ESPIRITUALIDADE E FRATERNIDADE PRESBITERAL
DOCUMENTO ELABORADO E APROVADO PELO
CONSELHO PRESBITERAL DA DIOCESE DE COIMBRA
PALAVRA INTRODUTÓRIA DO BISPO
O Presbitério constitui o corpo de mais diretos colaboradores do bispo em ordem à realização da sua missão de pastor. Unidos na mesma comunhão, formam o corpo dos que foram associados a Jesus Cristo, o Bom Pastor, que dá a vida pelas suas ovelhas.
O Povo de Deus ama os seus presbíteros e deseja ver neles a imagem de Jesus. Também eles amam o povo que foi confiado à sua solicitude pastoral, assumem a vocação a que foram chamados e procuram de coração simples e sincero estar totalmente devotados à missão.
Damos graças a Deus pelos presbíteros que deu à nossa Igreja Diocesana de Coimbra, rezamos por eles e manifestamos a nossa plena disponibilidade para, com eles, tornarmos a Igreja mais bela, mais fiel e mais luminoso sacramento de salvação.
Ao tomar a iniciativa de fazer um estudo sobre as potencialidades e dificuldades que os sacerdotes encontram no seu percurso de fé, o Conselho Presbiteral da nossa Diocese deu um sinal inequívoco da disponibilidade e do desejo que todos têm de caminhar para a santidade no estado de vida em que se encontram. Foi um trabalho longo, refletido e rezado, que culminou neste documento simples, mas aberto e desafiador.
“Espiritualidade e Fraternidade Presbiteral” é um título que vai ao âmago da vida dos sacerdotes. Esperamos que, ao tomarmos consciência dos seis horizontes configuradores de uma renovação, sintamos que há muito caminho a fazer, na docilidade ao Espírito Santo e amparando-nos mutuamente como fazem os bons membros de uma família.
Pude já passar pelas reuniões do clero de cada um dos arciprestados onde apresentei brevemente este tema e este documento e onde deixei o desafio de se dar continuidade a este projeto. Ofereço-o, agora, publicamente a toda a Diocese, na esperança de que colaboremos uns com os outros e sejamos bons irmãos e bons amigos em todos os momentos. Da renovação do clero e do seu bem-estar espiritual e fraterno depende muito do que é o rosto da Igreja e da sua presença no meio do mundo que Deus ama e quer salvar por meio do anúncio do Evangelho.
Confiamo-nos alegremente à proteção da Virgem Santa Maria, Mãe da Igreja e Mãe dos seus sacerdotes.
Virgílio do Nascimento Antunes
Bispo de Coimbra
I . CONSIDERAÇÕES PRÉVIAS ACERCA DA ELABORAÇÃO DESTE DOCUMENTO
O texto que se segue surge no âmbito do Conselho Presbiteral, a partir do questionário feito aos presbíteros, diáconos permanentes e leigos mais comprometidos da Diocese de Coimbra.
Deste processo sublinha-se a importância da dimensão da sinodalidade e da escuta que presidiu ao espírito dos questionários, reforçando assim o esforço de que os documentos do conselho presbiteral não sejam tão abstratos nem tão desligados da realidade diocesana.
Sendo um documento sobre a vida dos presbíteros foi particularmente interessante partir da escuta não só dos próprios como também dos diáconos permanentes e dos leigos. Desta consulta considerou-se como mais positivo a amplitude das respostas que permitiram ver realidades e sensibilidades muito diferentes. Muitas destas revelaram uma grande transparência e verdade acerca da vida e da espiritualidade, nas suas alegrias e fragilidades.
Como limite desta escuta assinalam-se vários aspetos: o número reduzido de respostas (33 padres; 10 diáconos permanentes e 38 leigos); a diminuta participação (que pode ter decorrido de algumas falhas na divulgação, mas principalmente da desvalorização do próprio questionário); a não distinção das respostas dos diáconos no conjunto das respostas dos leigos; e o facto de não termos escutado pessoas fora dos nossos ciclos intraeclesiais.
O objetivo final desta consulta é procurar constituir algumas linhas orientadoras que reforcem as alegrias já celebradas e enfrente as dificuldades sentidas no presbitério da nossa Diocese, num equilíbrio entre a realidade constatada e o que a Igreja propõe.
O presente documento será entregue ao nosso Bispo que, se julgar oportuno, pode dirigir a todo o povo de Deus, numa perspetiva eclesial de missão e evangelização, para que em conjunto possamos encontrar linhas orientadoras capazes de estimular uma renovação, sempre necessária, da vida, da espiritualidade e da fraternidade presbiteral.
