Comecemos com uma definição de
Dicionário, ainda antes de ir à Teologia. Sendo uma realidade básica e geral,
coloquemo-nos ao nível comum em que todos nos vamos encontrando, com a
secularidade possível: “Amor: Predisposição da afectividade e da vontade,
orientada para o objecto que a inspira, e é reconhecido como bem. Afeição
profunda de uma pessoa por outra, de carácter passional e que, geralmente,
implica atracção sexual…” (Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da
Academia das Ciências de Lisboa. Lisboa: Verbo, 2001, vol. 1, p. 220).
É uma das entradas mais extensas
do Dicionário, mas é esclarecedor que comece precisamente assim: amor é
orientação para o bem que se considera tal; é afeição ao outro, também
sexualmente traduzida. “Geralmente” assim é, considera o dicionarista, dando a
esta nota grande importância e admitindo-lhe excepções que a experiência
religiosa alarga.
Procuremos agora um Dicionário
teológico, propriamente dito. E de um autor de sólida tradição tomista, como é o
caso de L. Bouyer. Tradição tomista significa aqui atenção aos vários níveis da
realidade, do humano ao divino, não esquecendo nenhum aspecto nem eliminando
patamares. E leremos então: “Os filósofos pagãos já tinham distinguido no amor
duas formas ou dois aspectos muito diferentes: o amor de concupiscência que nos
atrai para um objecto, simplesmente pelo de desejo de nos aproveitarmos dele
para nós mesmos, e o amor de benevolência, que nos faz desejar, pelo contrário,
o bem próprio do ser amado. A verdadeira amizade, sublinham, sem excluir todo o
amor interessado, não existe senão onde predomina o amor de benevolência. Mas
implica ainda algo mais: não só a reciprocidade, que faz o que ama ser
simultaneamente amado, mas também a comunhão, passiva e activa, que consiste em
cada uma possuir e partilhar com o outro” (Cf. L. Bouyer – Dicionario de
Teologia. Barcelona: Herder, 1983, p. 63).
Filósofos “pagãos”, refere o
autor. Ou seja, a reflexão sobre o humano ainda não iluminada pela vida e a
palavra de Cristo, mas já atenta aos dinamismos mais profundos do ser em
relação. Concluíam que o movimento pode ser apenas de aproveitamento do outro
para nossa satisfação (concupiscência); ou de satisfação do outro, para seu
próprio bem (benevolência). A amizade estará inteira do lado da benevolência,
que não exclui, antes realiza a reciprocidade, porque o amor tanto atrai como
obriga o amado: é exactamente assim que sentimos e dizemos os portugueses,
agradecendo com uma palavra tão nossa como a saudade: - Obrigado! Português e de
lei era o grande S. João de Deus, amigo dos pequenos, que gritava aos grandes,
pedindo-lhes esmola para o hospital de Granada: “- Fazei bem a vós mesmos, fazei
bem a vós mesmos!”
Mas voltando ao sólido discurso de
Bouyer: “A língua grega tem três palavras para designar o amor: eros, que se
aplica antes de tudo ao desejo que nos atrai para o bem (também este desejo como
o amor celeste de Platão, pode tender para um bem absolutamente espiritual),
philia, que é amizade enquanto amor às pessoas, considerando precisamente a
pessoa, desinteressadamente; agape, que indica a estima ou a preferência, mais
do que o apego passional ou a união entre pessoas. O latim distinguirá da mesma
maneira entre amor (com sentido indefinido, mas passional), amicitia, que
implica reciprocidade e comunhão, dilectio, que é sobretudo complacência num
ser, e caritas, que é todo o amor generoso” (cf. ibidem, p.63-64).
Não estranhemos estas distinções.
Em grego ou latim e mesmo traduzidas, indicam-nos, afinal, que o amor humano é “humanizável”,
enquanto cresce para realizações cada vez mais altas da gratuidade, onde nos
tornamos menos dependentes do imediatismo do desejo e da satisfação e, por isso
mesmo, mais livres e distintos do reino da necessidade pura ou brutal. Quer
dizer, mais humanos.
