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O AMOR HUMANO
 

D. Manuel Clemente
Conferência proferida no Congresso dos Médicos Católicos

 

Comecemos com uma definição de Dicionário, ainda antes de ir à Teologia. Sendo uma realidade básica e geral, coloquemo-nos ao nível comum em que todos nos vamos encontrando, com a secularidade possível: “Amor: Predisposição da afectividade e da vontade, orientada para o objecto que a inspira, e é reconhecido como bem. Afeição profunda de uma pessoa por outra, de carácter passional e que, geralmente, implica atracção sexual…” (Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das Ciências de Lisboa. Lisboa: Verbo, 2001, vol. 1, p. 220).

É uma das entradas mais extensas do Dicionário, mas é esclarecedor que comece precisamente assim: amor é orientação para o bem que se considera tal; é afeição ao outro, também sexualmente traduzida. “Geralmente” assim é, considera o dicionarista, dando a esta nota grande importância e admitindo-lhe excepções que a experiência religiosa alarga.

Procuremos agora um Dicionário teológico, propriamente dito. E de um autor de sólida tradição tomista, como é o caso de L. Bouyer. Tradição tomista significa aqui atenção aos vários níveis da realidade, do humano ao divino, não esquecendo nenhum aspecto nem eliminando patamares. E leremos então: “Os filósofos pagãos já tinham distinguido no amor duas formas ou dois aspectos muito diferentes: o amor de concupiscência que nos atrai para um objecto, simplesmente pelo de desejo de nos aproveitarmos dele para nós mesmos, e o amor de benevolência, que nos faz desejar, pelo contrário, o bem próprio do ser amado. A verdadeira amizade, sublinham, sem excluir todo o amor interessado, não existe senão onde predomina o amor de benevolência. Mas implica ainda algo mais: não só a reciprocidade, que faz  o que ama ser simultaneamente amado, mas  também a comunhão, passiva e activa, que consiste em cada uma possuir e partilhar com o outro” (Cf. L. Bouyer – Dicionario de Teologia. Barcelona: Herder, 1983, p. 63).

 Filósofos “pagãos”, refere o autor. Ou seja, a reflexão sobre o humano ainda não iluminada pela vida e a palavra de Cristo, mas já atenta aos dinamismos mais profundos do ser em relação. Concluíam que o movimento pode ser apenas de aproveitamento do outro para nossa satisfação (concupiscência); ou de satisfação do outro, para seu próprio bem (benevolência). A amizade estará inteira do lado da benevolência, que não exclui, antes realiza a reciprocidade, porque o amor tanto atrai como obriga o amado: é exactamente assim que sentimos e dizemos os portugueses, agradecendo com uma palavra tão nossa como a saudade: - Obrigado! Português e de lei era o grande S. João de Deus, amigo dos pequenos, que gritava aos grandes, pedindo-lhes esmola para o hospital de Granada: “- Fazei bem a vós mesmos, fazei bem a vós mesmos!”

Mas voltando ao sólido discurso de Bouyer: “A língua grega tem três palavras para designar o amor: eros, que se aplica antes de tudo ao desejo que nos atrai para o bem (também este desejo como o amor celeste de Platão, pode tender para um bem absolutamente espiritual), philia, que é amizade enquanto amor às pessoas, considerando precisamente a pessoa, desinteressadamente; agape, que indica a estima ou a preferência, mais do que o apego passional ou a união entre pessoas. O latim distinguirá da mesma maneira entre amor (com sentido indefinido, mas passional), amicitia, que implica reciprocidade e comunhão, dilectio, que é sobretudo complacência num ser, e caritas, que é todo o amor generoso” (cf. ibidem, p.63-64).

Não estranhemos estas distinções. Em grego ou latim e mesmo traduzidas, indicam-nos, afinal, que o amor humano é “humanizável”, enquanto cresce para realizações  cada vez mais altas da gratuidade, onde nos tornamos menos dependentes do imediatismo do desejo e da satisfação e, por isso mesmo, mais livres e distintos do reino da necessidade pura ou brutal. Quer dizer, mais humanos.

