. Mas ninguém
pode jamais abdicar desta responsabilidade, sobretudo quando
tem um mandato legislativo ou poder decisório que o chama a
responder perante Deus, a própria consciência e a sociedade
inteira de opções eventualmente contrárias ao verdadeiro bem
comum. Se as leis não são o único instrumento para defender a
vida humana, desempenham, contudo, um papel muito importante,
por vezes determinante, na promoção de uma mentalidade e dos
costumes. Afirmo, uma vez mais, que uma norma que viola o
direito natural de um inocente à vida, é injusta e, como tal,
não pode ter valor de lei. Por isso, renovo o meu veemente
apelo a todos os políticos para não promulgarem leis que, ao
menosprezarem a dignidade da pessoa, minam pela raiz a própria
convivência social.
A Igreja sabe que é difícil actuar uma defesa legal eficaz
da vida no contexto das democracias pluralistas, por causa da
presença de fortes correntes culturais de matriz diversa.
Todavia, movida pela certeza de que a verdade moral não pode
deixar de ter eco no íntimo de cada consciência, ela encoraja
os políticos - a começar pelos que são cristãos - a não se
renderem, mas tomarem aquelas decisões que, tendo em conta as
possibilidades concretas, levem a restabelecer uma ordem justa
na afirmação e promoção do valor da vida. Nesta perspectiva,
convém sublinhar que não basta eliminar as leis iníquas. Mas
terão de ser removidas as causas que favorecem os atentados
contra a vida, sobretudo garantindo o devido apoio à família e
à maternidade: a política familiar deve constituir o ponto
fulcral e o motor de todas as políticas sociais. Para isso, é
necessário activar iniciativas sociais e legislativas, capazes
de garantir condições de autêntica liberdade de escolha em
ordem à paternidade e à maternidade; impõe-se, além disso,
reordenar as políticas do emprego, de urbanização, da
habitação, dos serviços sociais, para se conseguir conciliar
entre si os tempos do trabalho e da família, tornando possível
um efectivo cuidado das crianças e dos idosos.
91. Um capítulo importante da política em favor da vida é
constituído hoje pela problemática demográfica. As autoridades
públicas têm certamente a responsabilidade de intervir com
válidas iniciativas «para orientar a demografia da população»;
114 mas tais iniciativas devem pressupor e respeitar sempre
a responsabilidade primária e inalienável dos esposos e das
famílias, e não podem recorrer a métodos desrespeitadores da
pessoa e dos seus direitos fundamentais, a começar pelo
direito à vida de todo o ser humano inocente. Por isso, é
moralmente inaceitável que, para regular a natalidade, se
encoraje ou até imponha o uso de meios como a contracepção, a
esterilização e o aborto.
Bem diferentes são os caminhos para resolver o problema
demográfico: os Governos e as várias instituições
internacionais devem, antes de tudo, visar a criação de
condições económicas, sociais, médico-sanitárias e culturais
que permitam aos esposos realizarem as suas opções
procriadoras, com plena liberdade e verdadeira
responsabilidade; devem esforçar-se, depois, por «aumentar os
meios e distribuir com maior justiça a riqueza, para que todos
possam participar equitativamente dos bens da criação. São
necessárias soluções a nível mundial, que instaurem uma
verdadeira economia de comunhão e participação de bens, tanto
na ordem internacional como nacional».115 Esta é a única
estrada que respeita a dignidade das pessoas e das famílias,
como também o autêntico património cultural dos povos.
Vasto e complexo é, portanto, o serviço ao Evangelho da
vida. Ele manifesta-se cada vez mais como âmbito precioso e
favorável para uma efectiva colaboração com os irmãos das
outras Igrejas e Comunidades eclesiais, na linha daquele
ecumenismo das obras que o Concílio Vaticano II, com
autoridade, encorajou.116 Além disso, o referido serviço
apresenta-se como espaço providencial para o diálogo e
colaboração com os sequazes de outras religiões e com todos os
homens de boa vontade: a defesa e a promoção da vida não são
monopólio de ninguém, mas tarefa e responsabilidade de todos.
O desafio que temos pela frente, na vigília do terceiro
milénio, é árduo: somente a cooperação concorde de todos
aqueles que acreditam no valor da vida, poderá evitar uma
derrota da civilização com consequências imprevisíveis.
«Os filhos são bênçãos do Senhor; os frutos do ventre, um
mimo do Senhor» (Sal 127-126, 3): a família «santuário da
vida»
92. No seio do «povo da vida e pela vida», resulta
decisiva a responsabilidade da família: é uma responsabilidade
que brota da própria natureza dela - uma comunidade de vida e
de amor, fundada sobre o matrimónio - e da sua missão que é «guardar, revelar e comunicar o amor».117 Em causa está o
próprio amor de Deus, do qual os pais são constituídos
colaboradores e como que intérpretes na transmissão da vida e
na educação da mesma segundo o seu projecto de Pai.118 É, por
conseguinte, o amor que se faz generosidade, acolhimento,
doação: na família, cada um é reconhecido, respeitado e
honrado porque pessoa, e se alguém está mais necessitado,
maior e mais diligente é o cuidado por ele.
