1. ESPÍRITO, IGREJA E MISSÃO EVANGELIZADORA
Quando começou o Concílio Vaticano II, o Papa João XXIII pediu um novo Pentecostes na Igreja. Estava deste modo a inserir-se dentro da linha do livro dos Actos dos Apóstolos que atribuiu ao Pentecostes a dinâmica inicial da Igreja e também o seu crescimento e renovação constante.
É sobretudo nos escritos de S. Lucas, o evangelho e os Atos dos Apóstolos, que encontramos os relatos da experiência do Espírito que viveram as primeiras comunidades cristãs. Com os relatos dos Atos dos Apóstolos, Lucas pretende demonstrar aos seus leitores a verdade de tudo o que Jesus ensinou e que ele tinha apresentado no seu evangelho: o seu poder de viver e de renovar todas as coisas.
Apresentando o que se passava nas novas comunidades cristãs e o crescimento acelerado do número de crentes, Lucas assegura que se deve ao facto de Jesus ter estado durante toda a Sua vida terrena sob a ação do Espírito Santo e assegura que eram verdadeiras todas as promessas feitas por Ele aos discípulos.
Para Lucas, a experiência que fazem os primeiros cristãos é a experiência do Espírito de Jesus presente na comunidade a que pertenciam. Eles sentem-se numa continuação normal daquilo que Jesus tinha vivido. No tempo de Jesus eram as ações salvíficas visíveis e realizadas diretamente por Ele; agora, no tempo da Igreja, as mesmas ações salvíficas são realizadas pelo Espírito que trabalha invisivelmente como alma da Igreja.
O Espírito que habita a Igreja e a faz crescer é o Espírito de Jesus, de tal maneira que faz repetir os gestos de Jesus, anunciar a palavra de Jesus, louvar o Pai com a oração de Jesus, continuar a ação de graças de Jesus através da fracção do pão e alimentar a comunhão entre os discípulos para que se mantenham unidos uns aos outros como estavam unidos à volta de Jesus enquanto estava com eles.
O Espírito realiza verdadeiras maravilhas na Igreja nascente e fá-la sobreviver a toda a espécie de dificuldades, dúvidas e mesmo perseguições que provêm de todos os lados. Se ela cresce e se fortifica cada dia, sob a orientação dos Apóstolos, não é devido a factores puramente humanos, mas devido ao elemento sobrenatural que a anima. Como qualquer sociedade humana estaria condenada a viver por um determinado período de tempo e a esperar depois a desagregação. A sua sobrevivência tão longa é um dos sinais da sua realidade humana e divina; pecadora, porque constituída por homens e mulheres pecadores, mas santa, porque santificada continuamente por Cristo, através da força santificadora do Espírito.
A Igreja, continuadora da atividade e obra de Jesus Cristo no mundo, recebeu a sua missão do Ressuscitado. Com a ascensão inaugurou-se um tempo novo - terminou o tempo da presença visível de Cristo e foi inaugurado o tempo do Espírito e da Igreja. O próprio Cristo confiou à Sua Igreja a mesma missão universal que tinha recebido do Pai: anunciar a Boa-Nova da Salvação a todos os povos.
Os evangelhos realçam esta missão confiada por Jesus aos discípulos, no contexto das aparições após a ressurreição. Aqueles que são revestidos da força do alto não podem mais ficar tranquilos em suas casas, mas têm de corresponder aos imperativos da missão que lhes foi confiada. Na verdade, é deste anúncio e desta missão que está dependente a chegada da Salvação oferecida por Deus a todos os povos.
É importante notar que o envio que Jesus faz está precedido pelo dom do Espírito Santo, que será a força interior para a realização da missão que é confiada:
- No evangelho de S. João aparece o gesto sacramental do sopro como forma de transmissão do poder do Espírito Santo (Jo 20, 21-22).
- No evangelho de Lucas surge a declaração de que o Espírito será concedido para o testemunho após a ascensão (Lc 24, 48-49).
- Nos Atos dos Apóstolos, depois de ordenar aos discípulos que esperassem em Jerusalém até chegar o "Prometido do Pai" (Act 1, 4), Jesus promete-lhes a força do Espírito Santo para que sejam Suas testemunhas até aos confins do mundo (Act 1, 8).