Aqui chegando, sem deixarmos a humanidade, porque o exemplo de Cristo é tudo o que há de mais humano e humanizador, reparemos como apurou ele a reflexão anterior de filósofos e sábios: “É bem notável – prossegue Bouyer – que os escritos bíblicos, e nisto o Novo testamento segue a tradução grega do Antigo chamada dos Setenta, empregaram agape (e mais tarde as versões latinas caritas) para designar, seja o amor de Deus para com os homens, seja o que Ele quer suscitar em nós mesmos (tanto em relação a Ele como em relação aos irmãos), ainda que este termo seja o menos elaborado (e empregue) pela reflexão filosófica” (cf. ibidem, p. 64). Entenda-se: a reflexão pagã exerce-se sobre o que vive, ainda que no seu melhor. A potenciação que a revelação de Deus traz à realidade humana, sobretudo nos sentimentos e nos gestos de Cristo, leva-a tão longe que as palavras têm de ultrapassar o seu ineditismo e quase reinventar-se: mais do que eros, mais do que philia, agape; mais do que amicitia, mais do que dilectio, caritas.

Não se abandona o humano, realiza-se inteiramente na gratuidade do amor: “O amor-caridade não suprimirá, nem combaterá de modo algum as nossas afeições particulares, desde que sejam sãs, isto é, que respeitem a ordem fundamental da caridade; mas transfigurá-las-á, ainda que tal transfiguração possa exigir muitos sacrifícios dolorosos” (cf. ibidem, p. 70).

Envolvendo inteligência e vontade no sentido do dom, o amor aparece como o mais humano e humanizador dos sentimentos. Inteligência que constata, afinal, a realização humana na partilha mútua e apenas nela. Ou assim dito: “É o mais nobre sentimento de que é capaz um ser racional. Não se reduz à mera simpatia romântica, e muito menos à atracção sexual. Consiste, essencialmente, em querer o bem do outro, empenhando nesta vontade o próprio ser. Por outras palavras, é, essencialmente, o dom do próprio ser para promover o maior bem do outro. Assim, ele é fundamentalmente desinteressado, representando a maior vitória sobre o egoísmo. Na reciprocidade do dom total se realiza a plenitude do amor” (Fernando Bastos de Ávila – Pequena Enciclopédia de Doutrina Social da Igreja. São Paulo: Loyola, 1991, p. 23).

Quando, há quatro décadas, o Concílio Vaticano II desenvolveu a sua reflexão sobre este ponto, teve constantemente em conta a base humana do amor e das relações inter-pessoais, não para as esquecer ao falar do amor divino, mas para relacionar os dois em termos de verdade do Criador espelhada nas suas criaturas. Deus é comunhão, o homem é comunhão e só assim se realiza: “Deus não criou o homem sozinho; desde o princípio criou-os ‘varão e mulher’ (Gn. 1, 27); e a sua união constitui a primeira forma de comunhão entre pessoas. Pois o homem, por sua própria natureza, é um ser social, que não pode viver nem desenvolver as suas qualidades sem entrar em relação com os outros” (Gaudium et Spes, nº 12).

E tanto assim é que o amor interpessoal se transforma em critério geral para aferir do verdadeiro progresso da sociedade e do mundo. Pode acelerar-se muitíssimo o desenvolvimento e o ritmo da tecnologia e da vida. Podem multiplicar-se constantemente contactos e conexões. Se tal não viabilizar a real comunhão interpessoal, é insignificante para a verdadeira realização da humanidade de todos e cada um. Já assim se escrevia há quatro décadas: “Entre os principais aspectos do mundo actual conta-se a multiplicação das relações entre os homens, cujo desenvolvimento é muito favorecido pelos progressos técnicos hodiernos. Todavia, o diálogo fraterno entre os homens não se realiza ao nível destes progressos, mas ao nível mais profundo da comunidade de pessoas, a qual exige o mútuo respeito da sua dignidade espiritual. A revelação cristã oferece poderosamente esta comunhão entre as pessoas, ao mesmo tempo que nos leva a uma compreensão mais profunda das leis da vida social que o Criador inscreveu na natureza espiritual e moral do homem” (Gaudium et Spes, nº 23).