A família tem a ver com os seus membros durante toda a
existência de cada um, desde o nascimento até à morte. Ela é
verdadeiramente «o santuário da vida (...), o lugar onde a
vida, dom de Deus, pode ser convenientemente acolhida e
protegida contra os múltiplos ataques a que está exposta, e
pode desenvolver-se segundo as exigências de um crescimento
humano autêntico».119 Por isso, o papel da família é
determinante e insubstituível na construção da cultura da
vida.
Como igreja doméstica, a família é chamada a anunciar,
celebrar e servir o Evangelho da vida. Esta tríplice função
compete primariamente aos cônjuges, chamados a serem
transmissores da vida, apoiados numa consciência sempre
renovada do sentido da geração, enquanto acontecimento onde,
de modo privilegiado, se manifesta que a vida humana é um dom
recebido a fim de, por sua vez, ser dado. Na geração de uma
nova vida, eles tomam consciência de que o filho «se é fruto
da recíproca doação de amor dos pais, é, por sua vez, um dom
para ambos: um dom que promana do dom».120
A família cumpre a sua missão de anunciar o Evangelho da
vida, principalmente através da educação dos filhos. Pela
palavra e pelo exemplo, no relacionamento mútuo e nas opções
quotidianas, e mediante gestos e sinais concretos, os pais
iniciam os seus filhos na liberdade autêntica, que se realiza
no dom sincero de si, e cultivam neles o respeito do outro, o
sentido da justiça, o acolhimento cordial, o diálogo, o
serviço generoso, a solidariedade e os demais valores que
ajudam a viver a existência como um dom. A obra educadora dos
pais cristãos deve constituir um serviço à fé dos filhos e
prestar uma ajuda para eles cumprirem a vocação recebida de
Deus. Entra na missão educadora dos pais ensinar e testemunhar
aos filhos o verdadeiro sentido do sofrimento e da morte:
podê-lo-ão fazer se souberem estar atentos a todo o sofrimento
existente ao seu redor e, antes ainda, se souberem desenvolver
atitudes de solidariedade, assistência e partilha com doentes
e idosos no âmbito familiar.
93. Além disso, a família celebra o Evangelho da vida com a
oração diária, individual e familiar: nela, agradece e louva o
Senhor pelo dom da vida e invoca luz e força para enfrentar os
momentos de dificuldade e sofrimento, sem nunca perder a
esperança. Mas a celebração que dá significado a qualquer
outra forma de oração e de culto é a que se exprime na
existência quotidiana da família, quando esta é uma existência
feita de amor e doação.
A celebração transforma-se assim num serviço ao Evangelho
da vida, que se exprime através da solidariedade, vivida no
seio e ao redor da família como atenção carinhosa, vigilante e
cordial nas acções pequenas e humildes de cada dia. Uma
expressão particularmente significativa de solidariedade entre
as famílias é a disponibilidade para a adopção ou para o
acolhimento das crianças abandonadas pelos seus pais ou, de
qualquer modo, em situação de grave dificuldade. O verdadeiro
amor paterno e materno sabe ir além dos laços da carne e do
sangue para acolher também crianças de outras famílias,
oferecendo-lhes quanto seja necessário para a sua vida e o seu
pleno desenvolvimento. Entre as formas de adopção, merece ser
assinalada a adopção à distância, que se há-de preferir sempre
que o abandono tenha por único motivo as condições de grave
pobreza da família. Na realidade, com esta espécie de adopção
é oferecida aos pais a ajuda necessária para manter e educar
os próprios filhos, sem ter de os desarraigar do seu ambiente
natural.
Concebida como «determinação firme e perseverante de se
empenhar pelo bem comum»,121 a solidariedade requer ser
também concretizada mediante formas de participação social e
política. Consequentemente, servir o Evangelho da vida implica
que as famílias, nomeadamente tomando parte em apropriadas
associações, se empenhem por que as leis e as instituições do
Estado não lesem de modo algum o direito à vida, desde a sua
concepção até à morte natural, mas o defendam e promovam.
94. Um lugar especial há-de ser reconhecido aos idosos.
Enquanto, nalgumas culturas, a pessoa de mais idade permanece
inserida na família com um papel activo importante, noutras,
ao contrário, quem chegou à velhice é sentido como um peso
inútil e fica abandonado a si mesmo: em tal contexto, pode
mais facilmente surgir a tentação de recorrer à eutanásia.
A marginalização ou mesmo a rejeição dos idosos é
intolerável. A sua presença na família ou, pelo menos, a
estreita solidariedade desta com eles quando, pelo reduzido
espaço da habitação ou outros motivos, essa presença não fosse
possível, é de importância fundamental para criar um clima de
intercâmbio recíproco e de comunicação enriquecedora entre as
várias idades da vida. Por isso, é importante que se conserve,
ou se restabeleça onde tal se perdeu, uma espécie de «pacto»
entre as gerações, de modo que os pais idosos, chegados ao
termo da sua caminhada, possam encontrar nos filhos aquele
acolhimento e solidariedade que lhes tinham oferecido quando
estes estavam a desabrochar para a vida: exige-o a obediência
ao mandamento divino que ordena honrar o pai e a mãe (cf. Ex
20, 12; Lv 19, 3). Mas há mais... O idoso não há-de ser
considerado apenas objecto de atenção, solidariedade e
serviço. Também ele tem um valioso contributo a prestar ao
Evangelho da vida. Graças ao rico património de experiência
adquirido ao longo dos anos, o idoso pode e deve ser
transmissor de sabedoria, testemunha de esperança e de
caridade.