A partir daqueles acontecimentos, tornam-se inseparáveis duas realidades: o Espírito Santo e a missão da Igreja. A Igreja permanece em estado de missão que se prolonga por todos os tempos, de tal maneira que a evangelização faz parte integrante da sua identidade. Não se entenderia uma Igreja que não fosse evangelizadora, isto é, que não continuasse a apontar aos homens de todos os tempos a mesma Boa-Nova salvadora de sempre.
O trabalho evangelizador, implica sempre uma assistência do Espírito Santo. Tanto o que anuncia como o que recebe a Boa-Nova precisam de abrir-se ao Espírito, o único capaz de fazer penetrar Cristo nos corações humanos e de provocar a conversão como condição indispensável.
- OBSTÁCULOS INTERNOS PARA A EVANGELIZAÇÃO
O maior obstáculo à evangelização é a falta de fé em Jesus Cristo, na Igreja e no mistério da salvação.
Em primeiro lugar, constatamos uma deficiente abordagem da figura de Jesus Cristo. Os cristãos deixaram-se imbuir da mentalidade comum segundo a qual Ele é uma figura histórica de cuja existência se não duvida, um homem excecional no modo de viver, falar e agir, alguém que levou o amor até às últimas consequências. Como tal é protagonista de uma sabedoria porventura impossível de ultrapassar, capaz de conduzir por estradas seguras a vida da humanidade, fonte de inspiração para todos os homens de boa-vontade. Fica frequentemente na sombra a sua condição divina.
Em segundo lugar, deu-se uma grave mudança no modo como os cristãos entendem a Igreja. A compreensão da Igreja é, em grande parte, de caráter sociológico: uma instituição humana, uma comunidade de pessoas, ao serviço da construção da sociedade humana na verdade, na justiça e no amor. Falta frequentemente a fé na dimensão sobrenatural, na sua realidade de Corpo de Cristo, Templo do Espírito Santo, Sacramento Universal de Salvação.
Em terceiro lugar, o conteúdo que se dá à palavra salvação ou redenção, passou a ser muito mais humano e terreno. Salvação significa para muitos cristãos ser feliz e realizar-se enquanto pessoa humana dentro dos horizontes espácio-temporais em que nos encontramos.
O empenho na missão evangelizadora da Igreja está acima de tudo dependente do modo como se encaram estas realidades fundamentais da fé cristã. Sentir que Jesus Cristo é Deus e Homem, que a Igreja é Corpo de Cristo e Sacramento Universal de Salvação e que a salvação do homem é questão de vida ou de morte dá origem a atitudes muito mais radicais.
Convém recordar a este propósito as palavras do Papa Paulo VI, na Evangelii Nuntiandi, no nº 9, quando centra toda a evangelização no anúncio da Boa Nova da salvação: “Como núcleo e centro da sua Boa Nova, Cristo anuncia a salvação, esse grande dom de Deus que é libertação de tudo aquilo que oprime o homem, e que é libertação sobretudo do pecado e do maligno, na alegria de conhecer a Deus e de ser por ele conhecido, de o ver e de se entregar a ele” (EN 9).
Recordamos também o envio dos setenta e dois discípulos na versão de S. Lucas, 10. Do anúncio feito pelos discípulos está dependente a salvação, é questão de vida ou de morte. O evangelista insiste que os discípulos não podem demorar-se pelo caminho, nem nas casas, é preciso ir depressa, pois todo o tempo perdido com coisas secundárias significa perda de oportunidades de anúncio da salvação, que vem pela fé e pelo conhecimento de Jesus Cristo, o único Salvador.
Quem está hoje convencido que Cristo é o único Salvador, que a Igreja é o Sacramento Universal da Salvação e que na questão da salvação se joga a vida ou a morte?
Não se pensará a evangelização como um anúncio que está simplesmente ao serviço da realização e da felicidade do ser humano?
Não será Jesus Cristo e o Evangelho um caminho de vida entre muitos outros?
