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TEOLOGIA DO CORPO
 

Teologia do Corpo: a fecundidade do Amor

Pe Duarte da Cunha

Conferência proferida a 25 de Outubro de 2006
Congresso Mundial de Oração pela Vida


Pensar na vida e, concretamente, na vida humana, como estamos a fazer neste congresso, traz consigo uma exigência: é que eu estou em jogo! Se é verdade que a vida humana é importante, não há dúvida de que cada um de nós sente essa importância, antes de mais nada, pelo facto de ser uma pessoa humana: a vida humana no concreto!

Não posso, por isso, desligar a procura do sentido da minha vida de tudo o que se está aqui a debater. Parto desta posição para chegar ao tema que me cabe desenvolver: a fecundidade do amor. Como horizonte desta reflexão, ou, se preferirem como ambiente onde ela se irá desenvolver, tenho presente a “antropologia adequada”(HV 7), desenvolvida por João Paulo II, nas obras literárias e filosóficas anteriores à sua eleição para Papa, mas também as suas obras pastorais e doutrinais como pastor, quer quando estava em Cracóvia, quer, sobretudo quando eleito Papa se tornou Pastor Universal da Igreja Católica.

Falando de pessoa humana, tenho, como disse, de olhar para mim. É isso mesmo que convido todos a fazerem. Com o Papa Wojtyla aprendi, entre várias coisas, que não vale a pena falar destes temas se não me ponho, eu próprio, em questão eu próprio. Também não tem nenhuma utilidade ouvir conferências se não tiver como objectivo perceber melhor quem sou e quem são os outros para viver melhor e cumprir o desígnio de Deus.

  

Solidão original

Diante de todos os outros seres criados que não são pessoas, tenho a certeza de que existe em nós humanos uma excelência, que nos comove mas também nos obriga já que, estando revestidos desta dignidade, não podemos decair dela. Nas primeiras páginas do livro do Génesis, como João Paulo II comentou nas famosas catequeses de quartas Feiras sobre a Teologia do Corpo, encontramos o Adão criado a partir do barro, ou seja, como uma criatura realmente corporal.

Esta dimensão corporal é, por si mesma, já uma maravilha! Quando pensamos na complexidade de todos os órgãos e das relações entre as várias células, não podemos deixar de ficar gratos por aquilo que somos. Mesmo sabendo muito pouco, já nos apercebemos da beleza e da complexidade do corpo humano. Imagino que um verdadeiro cientista, que conhece muitos outros pormenores, é capaz de se espantar muito mais. Este corpo coloca-nos entre as criaturas animais, mas, tal como o relato do livro do Génesis também nos recorda, existe algo que torna diferente o ser humano de todos os outros animais, algo que leva o homem a sentir-se só. Esta solidão original, como a chama João Paulo II, não começa por ser a experiência de uma falta mas da dignidade humana. E é através do corpo, diante dos outros animais, que o homem percebe que existe uma diferença: é que sendo o corpo a manifestação, ou sacramento, da pessoa, ele mostra a existência no homem de uma vida interior. Ter consciência do que sou, do grande e do frágil que sou, é a descoberta da subjectividade. Esta percepção leva-me à descoberta de algo em mim que não toco nem vejo, aquilo a que poderemos chamar interioridade, e que, na antropologia bíblica pode ser entendida como o espírito ou alma. São Paulo diz que tal como só o Espírito de Deus sonda a profundidade de Deus, também só o espírito humano conhece o homem (cf. 1 Cor 2, 11).

O debate filosófico anda sempre em torno do que é o homem, mas a filosofia contemporânea trouxe uma maneira de olhar para o homem que parte da sua subjectividade, deixando o filósofo de olhar para o ser humano como se fosse apenas uma coisa exterior a si mesmo, para partir da sua própria experiência interior. Desde que os homens pensam sobre a vida humana, que se reconheceu a existência do corpo e do espírito, mas a filosofia contemporânea trouxe ao de cima a reflexão a partir da experiência subjectiva. Isto é, sem dúvida, um precioso contributo para a procura da verdade do homem, mas, na filosofia actual, nem tudo é positivo. Alguns, levados pelo entusiasmo da descoberta do valor do sujeito, acabaram por negar a existência de qualquer realidade exterior ao sujeito. Primeiro Kant negou que fosse possível conhecer as coisas como elas são, depois, vieram os que negam a própria existência da realidade objectiva. Bento XVI tem alertado para este nihilismo que tem evidentes consequências no campo da moral e da gnosiologia. Se nada é objectivo, tudo é relativo e não existe nem uma realidade consistente a que se possa chamar natureza e que imponha uma lei natural, nem se poderá falar de verdade, já que cada sujeito terá a sua.