II . SEIS HORIZONTES CONFIGURADORES DE UMA RENOVAÇÃO
1. A vivência dos sacramentos - sua importância no serviço e na espiritualidade
A vivência dos sacramentos é um elemento estruturante da vida e da espiritualidade do presbítero. É aí que experimentamos o mais profundo do sentido da nossa vocação e da nossa entrega. Através dos sacramentos percebemos mais claramente o quanto somos instrumentos da graça de Deus.
Recorda o Papa Francisco: “Eu sou uma missão nesta terra, e para isso estou neste mundo. É preciso considerarmo-nos como que marcados a fogo por esta missão de iluminar, abençoar, vivificar, levantar, curar, libertar” (Evangelii Gaudium, 273).
Apesar disso, não podemos deixar de referir que na ação pastoral se sente um grande desgaste associado ao pedido dos sacramentos, mais a partir do ritualismo e da tradição, do que de uma vivência consciente da fé.
Desafio
Aqui é preciso que o presbítero tenha em atenção o equilíbrio, o discernimento e a necessária organização e programação para não ceder a todas as expetativas e vontades que não valorizem a vivência profunda e eclesial dos sacramentos.
2. Meios para promover a vida espiritual
A vida espiritual dos presbíteros é alimentada pela fidelidade à Eucaristia, à Liturgia das Horas, à oração pessoal, à Lectio Divina, à meditação, às leituras espirituais, ao acompanhamento pastoral e espiritual e à reconciliação.
No entanto, não podemos ignorar o cansaço, a falta de tempo, a dispersão da vida pastoral, a dificuldade em disciplinar a vida diária, o isolamento de cada um… que dificultam a vivência profunda e ajustada da espiritualidade presbiteral.
Mas, como reforça o Papa Francisco, “não desanimes, porque tens a força do Espírito Santo para tornar possível a santidade e, no fundo, esta é o fruto do Espírito Santo na tua vida” (Gaudate et Exsultate, 15).
Desafio
É fundamental e essencial considerar o exercício do ministério como o lugar do crescimento espiritual e a importância da oração para a identidade e a fecundidade da missão.
O que fazemos e anunciamos revela muito da densidade com que vivemos a nossa vocação e a oração é a força que suporta toda a missão. Lembrando que, “a oração é preciosa, se alimenta uma doação diária de amor (...) e quando deixamos que o dom ali recebido se manifeste na dedicação aos irmãos” (Gaudate et Exsultate, 104).
3. A vivência da afetividade
Na dimensão afetiva importa valorizar a relação com a comunidade, a família, amigos e presbíteros mais próximos enquanto fator de equilíbrio e estruturante da vida de cada um. O que somos decorre muito do amor recebido e da capacidade de amar aqueles que Deus coloca no nosso caminho.
Contudo, muitos presbíteros sentem a solidão, o isolamento, o excesso de trabalho e a falta de comunhão com outros colegas. Esta dura realidade é fator de insegurança afetiva, instabilidade emocional e desânimo pastoral.
De facto, tal como no homem ferido da parábola do bom samaritano, também nós nos podemos sentir ‘atirados para a margem da estrada’ e ‘abandonados pelas nossas instituições’ (cf. Fratelli Tutti, 76), no entanto, as dificuldades que parecem enormes podem ser oportunidades para crescer e não a desculpa para a tristeza inconsequente (cf. Fratelli Tutti, 78).
Desafio
Importa, deste modo, que se cuide da maturidade afetiva valorizando a amizade, especialmente entre os presbíteros, integrando alguma reflexão e formação específica, e reforçando a relação com a própria família e com as famílias das nossas comunidades.
4. O presbítero e a comunidade cristã
É na comunidade cristã que o presbítero experimenta as maiores alegrias e a razão primeira da sua vocação e missão. Foi numa comunidade cristã que cada presbítero nasceu para a fé e descobriu a sua vocação e é para a edificação da comunidade cristã que orienta a sua entrega e o seu ministério.
Essa proximidade, expressa numa autêntica paternidade espiritual, é reforçada especialmente no atendimento e acompanhamento das pessoas, na direção espiritual e no sacramento da reconciliação, nas visitas aos doentes e aos lares, na vivência e partilha dos momentos importantes das famílias.
O próprio exercício do ministério, nas suas múltiplas atividades e iniciativas, é lugar de profunda realização, basta recordar o âmbito da catequese, dos jovens, dos casais, dos idosos, dos mais frágeis e dos movimentos.
No entanto, as expectativas da comunidade sobre os padres nem sempre atendem às capacidades dos mesmos, nem às circunstâncias pastorais reais, criando, muitas vezes, conflitos, angústias e incompreensões.