3. OBSTÁCULOS EXTERNOS PARA A EVANGELIZAÇÃO
O primeiro grande obstáculo a vencer quando se fala do trabalho de evangelização no mundo moderno é o do secularismo. Depois de um processo acelerado de secularização, em que a humanidade começou a viver como se Deus não existisse, a sociedade ocidental caiu no secularismo, enquanto desinteresse pela religião cristã. Afirma-se, agora, com a maior naturalidade, que a religião cristã é algo do foro pessoal e privado, que não tem nada a dizer quando se trata do âmbito público ou social.
No fundo, relegou-se a dimensão religiosa da vida para um âmbito de tal modo restrito, que se tornou marginal. O homem centrou em si mesmo toda a realidade e Deus tornou-se uma hipótese, ora a ignorar, ora a evitar ou mesmo a eliminar.
Neste contexto em que o homem se fecha sobre si mesmo, iludido com a possibilidade de ser senhor da vida e da morte, do seu presente e do seu futuro, não há abertura ao anúncio de uma realidade que esteja para além destes limites.
No início da Bíblia, após a transgressão, em Gn 3, 9, Deus chama o homem dizendo: “onde estás?” É que o homem tinha-se subtraído ao olhar de Deus. A partir dali muitas outras vezes a Bíblia nos apresenta Deus a procurar o homem e a dirigir-se a ele, a chamá-lo, como acontece com Abraão, com Moisés, com os profetas. São imagens para falar dessa procura contínua que Deus faz do homem, com o intuito de se encontrar com ele e de criar uma relação de aliança e de amizade libertadora.
A Bíblia vai informando sempre que esse encontro se dá, há um chamamento ao qual se segue um anúncio, uma experiência de vida em comum e um envio.
Segundo o modelo bíblico, quando Deus chama, ouve uma resposta, encontra um interlocutor, pois supõe-se um povo que está na escravidão do Egito e que reconhece a sua situação de escravidão. Há um desejo de libertação e há uma abertura a uma salvação que vem de fora do homem.
Do mesmo modo, no Novo Testamento encontramos muitos textos que nos mostram uma grande apetência das pessoas para a procura de Deus e para o encontro com Ele. Os Evangelhos falam das multidões que procuram Jesus, que se aproximam d’Ele a ponto de quase o sufocarem e não lhe deixarem um momento livre na jornada.
De uma forma ou de outra, mesmo com exceções, esta foi a marca da sociedade ocidental e cristã até ao séc. XX. Uma enorme apetência para Deus, uma atitude de procura, um sentimento de necessidade d’Ele. Uma das grandes marcas do mundo atual consiste precisamente em ter perdido o sentido da necessidade de Deus. Vive-se como se Ele não existisse e não se sente a Sua falta.
Teoricamente todo o homem sente uma nostalgia de Deus, do infinito, do paraíso perdido, mas, na prática, no mundo contemporâneo isso não se faz notar.
Parece um dado da experiência que, o ser humano quando perde o sentido do transcendente e do sobrenatural, se fecha nos seus horizontes terrenos, se preocupa com as questões imediatas, procura resolver os seus problemas com os seus próprios meios humanos que considera ilimitados, pensa a salvação em termos materiais, não encontra lugar para Deus nem para a salvação que venha de fora.
Estamos num mundo cheio de problemas de toda a ordem, de desordens familiares e sociais; sentimos a crise de valores; reconhecemos que o homem caminha para a cultura da morte e cava abismos para si mesmo, mas desligamos tudo isto do sentido de Deus, não estabelecemos a relação entre a situação presente e a fuga de Deus.
Grandes pensadores da atualidade começaram, no entanto, a reconhecer que a falta da dimensão religiosa da vida e, concretamente, um certo declínio da cultura cristã ou da influência da fé na vida das pessoas é fator de instabilidade e de desestruturação das famílias e da sociedade.
O modelo bíblico do homem que procura a Deus e que se apoia na fé como resposta de vida, parece estar em crise. A grande dificuldade que a Igreja hoje enfrenta no momento de fazer o anúncio da fé, consiste em não encontrar terreno receptivo. Não se trata de um simples não querer aderir ao anúncio, trata-se de não sentir necessidade dele, de não perceber para que serve, o que resolve, que interesse tem.
Quando a salvação é algo que depende do homem, tem a ver exclusivamente com as condições de vida, saúde, alimentação, habitação, relações humanas... não se vê o interesse de introduzir um elemento externo que aponte noutro sentido, para horizontes sobrenaturais ou de eternidade. O factor Deus parece desnecessário.