Karol Wojtyla pertence a uma geração de gente que depois da segunda guerra mundial, consciente pela fé cristã da grandeza do homem, mas também ciente da miséria a que os homens podiam chegar e que tinha gerado os horrores da guerra, procurou através da fenomenologia, sobretudo de Max Scheler, uma síntese entre a metafísica tomista e a experiência subjectiva. Daqui toda a sua originalidade que, de facto, consegue olhar para o ser humano como sujeito, mas que descobre a sua verdade sem deixar de lado nenhuma das suas dimensões e sem as colocar em tensão.

A descoberta de mim implica sempre o reconhecimento de que sou uma unidade complexa. Não há dúvida que sou diferente dos animais, mesmo dos mais perfeitos, mas também é verdade que tenho um corpo e que esse corpo me coloca dentro das coisas da terra. Não sou um puro espírito, mesmo que o meu eu seja mais do que a biologia do meu corpo. É certo que também não sou duas coisas, um corpo e um espírito. A minha experiência é claramente de que sou uma só coisa, mas esta única realidade é complexa, porque engloba espírito e corpo. No corpo está o espírito que não actua sem o corpo.

 

A acção revela a pessoa e a liberdade

Dando um segundo passo, temos de dizer que a descoberta do “eu” próprio, a que também podemos chamar coração, e que inclui a experiência do corpo e daquilo que está para além do corpo, é algo que se percebe quando se está em acção. O ser vivo, todo ele, é um movimento, na medida que está em crescimento ou mutação, mas também na medida em que exerce uma determinada função ou actualiza uma missão. O que eu experimento, como ser humano, é que, embora alguns dos meus actos aconteçam, diria, “naturalmente”, porque nem me dou conta deles, há outros, que são os que me são próprios como pessoa, que incluem uma intencionalidade. Quando faço algo, não estou apenas a reagir a estímulos exteriores ou a seguir um instinto, tenho consciência do objectivo dos meus actos, coloco-me a mim mesmo finalidades para agir, e por isso as minhas acções não se podem comparar às dos animais que agem sem decidir os fins antecipadamente. A liberdade, que encontra na minha interioridade a sua sede, é inviolável e pode ser descrita como a capacidade de, reconhecendo o caminho justo que devo percorrer, decidir agir nessa direcção! Mesmo quando coagido por alguém a actuar de determinada forma, não posso negar esta interioridade, esta última sede do meu eu que forçado a realizar algo que não quer, sabe, contudo, que não o quer realizar e, por isso, sentindo repulsa, não adere interiormente aos gestos que o obrigam a fazer, de maneira que não pode ser considerado o verdadeiro agente dessas acções. O meu corpo pode agir forçado, mas o coração humano não é assim que deixa de ser verdadeiro.

O homem é senhor de si, a sua superioridade em relação aos animais, tal como está dito no livro do Génesis, faz dele o senhor de si e da criação. Isto quer dizer que os seres humanos, exactamente porque são livres, são responsáveis, e os seus actos podem ser avaliados e conter mérito, quando correspondem à natureza das coisas tal como foi criada por Deus, ou culpa, quando deturpam a verdade.

 

Ser filho – um dom

A auto-posse de que me apercebo em acção pode provocar vertigens. Coloca diante de mim a responsabilidade dos meus actos e dos fins que procuro com eles. Mas o homem não está à deriva. Se é verdade que é responsável, isso quer dizer que está diante de algo que o precede e que corresponde ao plano do Criador. Uma das primeiras verdades que devo ter sempre presente é de que, antes de qualquer acto meu, eu já existo. A minha existência não partiu de mim! A percepção da grandeza do que sou não se desliga da consciência de não ter origem em mim. Por outras palavras, o homem só se percebe a si mesmo completamente quando sabe que é filho, que provém de outros e que não deve inventar, mas descobrir o que é o ser humano. Podemos, portanto, dizer que cada um de nós é responsável diante de uma série de exigências que encontra no seu coração, que são prévias à tomada de consciência e que apontam para uma plenitude que se deseja profundamente alcançar. A solidão do homem diante dos animais, que indica a diferença da condição humana, completa-se nesta experiência religiosa, própria do homem que se descobre como criatura diante de Alguém que lhe é infinitamente superior e que o criou, mas com quem pode, misteriosamente, relacionar-se, já que a reconhece.