Se é verdade que «o futuro da humanidade passa pela família»,122 tem-se de reconhecer que as
actuais condições sociais, económicas e culturais
frequentemente tornam mais árdua e penosa a tarefa da família
ao serviço da vida. Para poder realizar a sua vocação de «santuário da vida», enquanto célula de uma sociedade que ama
e acolhe a vida, é necessário e urgente que a família como tal
seja ajudada e apoiada. As sociedades e os Estados devem
assegurar todo o apoio necessário, mesmo económico, para que
as famílias possam responder de forma mais humana aos próprios
problemas. Por seu lado, a Igreja deve promover
incansavelmente uma pastoral familiar capaz de ajudar cada
família a redescobrir, com alegria e coragem, a sua missão no
que diz respeito ao Evangelho da vida.
«Comportai-vos como filhos da luz» (Ef 5, 8): para
realizar uma viragem cultural
95. «Comportai-vos como filhos da luz. (...) Procurai o
que é agradável ao Senhor, e não participeis das obras
infrutuosas das trevas» (Ef 5, 8.10-11). No contexto social
de hoje, marcado por uma luta dramática entre a «cultura da
vida» e a «cultura da morte», importa maturar um forte
sentido crítico, capaz de discernir os verdadeiros valores e
as autênticas exigências.
Urge uma mobilização geral das consciências e um esforço
ético comum, para se actuar uma grande estratégia a favor da
vida. Todos juntos devemos construir uma nova cultura da vida:
nova, porque em condições de enfrentar e resolver os problemas
inéditos de hoje acerca da vida do homem; nova, porque
assumida com convicção mais firme e laboriosa por todos os
cristãos; nova, porque capaz de suscitar um sério e corajoso
confronto cultural com todos. A urgência desta viragem
cultural está ligada à situação histórica que estamos a
atravessar, mas radica-se sobretudo na própria missão
evangelizadora confiada à Igreja. De facto, o Evangelho visa «transformar a partir de dentro e fazer nova a própria
humanidade»; 123 é como o fermento que leveda toda a massa
(cf. Mt 13, 33) e, como tal, é destinado a permear todas as
culturas e a animá-las a partir de dentro,124 para que
exprimam a verdade integral sobre o homem e sua vida.
Tem-se de começar por renovar a cultura da vida no seio das
próprias comunidades cristãs. Muitas vezes os crentes, mesmo
até os que participam activamente na vida eclesial, caiem numa
espécie de dissociação entre a fé cristã e as suas exigências
éticas a propósito da vida, chegando assim ao subjectivismo
moral e a certos comportamentos inaceitáveis. Devemos, pois,
interrogar-nos, com grande lucidez e coragem, acerca da
cultura da vida que reina hoje entre os indivíduos cristãos,
as famílias, os grupos e as comunidades das nossas Dioceses.
Com igual clareza e decisão, teremos de individuar os passos
que somos chamados a dar para servir a vida na plenitude da
sua verdade. Ao mesmo tempo, devemos promover um confronto
sério e profundo com todos, inclusive com os não crentes,
sobre os problemas fundamentais da vida humana, tanto nos
lugares da elaboração do pensamento, como nos diversos âmbitos
profissionais e nas situações onde se desenrola diariamente a
existência de cada um.
96. O primeiro e fundamental passo para realizar esta
viragem cultural consiste na formação da consciência moral
acerca do valor incomensurável e inviolável de cada vida
humana. Suma importância tem aqui a descoberta do nexo
indivisível entre vida e liberdade. São bens inseparáveis:
quando um é violado, o outro acaba por o ser também. Não há
liberdade verdadeira, onde a vida não é acolhida nem amada;
nem há vida plena senão na liberdade. Ambas as realidades têm,
ainda, um peculiar e natural ponto de referência que as une
indissoluvelmente: a vocação ao amor. Este, enquanto sincero
dom de si,125 é o sentido mais verdadeiro da vida e da
liberdade da pessoa.
Na formação da consciência, igualmente decisiva é a
descoberta do laço constitutivo que une a liberdade à verdade.
Como disse já várias vezes, o desarraigar a liberdade da
verdade objectiva torna impossível fundar os direitos da
pessoa sobre uma base racional sólida, e cria as premissas
para se afirmar, na sociedade, o arbítrio desenfreado dos
indivíduos ou o totalitarismo repressivo do poder público.126
Então é essencial que o homem reconheça a evidência
primordial da sua condição de criatura que recebe de Deus o
ser e a vida como dom e tarefa: só admitindo esta inata
dependência no seu ser, pode o homem realizar em plenitude a
vida e a liberdade própria e, simultaneamente, respeitar em
toda a sua profundidade a vida e a liberdade alheia. É
sobretudo aqui que se manifesta como, «no centro de cada
cultura, está o comportamento que o homem assume diante do
mistério maior: o mistério de Deus».127 Quando se nega Deus e
se vive como se Ele não existisse ou de qualquer modo não se
tem em conta os seus mandamentos, então facilmente se acaba
por negar ou comprometer também a dignidade da pessoa humana e
a inviolabilidade da sua vida.