Mas se quisermos, para terminar, encontrar o âmago da reflexão conciliar sobre este ponto, achá-lo-emos decerto no número 24 da Constituição pastoral sobre a Igreja no mundo contemporâneo. Onde se diz, concretamente, que a unidade entre os homens reflecte a unidade entre as Pessoas divinas, encontrando aí não só um projecto de vida mas a sua própria finalidade. Comunhão activada e possibilitada apenas na mútua entrega de cada um ao Outro e aos outros. No próprio Deus assim (sobre)acontece, na doação inteira e recíproca do Pai ao Filho no Espírito. Só assim também, analogamente, a humanidade realiza em si mesma a semelhança divina. Diz-se deste modo, na linguagem conciliar: “Quando o Senhor Jesus pede ao Pai ‘que todos sejam um…, como nós somos um’ (Jo. 17, 21-22), sugere – abrindo perspectivas inacessíveis à razão humana – que há uma certa analogia entre a união das pessoas divinas entre si e a união dos filhos de Deus na verdade e na caridade. Esta semelhança torna manifesto que o homem, única criatura sobre a terra a ser querida por Deus por si mesma, não se pode encontrar plenamente a não ser no sincero dom de si mesmo”.

Um dos bispos que subscreveu inteiramente este trecho conciliar, em 1965, foi eleito Papa treze anos depois, com o nome de João Paulo II. E se quisermos encontrar uma ideia permanente e inspiradora de todas as suas tomadas de posição sobre o homem, a família e a sociedade, achá-la-emos precisamente aqui, no que ele chama a “lei da oferta” de si próprio, como base imprescindível para que, em qualquer vinculação humana, nos reconheçamos como pessoas e nos realizemos na comunhão. É uma das suas citações mais recorrentes, explícita ou implicitamente: “o homem não se pode encontrar plenamente a não ser no sincero dom de si mesmo”.

E, uma vez que este Congresso se vai debruçar em concreto sobre a sexualidade e a família, cabe ainda a citação do número 11 da Exortação apostólica de João Paulo II Familiaris Consortio, de 22 de Novembro de 1981: “Deus é amor e vive em si mesmo um mistério de comunhão pessoal de amor. Criando-a à sua imagem e conservando-a continuamente no ser, Deus inscreve na humanidade do homem e da mulher a vocação e, por conseguinte, a capacidade e a responsabilidade do amor e da comunhão. O amor é, por isso, a vocação fundamental e originária do ser humano. Enquanto espírito encarnado, isto é, alma que se exprime no corpo informado por um espírito imortal, o homem é chamado ao amor nesta sua totalidade unificada. O amor abraça também o corpo humano e o corpo torna-se participante do amor espiritual”. Assim sendo e em coerência necessária, a sexualidade realiza de modo específico a verdade do amor humano como doação mútua e inteira de duas pessoas. E só assim, prossegue o mesmo número: “A sexualidade, mediante a qual o homem e a mulher se dão um ao outro com os actos próprios e exclusivos dos esposos, de maneira nenhuma é algo puramente biológico, mas diz respeito ao núcleo mais íntimo da pessoa humana como tal. Ela só se realiza de maneira verdadeiramente humana, se é parte integral do amor com o qual homem e mulher se comprometem totalmente um para com o outro até à morte. A doação física seria falsa se não fosse sinal e fruto da doação pessoal total, na qual toda a pessoa, mesmo na sua dimensão temporal, está presente: se a pessoa se reservasse alguma coisa ou a possibilidade de decidir de modo diferente para o futuro, só por isto já não se estaria a dar totalmente”.

Num ambiente cultural tão fragmentado como o nosso, frases destas podem dissonar. Acontece, realmente. E, no entanto, a sua coerência contrasta com a aludida fragmentação de sentimentos e vidas, que muito menos nos satisfaz e convence. A verdade total sobre o amor humano que o Papa Wojtyla tem anunciado, na esteira dos textos conciliares que ajudou a escrever, não pode deixar de ser exigente, uma vez que nos desinstala de qualquer patamar incipiente ou esporádico do ser. É da verdade que se trata. Da verdade da pessoa humana, que, à semelhança das Pessoas divinas, só se encontrará no dom total de si mesma: a alma no corpo, o instante na permanência.

 
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