Toda e qualquer pretensão humana de se julgar o último critério de tudo choca com esta evidência que reduz a ridículo a pretensão de total independência humana. A autonomia que é própria do ser livre não significa, por isso, a independência ou a inexistência de uma direcção para a sua vida. Eu não me fiz, e, ultimamente, eu não me faço. Descubro-me e reconheço a minha responsabilidade de ser o que sou, agindo de acordo com a verdade do meu ser e da realidade que encontro, mas não tenho a última palavra sobre mim! Posso aceitar ou recusar, mas não posso inventar a verdade. Eu sou um dado, ou, melhor ainda, eu sou um dom, no duplo sentido da palavra: sou fruto de um outro que me criou gratuitamente, e sou dono de mim mesmo porque tenho liberdade até para me oferecer. Dependo totalmente na minha origem e na consistência do meu ser, mas, ao mesmo tempo, sou responsável por mim e pelos meus actos. Ser senhor de si, não é, por isso, ser inventor de si, mas acolher a liberdade como dom de Alguém que me conduz e, por isso, a responsabilidade de ser filho para poder percorrer o justo caminho.

 

O dom de si

Entendendo a minha existência como dom de um Outro, e descobrindo a relação intrínseca entre o acto e o ser, percebo que existe uma unidade entre a responsabilidade livre e o plano do Criador. Podemos, então, falar de uma espécie de lei da liberdade que Deus realiza ao criar: a gratuidade do amor. Deste modo, sou levado a concluir que a dinâmica do dom não é só a origem do ser humano, mas a lei que o constitui e que se deve manifestar no seu agir. O homem é homem na medida em que se dá a si mesmo. O Concílio Vaticano II, naquela que pode ser considerada a chave de toda a antropologia cristã e que João Paulo II não cessou de recordar, disse que “o homem, que é na terra a única criatura que Deus quis por si mesma, não se pode descobrir plenamente se não no dom sincero de si mesmo” (GS 24). Ao mesmo tempo que o homem se descobre como fruto de um amor gratuito: “querido por si mesmo”, encontra a sua missão no “dar-se a si mesmo”. Por outras palavras, a descoberta de ser constitutivamente um dom de Deus é simultaneamente o apelo a manifestar essa sua verdade na auto-transcendência quando se dá aos outros. No fundo, o que a Igreja nos recorda - e tenha-se presente que até aqui, ainda estamos apenas naquele que podemos chamar o horizonte filosófico, já que ainda não entrámos em linha de conta com a Revelação - é que a pessoa humana só se possui a si mesma quando se dá. É um paradoxo cuja única forma de se perceber implica a descoberta do amor não apenas como desejo de algo que me dá prazer ou que colmata uma certa falta que há em mim, mas como a expressão da máxima liberdade que se mostra não quando agarro algo, mas quando livremente me dou.

O Concílio disse que Deus criou os homens por si mesmos, o que significa que os criou como destinatários do Seu amor, porque eles estavam dotados do espírito que experimenta a liberdade e pode acolher o amor. Por isso, devemos também distinguir o amor que uma pessoa pode ter por uma coisa, que se expressa sempre no desejo de a alcançar, e o amor que se tem por uma pessoa, que não pode ser reduzida a coisa a possuir, já que vale em si mesma e, por isso, deve ser amada como destino e nunca como meio.

Voltando ao relato da criação, e sempre seguindo a magistral interpretação de João Paulo II, percebemos que tudo isto implica a descoberta de um segundo significado para a solidão do homem. Além de se perceber diferente dos outros seres animais e de conhecer a dependência de Deus, o homem procura alguém que possa ser o destinatário do seu amor, alguém a quem se possa dar e assim realizar a dinâmica de amor em que foi criado. Nenhuma outra criatura lhe fazia companhia, ou, nas palavras do livro do Génesis, faltava-lhe uma auxiliar, ou seja, alguém que permitisse ao homem realizar-se plenamente, não para fazer algo em vez dele, mas para poder ser amada tal como o homem era amado por Deus.

 

Um ser para a comunhão

Dissemos que a pessoa humana tem uma primeira experiência fundamental, a que João Paulo II chamou solidão original, e que a faz descobrir a radical diferença que existe entre si e todas as outras criaturas. Mas, por isso mesmo, também dissemos que esta solidão embora tenha um sentido positivo na medida que revela a dignidade humana, também expressa uma certa carência. As palavras de Deus no relato da criação do homem: “não é bom que o homem esteja só”, são sinal claro de que, para Deus, a criação do homem só está completa, e por isso só é boa, quando se dá a criação da mulher, do outro ser humano. Este outro, porém não é uma mera cópia. Adão pode afirmar com verdade: é “osso dos meus ossos e carne da minha carne”, dizendo, deste modo, que, ao contrário de todos os animais, é alguém com a mesma natureza e, consequentemente, a mesma dignidade. Porém, também é um facto que diante de si está alguém que é diferente, é uma mulher e ele é um homem. Esta diferença não é hierárquica, é antes a condição para que o facto de ter outra pessoa à sua frente leve à descoberta da solidão como caminho para a comunhão. Por outras palavras, a criação da mulher, tal como é relatada no texto do Génesis, revela que a pessoa humana é criada para a comunhão com um outro que é igualmente humano embora sexualmente diferente.