97. À formação da consciência está estritamente ligada a
obra educativa, que ajuda o homem a ser cada vez mais homem,
introdu-lo sempre mais profundamente na verdade, orienta-o
para um crescente respeito da vida, forma-o nas justas
relações entre as pessoas.
De modo particular, é necessário educar para o valor da
vida,a começar das suas próprias raízes. É uma ilusão pensar
que se pode construir uma verdadeira cultura da vida humana,
se não se ajudam os jovens a compreender e a viver a
sexualidade, o amor e a existência inteira no seu significado
verdadeiro e na sua íntima correlação. A sexualidade, riqueza
da pessoa toda, «manifesta o seu significado íntimo ao levar
a pessoa ao dom de si no amor».128 A banalização da
sexualidade conta-se entre os principais factores que estão na
origem do desprezo pela vida nascente: só um amor verdadeiro
sabe defender a vida. Não é possível, pois, eximir-nos de
oferecer, sobretudo aos adolescentes e aos jovens, uma
autêntica educação da sexualidade e do amor, educação essa que
requer a formação para a castidade, como virtude que favorece
a maturidade da pessoa e a torna capaz de respeitar o
significado «esponsal» do corpo.
A obra de educação para a vida comporta a formação dos
cônjuges sobre a procriação responsável. No seu verdadeiro
significado, esta exige que os esposos sejam dóceis ao
chamamento do Senhor e vivam como fiéis intérpretes do seu
desígnio: este cumpre-se com a generosa abertura da família a
novas vidas, permanecendo em atitude de acolhimento e de
serviço à vida, mesmo quando os cônjuges, por sérios motivos e
no respeito da lei moral, decidem evitar, com ou sem limites
de tempo, um novo nascimento. A lei moral obriga-os, em
qualquer caso, a dominar as tendências do instinto e das
paixões e a respeitar as leis biológicas inscritas na pessoa
de ambos. É precisamente este respeito que torna legítimo, ao
serviço da procriação responsável, o recurso aos métodos
naturais de regulação da fertilidade: estes têm-se
aperfeiçoado progressivamente sob o ponto de vista científico
e oferecem possibilidades concretas para decisões de harmonia
com os valores morais. Uma honesta ponderação dos resultados
conseguidos deveria fazer ruir preconceitos ainda demasiado
difusos e convencer os cônjuges, bem como os profissionais da
saúde e da assistência social, sobre a importância de uma
adequada formação a tal respeito. A Igreja está agradecida
àqueles que, com sacrifício pessoal e dedicação frequentemente
ignorada, se empenham na pesquisa e na difusão de tais
métodos, promovendo ao mesmo tempo uma educação dos valores
morais que o seu uso supõe.
A obra educativa não pode deixar de tomar em consideração,
ainda, o sofrimento e a morte. Na realidade, ambos fazem parte
da experiência humana, e é vão, para além de ilusório,
procurá-los reprimir ou ignorar. Ao contrário, cada um deve
ser ajudado a compreender, na concreta e dura realidade, o seu
mistério profundo. Também a dor e o sofrimento têm um sentido
e um valor, quando são vividos em estreita ligação com o amor
recebido e dado. Nesta perspectiva, quis que se celebrasse
anualmente o Dia Mundial do Doente, fazendo ressaltar «a
índole salvífica da oferta do sofrimento, que, vivido em
comunhão com Cristo, pertence à essência mesma da redenção».129 Até a morte, aliás, não é de forma alguma aventura sem
esperança: é a porta da existência que se abre de par em par à
eternidade e, para aqueles que a vivem em Cristo, é
experiência de participação no mistério da sua morte e
ressurreição.
98. Em resumo, podemos dizer que a viragem cultural, aqui
desejada, exige de todos a coragem de assumir um novo estilo
de vida que se exprime colocando, no fundamento das decisões
concretas - a nível pessoal, familiar, social e internacional
-, uma justa escala dos valores: o primado do ser sobre o ter,
da pessoa sobre as coisas. Este novo estilo de vida
implica também a passagem da indiferença ao interesse pelo
outro, a passagem da recusa ao seu acolhimento: os outros não
são concorrentes de quem temos de nos defender, mas irmãos e
irmãs de quem devemos ser solidários; hão-de ser amados por si
mesmos; enriquecem-nos pela sua própria presença.
Na mobilização por um nova cultura da vida, que ninguém se
sinta excluído: todos têm um papel importante a desempenhar.
Ao lado da tarefa das famílias, é particularmente valiosa a
missão dos professores e dos educadores. Deles está em larga
medida dependente a possibilidade de os jovens, formados para
uma autêntica liberdade, saberem preservar dentro de si e
espalhar ao seu redor ideais autênticos de vida, e saberem
crescer no respeito e ao serviço de cada pessoa, em família e
na sociedade.
