I
Introdução
1
– O tema que me foi proposto – "A Família
à luz do mistério de Deus revelado por Jesus Cristo" – convida naturalmente a
"ver" a família, ou a instituição familiar, no âmbito da história da
revelação-salvação, no âmbito desse diálogo salvífico entre Deus e o homem
protagonizado especialmente pelo povo que escolheu e elegeu para o efeito, e que
atinge o seu cume em Jesus de Nazaré, filho de Deus feito homem, palavra última
e definitiva do Pai.
Não se
trata pois de um exercício de diversão, mais ou menos interessante,
proporcionado pela celebração do aniversário do nascimento desse Jesus.
Trata-se, sim, de fazer recuar a família à sua origem, à sua fonte, a Deus,
mistério de amor infinito sem limite nem fronteiras, e entendê-la no âmbito e no
horizonte do processo de revelação desse mesmo Deus.
2 – Assim
se diz também que é em Jesus, revelação última e perfeita de Deus, que nós
encontraremos a verdade inteira da Família, o seu sentido, e toda a profundidade
da sua significação teológica. E será também um pressuposto desse tema assumir a
instituição familiar como um dos espaços humanos mais ricos na revelação de
Deus, ou para o acesso à verdade de Deus.
3 – Vamos
tentar de maneira rápida e simples, percorrer esse caminho do homem para Deus e
de Deus para o homem.
4 –
Entendendo a família como a comunidade humana estável que tem as suas raízes no
vínculo de sangue e se apoia na realidade matrimonial, vamos fazer recair a
nossa reflexão sobre esta comunhão conjugal. Como diz o Santo Padre João Paulo
II, é essa comunhão conjugal que "constitui o fundamento sobre o qual se edifica
a mais ampla comunhão da família: dos pais e dos filhos, dos irmãos e das irmãs
entre si, dos parentes e outros familiares" (FC 21)
II
A caminho de Jesus
Um dia,
alguns fariseus perguntaram a Jesus se era lícito ao homem repudiar a sua esposa
por qualquer motivo. Fizeram-no para o apanhar. De facto, se ele respondesse à
sua questão, dava como aceite a separação que no tempo já se não discutia,
podendo apenas opinar sobre os seus eventuais motivos, optando por uma ou outra
das correntes, mais exigente ou mais permissiva.
Jesus porém
não entra no jogo dos seus interlocutores. Remete-os para o "princípio". E no princípio não foi assim. Jesus
fá-los recuar para antes de qualquer legislação ou instituição humana, fá-los
recuar ao projecto do Criador.
Remete-os
para as páginas iniciais da Sagrada Escritura, os primeiros dois capítulos do
Génesis. Provindo de duas épocas diferentes, são eles também já o ponto de
chegada duma revelação que vai acontecendo ao longo da história de um povo que,
assumindo e partilhando os usos e costumes do seu tempo, a cultura de seus
vizinhos, se vai abrindo à verdade do homem e de Deus, sob a luz do Espírito que
desde o início está presente à obra da criação como força da Palavra
criadora.
"Não é bom
que o homem esteja só" (Gn 2,18). Assim exprime o autor sagrado a sua percepção
de que, só, o homem não é. Só, não se descobre, não se encontra, não toma
consciência de si, não cresce, não realiza cabalmente a resposta à Palavra
criadora.
Trata-se de
uma particular e especial solidão. De facto ela, que impede o homem de ser, não
é quebrada por nada de tanto que Deus coloca à sua volta, nem tão pouco, pelo
domínio e senhorio que o Criador lhe confere sobre todos os seres que
nomeia.
Só um ser
semelhante a ele quebraria tal solidão. Só um ser semelhante a ele lhe
possibilitaria uma resposta perfeita ao gesto criador.
E Deus
apresentou-lho, tirado dele mesmo, carne de sua carne e ossos de seus ossos; por
isso, porque tirado do homem, ficou a chamar-se mulher, e "por isso o homem
deixará pai e mãe, para se unir à sua mulher e serão uma só carne" (Gn
2,24)
É porque
foi tirada dele, que o homem se une a ela, para ser completo, e é nessa união
que o ser humano é.
É no
desaparecimento de cada um, que acontece na doação que faz de si ao outro, que
nasce essa terceira realidade o "nós"
da comunhão, em que um e outro se encontram, em que cada um se constrói e se
descobre na sua originalidade.