Hoje a vida dos presbíteros vê-se confrontada com a exigências de uma permanente disponibilidade, muito centrada no egoísmo e no ‘consumismo’ religioso feito à medida de cada um.
Contextualizados num processo de descristianização profunda, os padres sentem a indiferença em relação ao religioso e, muitas vezes, acabam vistos apenas como funcionários.
Desafio
Por tudo isto, deve-se valorizar o acolhimento pastoral, o atendimento paroquial e as relações socias, como espaço de encontro, não tanto burocrático, mas essencialmente lugar de evangelização. Deve-se considerar a importância destes momentos para um efetivo acompanhamento espiritual.
5. Relações no presbitério
As maiores alegrias no presbitério encontram-se na fraternidade e comunhão, na generosidade e partilha, nos irmãos que concorrem no amor recíproco, na consciência de serem os primeiros colaboradores do Bispo, que é essencialmente Pai, Pastor e irmão mais velho.
Apesar disso, não deixa de ser verdade que o presbitério é visto como uma realidade complexa e diversificada, tantas vezes marcado pela falta de união e pelo individualismo.
Como nos recorda o Papa Bento XVI “a sociedade cada vez mais globalizada torna-nos vizinhos, mas não nos faz irmãos” (Caritas in Veritate, 19). Neste sentido, o Papa Francisco sublinha que “ninguém amadurece nem alcança a sua plenitude isolando-se” (Fratelli Tutti, 95).
Desafio
Procure-se, deste modo, por um lado, uma verdadeira cooperação pastoral dentro do presbitério, tanto ao nível da unidade pastoral, como do arciprestado e da diocese; por outro, acolher as múltiplas propostas existentes no âmbito da formação permanente (como as jornadas de pastoral, as recoleções, o retiro anual, a assembleia do clero), as reuniões do arciprestado e os encontros informais.
6. Tensão entre o desafio evangelizador e as tarefas administrativas
A evangelização é a prioridade da missão da Igreja e o próprio exercício do ministério concorre para esta finalidade. Como nos recorda o Papa Francisco: “A evangelização é dever da Igreja. Este sujeito da evangelização, porém, é mais do que uma instituição orgânica e hierárquica; é, antes de tudo, um povo que peregrina para Deus” (Evangelli Gaudium, 111).
No entanto, todos temos a consciência do grande peso que têm as tarefas administrativas e que, por isso, nem sempre é fácil concretizar essa prioridade. Por vezes, a ocupação demasiada nas tarefas administrativas surge como escape quando a vida pastoral não preenche afetivamente a pessoa.
Na verdade, “quando a Igreja faz apelo ao compromisso evangelizador, não faz mais do que indicar aos cristãos o verdadeiro dinamismo da realização pessoal: ‘Aqui descobrimos outra profunda lei da realidade: A vida alcança-se e amadurece à medida que é entregue para dar vida aos outros’. Isto é, definitivamente, a missão” (Evangelii Gaudium, 10).
Desafio
Por isso, importa que cada presbítero, consciente desta missão prioritária da Igreja, se empenhe confiadamente no primeiro anúncio e evangelização, envolvendo cada vez mais os diáconos permanentes e os leigos, corresponsabilizando-os na organização das diferentes realidades pastorais, para que as comunidades sejam mais missionárias.
“Cada cristão é missionário na medida em que se encontrou com o amor de Deus em Cristo Jesus; não digamos mais que somos «discípulos» e «missionários», mas sempre que somos «discípulos missionários»” (Evangelii Gaudium, 120).
III . CONCLUSÃO
Deixamo-nos inspirar com as palavras do Papa Francisco: “sempre que procuramos voltar à fonte e recuperar o frescor original do Evangelho, despontam novas estradas, métodos criativos, outras formas de expressão, sinais mais eloquentes, palavras cheias de renovado significado para o mundo atual” (Evangelii Gaudium, 11).
Na verdade, estes ‘seis horizontes configuradores de uma renovação’ pretendem ser um estímulo e um caminho privilegiado para a vivência alegre e equilibrada da vocação presbiteral, estruturada mais a partir do ser do que do fazer.
“Atreve-te a ser mais, porque o teu ser é mais importante do que qualquer outra coisa. (...) Podes chegar a ser aquilo que Deus, teu Criador, sabe que tu és, se reconheceres que és, chamado a muito. Invoca o Espírito Santo e caminha com confiança até à grande meta: a santidade. Assim não serás uma fotocópia. Serás plenamente tu próprio” (Christus Vivit, 107).
Texto aprovado na Reunião do Conselho Presbiteral de 18 de Março de 2021