Também os intelectuais muito podem fazer para construir uma
nova cultura da vida humana. Responsabilidade particular cabe
aos intelectuais católicos, chamados a estarem activamente
presentes nas sedes privilegiadas da elaboração cultural, ou
seja, no mundo da escola e das universidades, nos ambientes da
investigação científica e técnica, nos lugares da criação
artística e da reflexão humanista. Alimentando o seu génio e
acção na seiva límpida do Evangelho, devem comprometer-se ao
serviço de uma nova cultura da vida, através da produção de
contributos sérios, documentados e capazes de se imporem pelos
seus méritos ao respeito e interesse de todos. Precisamente
nesta perspectiva, instituí a Pontifícia Academia para a Vida,
com a missão de «estudar, informar e formar acerca dos
principais problemas de biomedicina e de direito, relativos à
promoção e à defesa da vida, sobretudo na relação directa que
eles têm com a moral cristã e as directrizes do Magistério da
Igreja».132 Um contributo específico há-de vir das
Universidades, em particular católicas, e dos Centros,
Institutos e Comissões de bioética.
Grande e grave é a responsabilidade dos profissionais dos
mass-media, chamados a pugnarem por que as mensagens,
transmitidas com tamanha eficácia, sejam um verdadeiro
contributo para a cultura da vida. Importa, por isso,
apresentar exemplos altos e nobres de vida e dar espaço aos
testemunhos positivos e por vezes heróicos de amor pelo homem;
propor, com grande respeito, os valores da sexualidade e do
amor, sem contemporizar com nada daquilo que deturpa e degrada
a dignidade do homem. Na leitura da realidade, hão-de
recusar-se a pôr em destaque tudo o que possa inspirar ou
fazer crescer sentimentos ou atitudes de indiferença, desprezo
ou rejeição da vida. Na escrupulosa fidelidade à verdade dos
factos, eles são chamados a conjugar num todo a liberdade de
informação, o respeito por cada pessoa e um profundo sentido
de humanidade.
99. Nessa viragem cultural a favor da vida, as mulheres têm
um espaço de pensamento e acção singular e talvez
determinante: compete a elas fazerem-se promotoras de um «novo feminismo» que, sem cair na tentação de seguir modelos
«masculinizados», saiba reconhecer e exprimir o verdadeiro
génio feminino em todas as manifestações da convivência civil,
trabalhando pela superação de toda a forma de discriminação,
violência e exploração.
Retomando as palavras da mensagem conclusiva do Concílio
Vaticano II, também eu dirijo às mulheres este premente
convite: «Reconciliai os homens com a vida».133 Vós sois
chamadas a testemunhar o sentido do amor autêntico, daquele dom
de si e acolhimento do outro, que se realizam de modo
específico na relação conjugal, mas devem ser também a alma de
qualquer outra relação interpessoal. A experiência da
maternidade proporciona-vos uma viva sensibilidade pela outra
pessoa e confere-vos, ao mesmo tempo, uma missão particular: «A maternidade comporta uma comunhão especial com o mistério da
vida, que amadurece no seio da mulher. (...) Este modo único
de contacto com o novo homem que se está formando, cria, por
sua vez, uma atitude tal para com o homem - não só para com o
próprio filho, mas para com o homem em geral - que caracteriza
profundamente toda a personalidade da mulher».134 Com efeito,
a mãe acolhe e leva dentro de si um outro, proporciona-lhe
forma de crescer no seu seio, dá-lhe espaço, respeitando-o na
sua diferença. Deste modo, a mulher percebe e ensina que as
relações humanas são autênticas quando se abrem ao acolhimento
da outra pessoa, reconhecida e amada pela dignidade que lhe
advém do facto mesmo de ser pessoa e não de outros factores,
como a utilidade, a força, a inteligência, a beleza, a saúde.
Este é o contributo fundamental que a Igreja e a humanidade
esperam das mulheres. E é premissa insubstituível para uma
autêntica viragem cultural.
Um pensamento especial quereria reservá-lo para vós,
mulheres, que recorrestes ao aborto. A Igreja está a par dos
numerosos condicionalismos que poderiam ter influído sobre a
vossa decisão, e não duvida que, em muitos casos, se tratou de
uma decisão difícil, talvez dramática. Provavelmente a ferida
no vosso espírito ainda não está sarada. Na realidade, aquilo
que aconteceu, foi e permanece profundamente injusto. Mas não
vos deixeis cair no desânimo, nem percais a esperança. Sabei,
antes, compreender o que se verificou e interpretai-o em toda
a sua verdade. Se não o fizestes ainda, abri-vos com humildade
e confiança ao arrependimento: o Pai de toda a misericórdia
espera-vos para vos oferecer o seu perdão e a sua paz no
sacramento da Reconciliação. Dar-vos-eis conta de que nada
está perdido, e podereis pedir perdão também ao vosso filho
que agora vive no Senhor. Ajudadas pelo conselho e pela
solidariedade de pessoas amigas e competentes, podereis
contar-vos, com o vosso doloroso testemunho, entre os mais
eloquentes defensores do direito de todos à vida. Através do
vosso compromisso a favor da vida, coroado eventualmente com o
nascimento de novos filhos e exercido através do acolhimento e
atenção a quem está mais carecido de solidariedade, sereis
artífices de um novo modo de olhar a vida do homem.