Aqui chegando, sem deixarmos a
humanidade, porque o exemplo de Cristo é tudo o que há de mais humano e
humanizador, reparemos como apurou ele a reflexão anterior de filósofos e
sábios: “É bem notável – prossegue Bouyer – que os escritos bíblicos, e nisto o
Novo testamento segue a tradução grega do Antigo chamada dos Setenta, empregaram
agape (e mais tarde as versões latinas caritas) para designar, seja o amor de
Deus para com os homens, seja o que Ele quer suscitar em nós mesmos (tanto em
relação a Ele como em relação aos irmãos), ainda que este termo seja o menos
elaborado (e empregue) pela reflexão filosófica” (cf. ibidem, p. 64).
Entenda-se: a reflexão pagã exerce-se sobre o que vive, ainda que no seu melhor.
A potenciação que a revelação de Deus traz à realidade humana, sobretudo nos
sentimentos e nos gestos de Cristo, leva-a tão longe que as palavras têm de
ultrapassar o seu ineditismo e quase reinventar-se: mais do que eros, mais do
que philia, agape; mais do que amicitia, mais do que dilectio, caritas.
Não se abandona o humano,
realiza-se inteiramente na gratuidade do amor: “O amor-caridade não suprimirá,
nem combaterá de modo algum as nossas afeições particulares, desde que sejam
sãs, isto é, que respeitem a ordem fundamental da caridade; mas
transfigurá-las-á, ainda que tal transfiguração possa exigir muitos sacrifícios
dolorosos” (cf. ibidem, p. 70).
Envolvendo inteligência e vontade
no sentido do dom, o amor aparece como o mais humano e humanizador dos
sentimentos. Inteligência que constata, afinal, a realização humana na partilha
mútua e apenas nela. Ou assim dito: “É o mais nobre sentimento de que é capaz um
ser racional. Não se reduz à mera simpatia romântica, e muito menos à atracção
sexual. Consiste, essencialmente, em querer o bem do outro, empenhando nesta
vontade o próprio ser. Por outras palavras, é, essencialmente, o dom do próprio
ser para promover o maior bem do outro. Assim, ele é fundamentalmente
desinteressado, representando a maior vitória sobre o egoísmo. Na reciprocidade
do dom total se realiza a plenitude do amor” (Fernando Bastos de Ávila – Pequena
Enciclopédia de Doutrina Social da Igreja. São Paulo: Loyola, 1991, p. 23).
Quando, há quatro décadas, o
Concílio Vaticano II desenvolveu a sua reflexão sobre este ponto, teve
constantemente em conta a base humana do amor e das relações inter-pessoais, não
para as esquecer ao falar do amor divino, mas para relacionar os dois em termos
de verdade do Criador espelhada nas suas criaturas. Deus é comunhão, o homem é
comunhão e só assim se realiza: “Deus não criou o homem sozinho; desde o
princípio criou-os ‘varão e mulher’ (Gn. 1, 27); e a sua união constitui a
primeira forma de comunhão entre pessoas. Pois o homem, por sua própria
natureza, é um ser social, que não pode viver nem desenvolver as suas qualidades
sem entrar em relação com os outros” (Gaudium et Spes, nº 12).
E tanto assim é que o amor
interpessoal se transforma em critério geral para aferir do verdadeiro progresso
da sociedade e do mundo. Pode acelerar-se muitíssimo o desenvolvimento e o ritmo
da tecnologia e da vida. Podem multiplicar-se constantemente contactos e
conexões. Se tal não viabilizar a real comunhão interpessoal, é insignificante
para a verdadeira realização da humanidade de todos e cada um. Já assim se
escrevia há quatro décadas: “Entre os principais aspectos do mundo actual
conta-se a multiplicação das relações entre os homens, cujo desenvolvimento é
muito favorecido pelos progressos técnicos hodiernos. Todavia, o diálogo
fraterno entre os homens não se realiza ao nível destes progressos, mas ao nível
mais profundo da comunidade de pessoas, a qual exige o mútuo respeito da sua
dignidade espiritual. A revelação cristã oferece poderosamente esta comunhão
entre as pessoas, ao mesmo tempo que nos leva a uma compreensão mais profunda
das leis da vida social que o Criador inscreveu na natureza espiritual e moral
do homem” (Gaudium et Spes, nº 23).
Mas se quisermos, para terminar,
encontrar o âmago da reflexão conciliar sobre este ponto, achá-lo-emos decerto
no número 24 da Constituição pastoral sobre a Igreja no mundo contemporâneo.