Mais tarde,
a mesma realidade vai ser dita duma maneira menos "rude", menos "tosca", duma
forma mais burilada, dum modo mais evoluído ou mais sublime, e significando um
eventual avanço no campo da captação da realidade significada. Aqui o homem
ainda é criado primeiro que a mulher.
"Deus criou
o ser humano à sua imagem, criou-o à imagem de Deus; ele os criou homem e
mulher". (Gn 1, 17).
Aqui se diz
que o ser humano acontece na complementaridade do masculino e feminino. Que, não
sendo relação, é um ser relacional. Que é aí, e por aí, que ele se conhece, se
encontra, vive e se realiza na sua originalidade.
Assim se
diz que a imagem de Deus transparecerá da relação complementar vivida entre o
homem e a mulher. É "conhecendo" a mulher que o homem conhece a Deus. Quer dizer
que o conhecimento que Deus proporciona de si mesmo brota da estrutura do
próprio ser humano como masculino/feminino. Do seu ser relacional.
Trata-se,
como é claro duma relação entre distintos, que não é simplesmente a justaposição
de um mais um, mas uma relação em que cada um dos dois é plenamente ele mesmo
quando, e na medida em que, sai de si mesmo à procura do outro.
O ser
humano é assim uma realidade dinâmica, a construir permanentemente na resposta
amorosa ao Deus criador.
No
conhecimento-doação mútuo revelam-se a si mesmos, conhecem a Deus, e são
chamados a prolongar a obra criadora, uma vez que no pleno desse conhecimento,
dessa entrega, nasce um terceiro, fruto do amor de ambos – o filho.
Então
podemos dizer que é o "filho" o espaço do conhecimento perfeito e da realização
do homem e a mulher; é aí que homem e mulher se descobrem na perfeição da sua
resposta ao Deus criador.
Aqui fica
expressa a igualdade entre o homem e a mulher, aqui o ser humano como
multipessoal, aqui a pré-revelação, se assim podemos falar, e a abertura ao
mistério dum Deus multipessoal, que em Jesus se revelará como Trindade.
Este
conhecimento entre o homem e a mulher torna-se numa descoberta e, em certo
sentido, numa revelação operada por aquele novo ser em que ambos, homem e
mulher, se recebam a si mesmos na sua dignidade.
Dissemos
que a este "princípio" o homem chegou numa já avançada etapa da sua história.
Numa luta, pela verdade de si e de Deus, entre o regime patriarcal e o regime
matriarcal, entre um matrimónio fruto de conveniências políticas e económicas,
que o amor às vezes prejudicava, e um matrimónio igualitário, monogâmico e fruto
da entrega dos esposos, que vamos depois encontrar, como desejo, como anelo no
Cântico dos Cânticos, poderíamos dizer, como profecia. Aqui chega o homem no
caminho de um Deus do trovão, terrível e poderoso, a um Deus amor, doação e
misericórdia.
Foi para
este "princípio" que Jesus remetera e do qual o pecado do homem veio afastando a
instituição conjugal e familiar. E os desvios foram mesmo sancionados pela lei.
Mas tudo isso por causa da cabeça dura do homem.
O
"regresso" vai ser operado por Jesus em quem e por quem se vai revelar a verdade
inteira de Deus e do homem, e vai ser dada a este, pelo Espírito, a capacidade
de responder ao projecto inicial.
III
Em Jesus
Cristo
Serviu esta relação esponsal
entre o homem e mulher para significar, para pôr o homem no caminho da
inteligência da relação amorosa entre Deus e o seu povo, da aliança, como
aliança de amor. Mas o modelo era imperfeito. O homem tinha fugido da sua
verdade. Por isso se complementava essa simbologia com outras tiradas igualmente
da instituição familiar. Então, se Deus se dizia Esposo e o Povo esposa, se o
pecado se significava como adultério e o povo, quando pecava, se assemelhava à
mulher adúltera que se prostituía com outros falsos maridos, também se dizia Pai
particularmente sensível às situações difíceis de seus filhos, Pai que ama com
amor materno, namorado apaixonado pela sua donzela que corre por montes e vales
na busca da sua amada.
Vai ser com Jesus que tudo
vai regressar à verdade do "princípio", Ele é a Incarnação do Verbo que "Era no
princípio".
Vai voltar
à verdade aí escondida. Verdade absolutamente insuspeitada, que homem algum
podia imaginar.
Efectivamente Jesus não vai
simplesmente revelar a verdade inteira da aliança entre Deus e os homens. Ele
mesmo é a Aliança, a Nova Aliança que a primeira prefigurava e para a qual
apontava.