Voltando à questão inicial do livro do Génesis, podemos dizer que, à pergunta que Deus dirige ao homem, “onde estás?”, se responde hoje simplesmente com o silêncio de quem não está interessado em dar qualquer resposta, pois não sente que abrir-se a essa realidade tenha qualquer interesse para solucionar seja o que for na sua vida.
As multidões já não andam atrás de Jesus, mas inclusivamente fazem o caminho inverso - tentam evitá-l’O - e vão por outro caminho, porque Ele oferece algo de que, pensam, não precisar: procuram a felicidade terrena e Ele oferece a vida eterna, procuram a solução dos problemas imediatos e Ele oferece a esperança no futuro, procuram uma vida mais fácil e Ele oferece um caminho de oferta e sacrifício de si mesmo como preço do amor. Não coincide a oferta com a procura.
Alguns grupos dentro do cristianismo e mesmo dentro da Igreja Católica, tentaram ir ao encontro das expectativas das pessoas e começaram a oferecer-lhes respostas imediatas para os seus problemas: milagres, curas, perspectivas de sucesso na família, no trabalho, nos negócios, e um sem número de soluções rápidas. Porventura de boa fé, caíram no logro de entrar na lógica do mundo atual e transformaram Deus na solução para tudo, no milagreiro ou no mágico.
A grande questão da evangelização nos dias de hoje começa por ajudar as pessoas a reconhecer que estão em situação de exílio, que não têm nas suas mãos a força da sua libertação, que a salvação ultrapassa os confins do espaço em que habitamos e do tempo em que vivemos.
4. GRANDES ÁREAS DE EVANGELIZAÇÃO
A CULTURA
Na Evangelii Niuntiandi, nº 21, o Papa Paulo VI afirma: “A ruptura entre o Evangelho e a cultura é sem dúvida o drama da nossa época, como o foi também de outras épocas. Assim, importa envidar todos os esforços no sentido de uma generosa evangelização da cultura, ou mais exatamente das culturas. Estas devem ser regeneradas mediante o impacto da Boa Nova. Mas um tal encontro não virá a dar-se se a Boa Nova não for proclamada”.
Por sua vez, Rino Fisichella, Presidente do Dicastério Romano para a Nova Evangelização, afirma: “A crise por que estamos a passar é antes de mais de ordem cultural e, sem demasiadas distinções, é também antropológica. O homem está em crise. Não é mais capaz de se encontrar a si mesmo após as lisonjas em que acreditou, sobretudo quando acreditou ter atingido a idade adulta e ser plenamente senhor de si e independente de toda a autoridade. A um homem cada vez mais colocado no centro de tudo, apoiado num recuperado narcisismo ofuscado durante decénios, incapaz de atingir a verdade porque privado dos fundamentos, faltaria um único escalão para ser inteiramente autónomo: o afastamento de Deus” (RINO FISICHELLA, A Nova Evangelização, Paulus, 2011, p 39-40).
A cultura constitui, por isso uma grande área em que a Igreja tem de investir neste processo de evangelização, apesar de todos os obstáculos e de todas as dificuldades.
Evangelizar a cultura é evangelizar o homem, pois ele é um ser cultural, como se depreende da definição apresentada pela Gaudium et Spes, no nº 53: “A palavra «cultura» indica, em geral, todas as coisas por meio das quais o homem apura e desenvolve as múltiplas capacidades do seu espírito e do seu corpo; se esforça por dominar, pelo estudo e pelo trabalho, o próprio mundo; torna mais humana, com o progresso dos costumes e das instituições, a vida social, quer na família quer na comunidade civil; e, finalmente, no decorrer do tempo, exprime, comunica aos outros e conserva nas suas obras, para que sejam de proveito a muitos e até à inteira humanidade, as suas grandes experiências espirituais e as suas aspirações”.
A fé cristã teve e tem capacidade para penetrar em todas as culturas, mesmo na moderna e pós-moderna, como ficou provado no passado, quando com o auxílio da cultura grega, os pensadores cristãos encontraram a linguagem adequada para levar o Evangelho ao mundo pagão e bárbaro.
