- JO 6: O PRINCÍPIO DA DISTRIBUIÇÃO
Escolhi começar esta breve reflexão acerca da “importância da dádiva quando sentimos que temos pouco para dar”, com um texto do capítulo 6 do Evangelho de S. João, extremamente elucidativo.
Jo 6: 5Erguendo o olhar e reparando que uma grande multidão viera ter com Ele, Jesus disse então a Filipe: «Onde havemos de comprar pão para esta gente comer?» (...).
Filipe respondeu-lhe: 7«Duzentos denários de pão não chegam para cada um comer um bocadinho.» 8Disse-lhe um dos seus discípulos, André, irmão de Simão Pedro: 9«Há aqui um rapazito que tem cinco pães de cevada e dois peixes. Mas que é isso para tanta gente?» 10Jesus disse: «Fazei sentar as pessoas.»
Ora, havia muita erva no local. Os homens sentaram-se, pois, em número de uns cinco mil. 11Então, Jesus tomou os pães e, tendo dado graças, distribuiu-os pelos que estavam sentados, tal como os peixes, e eles comeram quanto quiseram. 12Quando se saciaram, disse aos seus discípulos: «Recolhei os pedaços que sobraram, para que nada se perca». 13Recolheram-nos, então, e encheram doze cestos de pedaços dos cinco pães de cevada que sobejaram aos que tinham estado a comer.
Diante de uma multidão, que não tem de comer, surge a interrogação: «Onde havemos de comprar pão para esta gente comer?». Tendo em conta que “comer” se pode entender num sentido mais lato, ou seja, significa tudo o que o ser humano precisa para viver e viver feliz, esta é a pergunta fundamental: onde e como conseguir os recursos necessários para que todos possam viver?
Segundo o texto, imediatamente começam as contas e os malabarismos económico-financeiros, na tentativa de se encontrar na lógica da razão e dos números, uma solução para o complexo problema. Aparentemente é uma questão matemática de angariação de uma soma de dinheiro, acima dos duzentos denários, a fim de se comprar o pão que, apesar do quantitativo somente daria para cada um comer um bocadinho.
Esta solução é abandonada, não só porque é impossível naquele sítio ermo encontrar esse dinheiro, mas também porque ninguém fica saciado com um simples pedaço de pão.
Extrapolando para fora do texto e socorrendo-nos de uma exegese de tipo alegórico, podemos anotar os seguintes aspectos: o problema da falta de recursos ou da sua distribuição é muito complexo; a humanidade precisa de pão para a boca, mas precisa igualmente de alimento para o espírito, de afecto, relação; os frios números da matemática não têm capacidade senão para fazer chegar a cada pessoa um pequeno pedaço, que não sacia plenamente; o factor essencial para a resolução dos problemas humanos e sociais não é o dinheiro.
A segunda parte do texto do Evangelho de João fornece-nos alguns elementos, que nos fazem progredir na compreensão do problema segundo o paradigma bíblico. 9«Há aqui um rapazito que tem cinco pães de cevada e dois peixes.
Trata-se de “um rapazito” e, portanto, alguém insignificante, não somente pelo facto de ser criança, mas igualmente por ser referido com o auxílio de um diminutivo. É portador de algo igualmente insignificante: cinco pães de cevada e dois peixes. Reparemos, no entanto, que apesar da condição infantil, e portanto desprovida de valor nas sociedade antigas, é no rapazito que reside qualquer abertura à esperança. Reparemos ainda que cinco pães de cevada e dois peixes, parecendo nada para tanta gente, uma multidão depois calculada em número de uns cinco mil, é, de facto, uma autêntica riqueza no meio de um sítio ermo e de uma multidão completamente desprovida de tudo.
O texto, em ordem a uma maior expressividade, valoriza diversos contrastes e acentua a desproporção entre o problema e os meios aparentes para o resolver: o rapazito e os cinco mil homens adultos; os cinco pães e dois peixes e a multidão com fome; um rapazito com comida em excesso e uma multidão faminta e sem nada; tanta gente que não vê a solução para um problema e ela ali mesmo à mão.
Onde reside, afinal, a chave de solução para o problema?
Apesar de não existirem as somas de dinheiro necessárias para comprar o alimento suficiente, existe a matéria prima para matar a fome da multidão: pão e peixe. É preciso algo mais: o milagre da distribuição, e esse é fruto da conversão do coração e da mudança de atitude de vida.
Ninguém tem nada para dar enquanto não mudar de atitude de vida, enquanto olhar para si e não for capaz de ver os outros. O milagre da distribuição dos pães e dos peixes começou quando Jesus 5Erguendo o olhar e reparando que uma grande multidão viera ter com Ele, disse a Filipe: «Onde havemos de comprar pão para esta gente comer?».