É como
Aliança, como comunhão de amor, Deus dado aos homens e o Homem entregue a Deus,
na força e pela força do Espírito, que Ele mesmo, Jesus, se constitui revelador
final e definitivo de Deus, para o qual as instituições humanas, o homem na sua
história, iam apontando, e modelo acabado do homem perfeito.
Efectivamente já o AT tinha
podido pressentir que o amor, sendo o grande mandamento (Dt 6,5) e valor supremo
da vida, deveria ser a mais exacta definição de Deus (cf. Ex 34,6). Mas aí
tratava-se de uma linguagem criada pelo homem que era preciso transpor e
descodificar. Agora, em Jesus Cristo, Deus provou inequivocamente, de maneira
visível e incarnada, que aquela é a única "definição" que o diz, não em si
mesmo, naturalmente, mas na sua relação com os homens e o mundo. Em Jesus, Deus
revela-se-nos como um Pai que nos ama no mesmo amor com que ama e gera o seu
Filho bem amado, e que, pelo dom do mesmo amor, o Espírito, nos capacita para
amor idêntico.
É no
mistério da sua Morte e Ressurreição, é no mistério da sua Cruz, trono à direita
do Pai, donde envia o Espírito, que Jesus é verdade de Deus e do Homem. É aí que
Ele é a Verdade.
Aquele Deus
multipessoal é aí revelado como um mistério de amor em três pessoas – Pai,
Filho, Espírito Santo – que se virão a definir como relação amorosa subsistente
e eternamente fecunda.
É
igualmente aí que Jesus revela o homem como um ser dado, dado por amor aos
homens e aos irmãos, na constituição daquela unidade na qual e pela qual o ser
humano é revelação do mistério de Deus.
É por
referência a este mistério que o baptizado em Cristo, tendo sido criado por
amor, responde à sua vocação ao amor, por força do Espírito Santo que o habita e
que na Trindade é princípio de comunhão e distinção entre o Pai e o Filho.
E responde,
como diz João Paulo II, no Matrimónio, e na Virgindade, por amor do reino (FC
16).
Aí e por aí
se vê a dimensão teológica da vida dos esposos, da vida conjugal.
Une-os
aquele Espírito que a cada um revela o outro com um dom de Deus, como oferta
daquele que é puro Dom.
Desposando-se entre si, em
Cristo (cf. ICor 7,36), isto é, no amor recíproco – "este é o meu mandamento que
vos ameis como eu vos amei" (Jo 15) – os esposos têm Cristo no meio deles como
realização e cumprimento da promessa feita pelo profeta "farei a minha morada no
meio deles, serei o seu Deus e eles serão o meu povo" (Ex 37,27). A única
condição para que tal aconteça é a recíproca entrega e submissão de um ao outro
em Cristo (cf. Ef 5) levadas até a medida revelada na cruz: "ninguém tem mais
amor do que aquele que dá a vida pelos seu amigos" (Jo 14,13).
Quer dizer
que este Cristo que neles está presente é, ao mesmo tempo, o fruto e o espaço do
seu próprio encontro. É ele, pelo seu Espírito, que torna possível esse amor,
que o torna presente de maneira viva e activa.
Amados
assim em Cristo, e à maneira de Cristo, fazem-se amigos daquele que revela os
segredos do Pai e os faz penetrar na vida da Trindade com quem fazem "um só" e,
ao mesmo tempo, fazem-se amigos um do outro, pondo tudo em comum, do que são ao
que têm, do que sabem ao que podem, como expressão daquele amor ideal cantado na
Cântico dos Cânticos (5, 2.16).
O "sereis
uma só carne" do Génesis, atinge então uma significação muito mais profunda na
medida em que agora, por força do Espírito enviado, se converte em "como tu Pai
o és em mim e eu em ti, que eles sejam um só" (Jo 17,21). Por aqui, por esta
unidade, se torna o casal humano testemunha de que o Pai enviou o Filho ao
mundo.
Os
cônjuges, desposados em Cristo, na sua comunhão são obra do Espírito. O seu amor
é divino humano.
Tornar
presente no mundo este mistério de amor que é Deus Trino, é a missão e vocação
do casal e da família.
IV
A Família espelho da
Trindade
Recebendo a sua vida como um
dom de Deus, a Família torna-se na imagem mais perfeita de Deus na terra.
Comunhão de amor, presença
ao mundo desse amor vivo e fecundo de Deus revelado em Jesus, a Família torna-se
na imagem mais perfeita de Deus.