A RELIGIÃO
Saímos de um mundo em que a maioria se definia como religiosa e, entre nós, católica. Reconhecemos, agora, que se tratava de uma religiosidade difusa e pouco informada pela fé cristã.
O desafio que enfrentamos é o de evangelizar as expressões religiosas ainda bem enraizadas na vida de muitas pessoas. Em grande parte trata-se de um conjunto de ritos religiosos, muitos deles com uma grande relevância social, mas de escasso significado no plano da fé. Passar de uma questão de tradição, social e cultural, para o plano da fé assumida, esclarecida, adulta, comprometida na comunidade cristã, é o desafio.
As próprias estruturas eclesiais estão, entre nós, confundidas com outras estruturas sociais. Pertencer à Igreja equivale frequentemente a pertencer a uma associação ou a um clube local, com as suas diversas valências culturais, de ação social, desportivas ou outras. Dar-lhes o sentido evangélico e crente é a tarefa a desenvolver.
Uma tendência muito difundida nas sociedades mais urbanas e culturalmente desenvolvidas vai no sentido inverso: perderam a dimensão religiosa institucional tradicional, não participam da vida da comunidade cristã, mas continuam a manter alguma forma de crença ou mesmo de fé. Trata-se de uma fé intimista, de âmbito exclusivamente privado, sem relevância social, sem dogmas, construída por cada um e fruto da seleção de elementos dispersos provenientes de diferentes mundos religiosos.
Neste caso, o processo de evangelização tem de ir no sentido de ajudar as pessoas a inserir-se na vida da comunidade cristã, no sentido de incentivar a uma prática regular e a um compromisso com os outros. O caminho será o do acolhimento, por um lado, e o da proposta de atividades variadas com as quais a pessoa se possa identificar e que a ajudem a dar o passo no sentido da integração.
A piedade popular constitui para muitos o último elo de ligação com a Igreja e com alguma manifestação objetiva de fé. Apesar de se não poder parar nesse tipo de manifestações, por serem geralmente muito superficiais, tradicionais ou ligadas aos sentimentos fugazes, pode pegar-se-lhe como lugar de encontro, como oportunidade para os passos seguintes, ou seja, para uma evangelização séria.
Trata-se, por isso, de evangelizar a religião, tanto no sentido restrito de religião cristã, como no sentido das práticas religiosas sem o substrato da fé e ainda no sentido mais lato das diferentes formas de sincretismo religioso.
A ÉTICA
A ausência de princípios morais objetivos constitui uma das áreas que deixa a humanidade mais vulnerável. Ao absolutizar-se a razão prescindiu-se do conteúdo da revelação e caiu-se num subjetivismo pernicioso.
Os princípios morais ficaram reféns das ideologias, das maiorias democráticas e do que a cada sociedade parece mais adequado em cada período da história.
Daqui nasce a urgência de um diálogo muito aberto e muito sério entre fé e razão, como duas dimensões convergentes e capazes de dar um contributo para uma ética razoável, que respeite a verdade do homem.
Este é um caminho difícil, que exige muita abertura para o diálogo, muita firmeza nas perspetivas, muita fidelidade à revelação e muita capacidade de persuasão pelas vias da razão.
Existe entre nós um outro problema ao nível ético: aquilo a que se chamou uma amoralidade prática, um desinteresse por tudo o que tenha a ver com moral. A pessoa fixa-se nas questões primárias da vida e deixa de valorar a realidade a partir de critérios éticos: a relação com os outros, o trabalho, a comida e a bebida, a sexualidade, o casamento e a família.
Esta forma de encarar a vida cria uma forte rejeição relativamente à fé cristã que tem conotações muito diretas com a moral e com os princípios éticos objetivos. Ainda mais porque o modo como frequentemente foi proposta revestiu-se dos tons do moralismo mais exacerbado e impiedoso. Mais do que uma fé, anunciou-se uma moral, um conjunto de normas e preceitos, acompanhados da respectiva sanção, a condenação depois da morte.
O caminho está agora em repropor a fé cristã como uma adesão interior, que traz consigo uma forma de encarar a vida em todas as suas dimensões, e é potenciadora de um projeto de realização.