Nessa altura, o que parece insignificante, alimenta a multidão a ponto de todos comerem quanto quiserem a ainda sobrarem doze cestos cheios.
2. DA PARÁBOLA DA DISTRIBUIÇÃO À COMPLEXIDADE DA SITUAÇÃO
O texto do Evangelho de João é aberto, funciona como paradigma e deixa-nos a possibilidade de ler a realidades mais complexas a partir dele. Concretamente, estamos num mundo marcado pelas assimetrias sociais, pelas diferentes formas de pobreza e pelas crises económicas e financeiras – estas são, pelo menos, as mais visíveis e palpáveis numa sociedade materialista e economicista.
A grande questão continua a ser a da justiça e a da prossecução de uma justa ordem social, que garanta a cada um a própria parte nos bens comuns, como ensina a Carta Encíclia de Bento XVI, Deus caritas est (DCE), nº 26. Essa é a tarefa do Estado e a finalidade da política, que não se reduz a “uma simples técnica para a definição dos ordenamentos públicos” (DCE 28). Tanto o Estado como a política estão ao serviço da justiça e esta tem uma dimensão ética, ou seja, fundamenta-se na razão e no direito natural, enquanto caminhos de descoberta do maior bem do homem.
Nesta tarefa a fé tem um lugar muito peculiar porque “nos abre novos horizontes muito para além do espaço próprio do razão”. A fé “serve de força libertadora para a própria razão (...) liberta-a das suas cegueiras. A fé possibilita à razão a melhor realização da sua missão e a visão mais clara do que lhe é próprio” (DCE 28). Ou, dito por outras palavras, a própria Igreja tem um contributo a dar: “oferecer, por meio da purificação da razão e através da formação ética, a sua contribuição para que as exigências da justiça se tornem compreensíveis e politicamente realizáveis” (DCE 28).
Todos sabemos que não é propriamente a justiça e a justa ordem social que garanta a cada um a própria parte nos bens comuns, que dominam os Estados ou a ação política. São muitos os interesses que a pervertem. Urge, por isso, um longo caminho no sentido da mudança de paradigmas económicos, financeiros, políticos, caminho impossível de realizar sem a chamada “purificação da razão” e o incremento da referida “formação ética”.
3. HAVERÁ LUGAR PARA A CARIDADE?
A situação que se vive no nosso país trouxe à ordem do dia a palavra caridade, também chamada ação social, campanhas de angariação de fundos e auxílio nas situações de pobreza. Percebe-se que há lugar para a caridade num sentido material, num mundo injusto para grande parte da população.
Haveria lugar para a caridade num mundo onde a justiça fosse uma realidade e onde cada um tivesse acesso à parte dos bens que lhe cabem? O Papa Bento XVI responde afirmativamente e diz que “o amor – caritas – será sempre necessário, mesmo na sociedade mais justa”. Depois, continua: “Não há qualquer ordenamento estatal justo que possa tornar supérfluo o serviço do amor. (...) Sempre haverá sofrimento a precisar de consolação e ajuda. Sempre haverá solidão. Existirão sempre situações de necessidade material, para as quais é indispensável uma ajuda na linha de um amor concreto ao próximo. (...) A afirmação de que as estruturas justas tornariam supérfluas as obras de caridade esconde, de facto, uma concepção materialista do ser humano”. (DCE 28).
CONCLUSÃO
Que lugar para a dádiva quando sentimos que temos pouco para dar?
Toda a dádiva tem um significado objectivo: contribui para minorar o mal-estar de alguém, resultado da injustiça, do egoísmo ou simplesmente de um mau uso dos bens, mas sempre um mal-estar causador de sofrimento e infelicidade.
Toda a dádiva tem igualmente um significado profético: proclama que o amor – caritas – está acima de tudo, supera todas as coisas e vai mesmo para além da justiça. Este simbolismo torna-se ainda mais notório e mais profético quando temos pouco para dar ou damos mesmo do que nos faz falta. Nesse caso torna-se sacrifício.
Toda a dádiva significa reconhecimento da fragilidade, quando não falência dos paradigmas económicos, sociais e políticos vigentes e abertura à mudança.
Toda a dádiva exprime, finalmente, a capacidade de se dar a si mesmo de forma livre e gratuita, como o melhor e maior dom para os outros.
Faço votos de que o CADC, enquanto instituição marcada por uma mundividência cristã e informada pelos valores evangélicos dê o seu contributo para uma reflexão séria e bem fundamentada que ajude à superação dos modelos responsáveis pela situação que temos. A sociedade portuguesa espera esse contributo e tem direito a ele.
Coimbra, 20 de janeiro de 2012
Virgílio do Nascimento Antunes
Bispo de Coimbra