Até Jesus
Cristo, os homens foram falando de Deus transcendente e invisível pela mediação
de categorias humanas, e categorias familiares como dissemos.
Ora, em
Jesus Cristo, esse Deus, transcendente e invisível, fez-se presente à história e
aos homens, viu-se. Nele vemos agora aquilo para que antes se apontava. Agora é
Ele que se torna o nosso modelo.
Foi Paulo
que melhor apresentou as exigências e ao mesmo tempo a dignidade do matrimónio a
partir do mistério de Cristo.
Para ele a
protologia e a escatologia (que aconteceu já e há-de consumar-se) como alfa e
ómega do desígnio de Deus sobre a humanidade em Cristo, revelam-se e realizam-se
no acontecimento pascal em linguagem esponsal.
Aí de facto
se realizam os esponsais de Cristo com a sua Igreja, que são o paradigma dos
esponsais entre Adão e Eva e, por outro lado, o laço que une numa só carne o
homem e a mulher em Cristo Crucificado e Ressuscitado (presença definitiva na
história do Deus da origem que no Espírito se faz o nosso futuro escatológico)
converte-se em paradigma eficaz dos novos céus e nova terra.
É nesta
perspectiva e tensão escatológicas que se hão-de entender as palavras de Jesus
"quem amar a esposa o pai ou a mãe mais do que a mim não é digno de mim" em que
Ele aponta para a família escatológica, na qual já não haverá homem nem
mulher.
O dom de si
de Cristo à Igreja é, ao mesmo tempo, condição real e possibilidade, e modelo do
dom recíproco dos esposos.
Mas que
tipo de amor é esse? Sabemos que quando Jesus morreu, a Igreja ainda não
existia. Esse amor é pois um amor constitutivo da mesma Igreja. Jesus amou e
entregou-se todo por todos os homens. Na resposta a esse amor nasce a Igreja,
limpa e purificada de todo o pecado. Assim também é o amor dos esposos que os
constitui tais. Quer dizer, um rapaz ama uma rapariga e na resposta nasce uma
realidade nova, a esposa. Um rapariga ama um rapaz e na resposta nasce um
marido. Marido e esposa são portanto realidades a criar permanentemente pelo
amor de ambos. São fruto desse amor. Sem ele temos justapostos uma mulher e um
homem.
Mais, vimos
já como a entrega, a doação dos esposos, na qual e pela qual se tornam eles
mesmos, vai até ao aparecimento de um terceiro, o filho. Fruto daquele amor é o
filho que os faz e revela como pai e mãe.
Como diz
alguém, o nascimento do filho dá à família uma outra dimensão na simbologia da
trindade: "A célebre fórmula de Blondel segundo a qual no casamento "dois seres não são mais que um e é quando são um que eles se tornam três", mostra
bem o instante do milagre e da surpresa "trinitária", porque o terceiro não vem
somente depois dos dois, mas aparece como um dom no instante em que os dois
aceitam tornar-se um."
A
família é, de facto, também ela um mistério de amor. A família é, de facto, a
melhor imagem da Trindade Santíssima. Um amor entre distintos, recíproco e
fecundo.
"A Igreja
tem consciência de que o matrimónio e a família constituem um dos bens mais
preciosos da humanidade" (FC 1)
BIBLIOGRAFIA
1 – IGREJA CATÓLICA. Papa, 1978 (João
Paulo II) Familiaris Consortio,
(Exortação Apostólica, de 22 de Novembro de 1981), Editorial A O, Braga,
1982
2 – IGREJA
CATÓLICA. Papa, 1978 (João Paulo II), Carta às Famílias, 2 de Fevereiro de
1994, Secretariado Geral do Episcopado, Editora Rei dos Livros, 1994
3 –
SEMANAS DE ESTUDIOS TRINITARIOS, XXIX, Salamanca, 1995, Misterio Trinitario y Familia Humana, Ed
Secretariado Trinitario, Salamanca
4 – RAMOS,
Frederico Pastor – A Família na Bíblia,
Petropolis, Editora Vozes, 1999
5 – NUÑEZ,
Angel Gonzalez, A Vida de Casal na
Bíblia, Lisboa, Edições São Paulo, 1995
6 – BOROBIO, Familia, Sociedad, Iglesia,
Identidad y mision de la familia cristiana, Bilbao, Desclée de Brouwer,
1994
7 – SICARI, Antonio, Des Symboles
familliers, Comunio, 1986, XI, 6, p. 35-52
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