A “festa” é uma das mais profundas dimensões antropológicas, porque expressa a autoconsciência comunitária de se estar em harmonia consigo, com os outros, com a natureza, com o sagrado. Não é possível antevermos a promessa do renascer dos dias longos e luminosos do solstício de dezembro sem que isso se exprima em festa; não é possível assistir à força de vida que brota dos campos no equinócio de março sem que ela se exprima em festa! E irrompe em expressões materiais e culturais de excelência: no vestir, no comer, na música, na dança, nos ritos familiares, sociais, religiosos. E porque se trata de harmonia, implica uma totalidade: uma consciência pacificada, uma gratidão prestada, uma esperança realimentada, uma con-fraternização transparente. Por isso, a festa é, ela própria, catártica! Puxa-nos para a purificação, para a reconciliação, para o perdão. Lava-nos a alma! Em termos cristãos, a festa é sempre um sinal de que o Reino é possível.
Olhar a nossa diocese a esta luz é, em si mesmo, enchermo-nos de grinaldas festivas por dentro, porque reconhecemos nela uma antiga, contínua e abrangente cultura de “festa”, só possível de alimentar por aquele sentimento de harmonia. Como não recordar a Senhora do Pranto de Dornes, a Senhora das Preces de Aldeia-das-Dez, a Senhora da Piedade da Lousã ou a Senhora da Guia do Avelar?! Como não recordar o S. João da Figueira da Foz, da Lousã, de Figueiró dos Vinhos, S. Pedro de Buarcos e de toda a costa marítima, S. Tomé em Mira, S. Mateus em Soure, S. Miguel em Penela, S. Sebastião em Miranda, a Senhora de Vagos em Cantanhede e o Santo António da Neve, a Santa Quitéria, a Senhora do Montalto, a Senhora do Círculo, o Senhor do Mundo?! E todas as romarias?! E todas as festas das vilas e aldeias?!
Onde falta a festa adivinha-se uma comunidade debilitada por algum tipo de desarmonia profunda. Ou, então, disfarça-se a desarmonia com máscaras de festa. E a verdade é que profundas ruturas demográficas e culturais estão a criar entre nós um tempo de desarmonias profundas, que se refletem nas próprias festas tradicionais, com importação de elementos estranhos às culturas locais, com os atos religiosos reduzidos a folclore, às vezes com elementaríssimas faltas de respeito pelas pessoas, tempos e símbolos. Mesmo assim, é forçoso admitir que a persistência da “festa popular” evidencia a persistência desse desejo de harmonia, de totalidade. Dessa possibilidade catártica. Também aqui é preciso lermos o permanente naquilo que é transitório. E potenciá-lo! Pesem todas as dificuldades, a festa continua a ser expressão e oportunidade para a construção da harmonia comunitária.
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