100. Neste grande esforço por uma nova cultura da vida,
somos sustentados e fortalecidos pela confiança de quem sabe
que o Evangelho da vida, como o Reino de Deus, cresce e dá
frutos abundantes (cf. Mc 4, 26-29). Certamente é enorme a
desproporção existente entre os meios numerosos e potentes, de
que estão dotadas as forças propulsoras da «cultura da morte», e os meios de que dispõem os promotores de uma
«cultura da
vida e do amor». Mas nós sabemos que podemos confiar na ajuda
de Deus, para Quem nada é impossível (cf. Mt 19, 26).
Com esta certeza no coração e movido de pungente solicitude
pela sorte de cada homem e mulher, repito hoje a todos aquilo
que disse às famílias, empenhadas em suas difíceis tarefas por
entre as ciladas que as ameaçam: 135 é urgente uma grande
oração pela vida, que atravesse o mundo inteiro. Com
iniciativas extraordinárias e na oração habitual, de cada
comunidade cristã, de cada grupo ou associação, de cada
família e do coração de cada crente eleve-se uma súplica
veemente a Deus, Criador e amante da vida. O próprio Jesus nos
mostrou com o seu exemplo que a oração e o jejum são as armas
principais e mais eficazes contra as forças do mal (cf. Mt 4,
1-11), e ensinou aos seus discípulos que alguns demónios só
desse modo se expulsam (cf. Mc 9, 29). Então, encontremos
novamente a humildade e a coragem de orar e jejuar, para
conseguir que a força que vem do Alto faça ruir os muros de
enganos e mentiras que escondem, aos olhos de muitos dos
nossos irmãos e irmãs, a natureza perversa de comportamentos e
de leis contrárias à vida, e abra os seus corações a
propósitos e desígnios inspirados na civilização da vida e do
amor.
«Escrevemo-vos estas coisas para que a vossa alegria seja
completa» (1 Jo 1, 4): o Evangelho da vida é para bem da
cidade dos homens
101. «Escrevemo-vos estas coisas, para que a vossa alegria
seja completa» (1 Jo 1, 4). A revelação do Evangelho da vida
foi-nos confiada como um bem que há-de ser comunicado a todos:
para que todos os homens estejam em comunhão connosco e com a
Santíssima Trindade (cf. 1 Jo 1, 3). Nem nós poderíamos viver
em alegria plena, se não comunicássemos este Evangelho aos
outros, mas o guardássemos apenas para nós.
O Evangelho da vida não é exclusivamente para os crentes:
destina-se a todos. A questão da vida e da sua defesa e
promoção não é prerrogativa unicamente dos cristãos. Mesmo se
recebe uma luz e força extraordinária da fé, aquela pertence a
cada consciência humana que aspira pela verdade e vive atenta
e apreensiva pela sorte da humanidade. Na vida, existe
seguramente um valor sagrado e religioso, mas de modo algum
este interpela apenas os crentes: trata-se, com efeito, de um
valor que todo o ser humano pode enxergar, mesmo com a luz da
razão, e, por isso, diz necessariamente respeito a todos.
Por isso, a nossa acção de «povo da vida e pela vida»
pede para ser interpretada de modo justo e acolhida com
simpatia. Quando a Igreja declara que o respeito incondicional
do direito à vida de toda a pessoa inocente - desde a sua
concepção até à morte natural - é um dos pilares sobre o qual
assenta toda a sociedade, ela «quer simplesmente promover um
Estado humano. Um Estado que reconheça como seu dever primário
a defesa dos direitos fundamentais da pessoa humana,
especialmente da mais débil».136
O Evangelho da vida é para bem da cidade dos homens. Actuar
em favor da vida é contribuir para o renovamento da sociedade,
através da edificação do bem comum. De facto, não é possível
construir o bem comum sem reconhecer e tutelar o direito à
vida, sobre o qual se fundamentam e desenvolvem todos os
restantes direitos inalienáveis do ser humano. Nem pode ter
sólidas bases uma sociedade que se contradiz radicalmente, já
que por um lado afirma valores como a dignidade da pessoa, a
justiça e a paz, mas por outro aceita ou tolera as mais
diversas formas de desprezo e violação da vida humana,
sobretudo se débil e marginalizada. Só o respeito da vida pode
fundar e garantir bens tão preciosos e necessários à sociedade
como a democracia e a paz.
De facto, não pode haver verdadeira democracia, se não é
reconhecida a dignidade de cada pessoa e não se respeitam os
seus direitos.
Nem pode haver verdadeira paz, se não se defende e promove
a vida, como recordava Paulo VI: «Todo o crime contra a vida
é um atentado contra a paz, especialmente se ele viola os
costumes do povo (...), enquanto nos lugares onde os direitos
do homem são realmente professados e publicamente reconhecidos
e defendidos, a paz torna-se a atmosfera feliz e geradora de
convivência social».137
O «povo da vida» alegra-se de poder partilhar o seu
empenho com muitos outros, de modo que seja cada vez mais
numeroso o «povo pela vida», e a nova cultura do amor e da
solidariedade possa crescer para o verdadeiro bem da cidade
dos homens.