Onde se diz, concretamente, que a unidade entre os homens reflecte a unidade
entre as Pessoas divinas, encontrando aí não só um projecto de vida mas a sua
própria finalidade. Comunhão activada e possibilitada apenas na mútua entrega de
cada um ao Outro e aos outros. No próprio Deus assim (sobre)acontece, na doação
inteira e recíproca do Pai ao Filho no Espírito. Só assim também, analogamente,
a humanidade realiza em si mesma a semelhança divina. Diz-se deste modo, na
linguagem conciliar: “Quando o Senhor Jesus pede ao Pai ‘que todos sejam um…,
como nós somos um’ (Jo. 17, 21-22), sugere – abrindo perspectivas inacessíveis à
razão humana – que há uma certa analogia entre a união das pessoas divinas entre
si e a união dos filhos de Deus na verdade e na caridade. Esta semelhança torna
manifesto que o homem, única criatura sobre a terra a ser querida por Deus por
si mesma, não se pode encontrar plenamente a não ser no sincero dom de si
mesmo”.
Um dos bispos que subscreveu
inteiramente este trecho conciliar, em 1965, foi eleito Papa treze anos depois,
com o nome de João Paulo II. E se quisermos encontrar uma ideia permanente e
inspiradora de todas as suas tomadas de posição sobre o homem, a família e a
sociedade, achá-la-emos precisamente aqui, no que ele chama a “lei da oferta” de
si próprio, como base imprescindível para que, em qualquer vinculação humana,
nos reconheçamos como pessoas e nos realizemos na comunhão. É uma das suas
citações mais recorrentes, explícita ou implicitamente: “o homem não se pode
encontrar plenamente a não ser no sincero dom de si mesmo”.
E, uma vez que este Congresso se
vai debruçar em concreto sobre a sexualidade e a família, cabe ainda a citação
do número 11 da Exortação apostólica de João Paulo II Familiaris Consortio, de
22 de Novembro de 1981: “Deus é amor e vive em si mesmo um mistério de comunhão
pessoal de amor. Criando-a à sua imagem e conservando-a continuamente no ser,
Deus inscreve na humanidade do homem e da mulher a vocação e, por conseguinte, a
capacidade e a responsabilidade do amor e da comunhão. O amor é, por isso, a
vocação fundamental e originária do ser humano. Enquanto espírito encarnado,
isto é, alma que se exprime no corpo informado por um espírito imortal, o homem
é chamado ao amor nesta sua totalidade unificada. O amor abraça também o corpo
humano e o corpo torna-se participante do amor espiritual”. Assim sendo e em
coerência necessária, a sexualidade realiza de modo específico a verdade do amor
humano como doação mútua e inteira de duas pessoas. E só assim, prossegue o
mesmo número: “A sexualidade, mediante a qual o homem e a mulher se dão um ao
outro com os actos próprios e exclusivos dos esposos, de maneira nenhuma é algo
puramente biológico, mas diz respeito ao núcleo mais íntimo da pessoa humana
como tal. Ela só se realiza de maneira verdadeiramente humana, se é parte
integral do amor com o qual homem e mulher se comprometem totalmente um para com
o outro até à morte. A doação física seria falsa se não fosse sinal e fruto da
doação pessoal total, na qual toda a pessoa, mesmo na sua dimensão temporal,
está presente: se a pessoa se reservasse alguma coisa ou a possibilidade de
decidir de modo diferente para o futuro, só por isto já não se estaria a dar
totalmente”.
Num ambiente cultural tão
fragmentado como o nosso, frases destas podem dissonar. Acontece, realmente. E,
no entanto, a sua coerência contrasta com a aludida fragmentação de sentimentos
e vidas, que muito menos nos satisfaz e convence. A verdade total sobre o amor
humano que o Papa Wojtyla tem anunciado, na esteira dos textos conciliares que
ajudou a escrever, não pode deixar de ser exigente, uma vez que nos desinstala
de qualquer patamar incipiente ou esporádico do ser. É da verdade que se trata.
Da verdade da pessoa humana, que, à semelhança das Pessoas divinas, só se
encontrará no dom total de si mesma: a alma no corpo, o instante na permanência.
|