5. PERSPETIVAS PASTORAIS
RENOVAÇÃO DAS COMUNIDADES CRISTÃS
O primeiro trabalho de nova evangelização realiza-se dentro das comunidades cristãs que somos. Por meio da liturgia, da oração, da catequese, da prática da caridade cristã, da intensificação das relações interpessoais, procura-se a criação de um núcleo forte de homens e mulheres imbuídos do sentido da fé acreditada, celebrada e vivida.
A renovação das comunidades cristãs só pode fazer-se por meio de um sério investimento na qualidade de tudo o que se faz na Igreja, com os meios humanos adequados, com elevado nível cultural e estético, e com uma profundidade marcante. De um modo particular a liturgia e a catequese são dois lugares cruciais deste processo. É também aí que são mais visíveis as falhas de qualidade, de profundidade, por falta de recursos humanos devidamente formados técnica, teológica e espiritualmente.
Dizer genericamente que a comunidade cristã, que é evangelizada é também evangelizadora, corresponde a pouco da realidade que temos. À maneira de Jesus na relação com os apóstolos e discípulos, é necessário investir num grupo alargado de discípulos, que acolham Jesus Cristo no coração, que dêm lugar ao Espírito e se disponham para a missão.
Uma comunidade cristã sem líderes, sem um núcleo de homens e mulheres bem formados na fé e na doutrina, sem paixão por Cristo, não progride.
Esse trabalho faz-se por meio de um primeiro anúncio forte, incisivo, dirigido à inteligência e ao coração, acompanhado de uma forte componente de relação humana, conduzido por cristãos bem formados e que sejam verdadeiras testemunhas da fé. É importante o recurso a alguns movimentos especialmente vocacionados para este trabalho e já com um método devidamente provado.
SENTIDO DE MISSÃO EM ORDEM AOS QUE ESTÃO FORA
No contexto em que nos encontramos em Portugal, é muito complexo determinar quem está dentro da Igreja e quem está fora. Há diversas formas de presença e diversos níveis de pertença. Se há quem acredite em Deus e se identifique com a Igreja sem as correspondentes manifestações exteriores e sociais, também há quem aparentemente esteja dentro, mas sem as convicções adequadas.
A franja dos que têm ainda alguma forma de ligação institucional, se identificam genericamente com os princípios da Igreja Católica e acreditam em Deus, mesmo que de forma difusa, é aquela que há-de merecer a maior atenção da comunidade cristã, enquanto agente da nova evangelização.
Na relação com todos estes é prioritário o acolhimento na comunidade cristã sempre que algum motivo os aproxima, tanto por ocasião da celebração dos sacramentos, como da catequese infantil, dos funerais ou de outros momentos marcantes do ponto de vista religioso e social. Em segundo lugar, é necessária a aproximação pessoal, o convite para a participação numa ou noutra atividade, num curso, num encontro ou mesmo nalguma missão mais de ordem prática.
As propostas sérias, exigentes, diretamente de caráter espiritual, têm mais probabilidade de sucesso do que as propostas genéricas, difusas, não explícitas.
Relativamente aos que se assumem fora da Igreja, sem fé, ateus ou agnósticos, há uma caminho de aproximação lento, paciente, persistente, aberto, sem acusações nem dogmatismos fáceis. Neste caso, somente o diálogo franco, elevado, sem rodeios poderá permitir uma aproximação, que perturbe e ponha em causa as seguranças.
CENTRALIDADE DE JESUS CRISTO
A nova evangelização é acima de tudo um novo entusiasmo no repropor Jesus Cristo a uma adesão pessoal pela fé, a uma intimidade espiritual pela oração, a uma identificação com a mensagem, a uma encarnação existencial e a um testemunho pela vida.
Todas as ações eclesiais contrárias a esta centralidade de Jesus Cristo põem em causa a nova evangelização. Resulta daí que a Igreja tem de refletir sobre o modo como está a agir e quais as motivações que tem.
É urgente uma purificação das motivações e um recentrar-se da Igreja na sua peculiaridade, que passa pelo conhecimento e anúncio da autêntica figura de Jesus Cristo, pela consciência do que é a Igreja no plano de Deus e pelo significado da salvação realizada por Jesus Cristo.
Coimbra, 8 de junho de 2012
Virgílio do Nascimento Antunes
Bispo de Coimbra