CONCLUSÃO
102. Chegados ao termo desta Encíclica, espontaneamente o
olhar volta a fixar-se no Senhor Jesus, o «Menino nascido
para nós» (cf. Is 9, 5), a fim de n'Ele contemplar «a Vida»
que «se manifestou» (1 Jo 1, 2). No mistério deste
nascimento, realiza-se o encontro de Deus com o homem e tem
início o caminho do Filho de Deus sobre a terra, caminho esse
que culminará com o dom da vida na Cruz: com a sua morte, Ele
vencerá a morte e tornar-Se-á para a humanidade princípio de
vida nova.
Quem esteve a acolher «a vida» em nome e proveito de
todos, foi Maria, a Virgem Mãe, a qual, por isso mesmo, mantém
laços pessoais estreitíssimos com o Evangelho da vida. O
consentimento de Maria, na Anunciação, e a sua maternidade
situam-se na própria fonte do mistério daquela vida, que
Cristo veio dar aos homens (cf. Jo 10, 10). Através do
acolhimento e carinho que Ela prestou à vida do Verbo feito
carne, a vida do homem foi salva da condenação à morte
definitiva e eterna.
Por isso, «como a Igreja, de que é figura, Maria é a Mãe
de todos os que renascem para a vida. Ela é verdadeiramente a
Mãe da Vida que faz viver todos os homens; ao gerar a Vida,
gerou de certo modo todos aqueles que haviam de viver dessa
Vida».138
Ao contemplar a maternidade de Maria, a Igreja descobre o
sentido da própria maternidade e o modo como é chamada a
exprimi-la. Ao mesmo tempo, a experiência materna da Igreja
entreabre uma perspectiva mais profunda para compreender a
experiência de Maria, qual modelo incomparável de acolhimento
e cuidado da vida.
«Apareceu um grande sinal no Céu: uma mulher revestida de
Sol» (Ap 12, 1): a maternidade de Maria e da Igreja
103. A relação recíproca entre Maria e o mistério da Igreja
manifesta-se claramente no «grande sinal» descrito no
Apocalipse: «Apareceu um grande sinal no céu: uma mulher
revestida de Sol, tendo a Lua debaixo dos seus pés e uma coroa
de doze estrelas sobre a cabeça» (12, 1). Neste sinal, a
Igreja reconhece uma imagem do próprio mistério: apesar de
imersa na história, ela está consciente de a transcender,
porquanto constitui na terra «o germe e o princípio» do
Reino de Deus.139 Tal mistério, a Igreja vê-o realizado, de
modo pleno e exemplar, em Maria. É Ela a mulher gloriosa, na
qual o desígnio de Deus se pôde actuar com a máxima perfeição.
Aquela «mulher revestida de Sol» - assinala o Livro do
Apocalipse - «estava grávida» (12, 2). A Igreja está
plenamente consciente de trazer em si o Salvador do mundo,
Cristo Senhor, e de ser chamada a dá-Lo ao mundo, regenerando
os homens para a própria vida de Deus. Mas não pode esquecer
que esta sua missão tornou-se possível pela maternidade de
Maria, que concebeu e deu à luz Aquele que é «Deus de Deus», «Deus verdadeiro de Deus verdadeiro». Maria é
verdadeiramente a Mãe de Deus, a Theotokos, em cuja
maternidade é exaltada, até ao grau supremo, a vocação à
maternidade inscrita por Deus em cada mulher. Assim Maria
apresenta-se como modelo para a Igreja, chamada a ser a «nova
Eva», mãe dos crentes, mãe dos «viventes» (cf. Gn 3, 20).
A maternidade espiritual da Igreja só se realiza - também
disto está ciente a Igreja - no meio das ânsias e «dores de
parto» (Ap 12, 2), isto é, em perene tensão com as forças do
mal, que continuam a sulcar o mundo e a dominar o coração dos
homens, que opõem resistência a Cristo: «N'Ele estava a Vida
e a Vida era a luz dos homens; a luz resplandece nas trevas,
mas as trevas não a acolheram» (Jo 1, 4-5).
À semelhança da Igreja, também Maria teve de viver a sua
maternidade sob o signo do sofrimento: «Este Menino está aqui
(...) para ser sinal de contradição; uma espada trespassará a
tua alma, a fim de se revelarem os pensamentos de muitos
corações» (Lc 2, 34-35). Nas palavras que Simeão dirige a
Maria, já no alvorecer da existência do Salvador, está
sinteticamente representada aquela rejeição de Jesus - e com
Ele a rejeição de Maria -, que culmina no Calvário. «Junto da
cruz de Jesus» (Jo 19, 25), Maria participa no dom que o
Filho faz de Si mesmo: oferece Jesus, dá-O, gera-O
definitivamente para nós. O «sim» do dia da Anunciação
amadurece plenamente no dia da Cruz, quando chega para Maria o
tempo de acolher e gerar como filho cada homem feito
discípulo, derramando sobre ele o amor redentor do Filho: «Então Jesus, ao ver sua mãe e junto dela, o discípulo que Ele
amava, Jesus disse a sua mãe: "Mulher, eis aí o teu filho"» (Jo
19, 26).
«O dragão deteve-se diante da mulher (...) para lhe
devorar o filho que estava para nascer» (Ap 12, 4): a vida
ameaçada pelas forças do mal
104. No Livro do Apocalipse, o «grande sinal» da «mulher» (12, 1) é acompanhado por
«outro sinal no céu»: «um
grande dragão vermelho» (12, 3), que representa Satanás,
potência pessoal maléfica, e conjuntamente todas as forças do
mal que agem na história e contrariam a missão da Igreja.
Também nisto, Maria ilumina a Comunidade dos Crentes: de
facto, a hostilidade das forças do mal é uma obstinada
oposição que, antes de tocar os discípulos de Jesus, se dirige
contra a sua Mãe. Para salvar a vida do Filho daqueles que O
temem como se fosse uma perigosa ameaça, Maria tem de fugir
com José e o Menino para o Egipto (cf. Mt 2, 13-15).
Assim, Maria ajuda a Igreja a tomar consciência de que a
vida está sempre no centro de uma grande luta entre o bem e o
mal, entre a luz e as trevas. O dragão queria devorar «o
filho que estava para nascer» (Ap 12, 4), figura de Cristo,
que Maria gera na «plenitude dos tempos» (Gal 4, 4) e que a
Igreja deve continuamente oferecer aos homens nas sucessivas
épocas da história. Mas é também, de algum modo, figura de
cada homem, de cada criança, sobretudo de cada criatura débil
e ameaçada, porque - como recorda o Concílio - «pela sua
encarnação, Ele, o Filho de Deus, uniu-Se de certo modo a cada
homem».140 Precisamente na «carne» de cada homem, Cristo
continua a revelar-Se e a entrar em comunhão connosco, pelo
que a rejeição da vida do homem, nas suas diversas formas, é
realmente rejeição de Cristo. Esta é a verdade fascinante mas
exigente, que Cristo nos manifesta e que a sua Igreja
incansavelmente propõe: «Quem receber um menino como este, em
meu nome, é a Mim que recebe» (Mt 18, 5); «Em verdade vos
digo: Sempre que fizestes isto a um destes meus irmãos mais
pequeninos, a Mim mesmo o fizestes» (Mt 25, 40).
«Não mais haverá morte» (Ap 21, 4): o esplendor da
ressurreição
105. A anunciação do anjo a Maria está inserida no meio
destas expressões tranquilizadoras: «Não tenhas receio, Maria» e
«Nada é impossível a Deus» (Lc 1, 30.37). Na verdade,
toda a existência da Virgem Mãe está envolvida pela certeza de
que Deus está com Ela e A acompanha com a sua benevolência
providente. O mesmo se passa também com a existência da Igreja
que encontra «um refúgio» (cf. Ap 12, 6) no deserto, lugar
da provação mas também da manifestação do amor de Deus pelo
seu povo (cf. Os 2, 16). Maria é uma mensagem de viva
consolação para a Igreja na sua luta contra a morte. Ao
mostrar-nos o seu Filho, assegura-nos que n'Ele as forças da
morte já foram vencidas: «Morte e vida combateram, mas o
Príncipe da vida reina vivo após a morte».141
O Cordeiro imolado vive com os sinais da paixão, no
esplendor da ressurreição. Só Ele domina todos os
acontecimentos da história: abre os seus «selos» (cf. Ap 5,
1-10) e consolida, no tempo e para além dele, o poder da vida
sobre a morte. Na «nova Jerusalém», ou seja, no mundo novo
para o qual tende a história dos homens, «não mais haverá
morte, nem pranto, nem gritos, nem dor, por que as primeiras
coisas passaram» (Ap 21, 4).
Como povo peregrino, povo da vida e pela vida, enquanto
caminhamos confiantes para «um novo céu e uma nova terra» (Ap
21, 1), voltamos o olhar para Aquela que é para nós «sinal de
esperança segura e consolação».142
Ó Maria, aurora do mundo novo, Mãe dos viventes,
confiamo-Vos a causa da vida:
olhai, Mãe, para o número sem fim
de crianças a quem é impedido nascer,
de pobres para quem se torna difícil viver,
de homens e mulheres vítimas de
desumana violência,
de idosos e doentes assassinados pela indiferença
ou por uma suposta compaixão.
Fazei com que todos aqueles que crêem no vosso Filho
saibam anunciar com desassombro e amor
aos homens do nosso tempo o Evangelho da vida.
Alcançai-lhes a graça de o acolher como um dom sempre novo,
a alegria de o celebrar com gratidão em toda a sua existência,
e a coragem para o testemunhar com laboriosa tenacidade,
para construírem, juntamente com todos os homens
de boa vontade, a civilização da verdade e do amor,
para louvor e glória de Deus Criador e amante da vida.
Dado em Roma, junto de S. Pedro, no dia 25 de Março,
solenidade da Anunciação do Senhor, do ano 1995, décimo sétimo
de Pontificado.
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