É importante explicar bem que a exigência de se dar, que leva o homem ao desejo de encontrar a mulher, não é um movimento simples. Na verdade, tendo sido criada à imagem de Deus - cuja lei do agir é o amor como dom e que existe como comunhão de Pessoa -, a pessoa humana orienta sempre o seu amor não para uma pura alienação de si, um altruísmo exagerado que esvazia de personalidade o amante, mas para a comunhão, onde quem ama e quem é amado se enriquecem mutuamente. A pessoa humana, o indivíduo, não se realiza senão na experiência de comunhão, na unidade dum amor recíproco. São Tomás não hesitou em chamar à caridade amizade com Deus, ou seja, amor de benevolência recíproco que se orienta para a unidade real entre os dois. Mas este facto explica, de modo consistente, o significado da diferença sexual. Adão sente a falta de alguém que seja como ele, mas não de uma cópia de si. A mulher e o homem estão, diante um do outro, espantados por descobrirem alguém a quem se podem dar, mas também descobrindo que nesse dom, e no acolhimento do dom do outro, geram uma unidade real que não é nem a simples soma de dois, nem a dissolução de um no outro. Ora, só na perspectiva de que existe uma diferença se percebe que o dom de mim ao outro de alguma forma completa esse outro, e que o acolhimento do outro introduz uma plenitude em mim. Assim, a comunhão entre homem e mulher, a que João Paulo II chama sacramento primordial, é a expressão do ser de Deus (comunhão de três pessoas numa verdadeira unidade) e torna presente o amor que provém de Deus que quer unir-se aos homens, sem que isso leve à perda da diferença infinita que existe entre Deus e as suas criaturas.

 

Esta comunhão envolve a pessoa toda

A comunhão entre um homem e uma mulher não é apenas uma questão espiritual. Nenhum ser humano, em coisa alguma que faça, deixa de ser a unidade complexa entre alma e corpo. A comunhão que se gera entre homem e mulher tem, por isso, um nível, que irá constituir o matrimónio, em que a comunhão é total, e, por isso, exclusiva. Quando um homem e uma mulher se dão totalmente, significa que, paradoxalmente, dão a própria liberdade, dizendo ao outro: porque sou livre dou-te a minha liberdade, sou teu, sou tua. Deste modo, como diz, o livro do Génesis, já não são dois, mas uma só carne. Entre eles passa a existir uma nova realidade, que envolve as duas pessoas, aqui e agora, mas também por todo o tempo e em todos os aspectos e dimensões da vida. É assim que o próprio acto conjugal, quando os dois corpos se unem, expressa a unidade real que existe entre as duas pessoas. Aquilo a que chamamos relação sexual entre um homem e uma mulher não é apenas a junção de dois corpos da qual cada um recebe prazer, mas é a expressão, quase sacramental, da comunhão de duas pessoas. Deste modo, se a comunhão entre homem e mulher é sinal da comunhão divina, porque fomos criados à imagem e semelhança de Deus, então a comunhão corporal é um sinal visível do amor trinitário.

A antropologia cristã alcança, deste modo, uma autêntica dimensão teológica que se revela em três níveis: porque o homem foi criado à imagem e semelhança de Deus; porque foi redimido por Jesus Cristo que é o Filho de Deus feito homem, e porque é chamado a participar na comunhão eterna de Deus. Quer isto dizer que, também no que diz respeito à comunhão entre homem e mulher, podemos afirmar que se é imagem da comunhão divina, também foi redimida por Cristo e é chamada a participar da vida divina. A partir daqui se deverá ir fazendo uma teologia da família (Marc Ouellet). Não nos é possível esgotar tudo agora, mas deve ser a partir daqui que se vai perceber o significado da fecundidade humana. Não se está simplesmente ao nível de uma reprodução, por isso, preferimos falar de procriação, já que há uma consciência de que se está a colaborar com Deus e a agir na mesma lógica do amor divino, e não apenas a perpetuar uma espécie animal.

 

A fecundidade do amor

Na origem de cada um de nós está, como já vimos, a iniciativa de um Outro. Somos filhos, e só a partir desta certeza sabemos quem verdadeiramente somos: um dom do Criador. A única razão que explica tudo é o facto de Deus criar por amor. Mas também é verdade que na origem de cada um de nós, de acordo com o plano de Deus, está a comunhão dos nossos pais que, no acto conjugal, se entregam e acolhem reciprocamente a ponto de serem uma só carne. Podemos pois dizer que a fecundidade do amor conjugal é o meio pelo qual o amor de Deus nos cria. Mostra-se assim que na biologia da geração está inscrita a genealogia da pessoa. No acto que manifesta o amor/comunhão entre um homem e uma mulher está a origem biológica do filho. Acreditamos que cada um de nós é criado por um acto deliberado do amor de Deus. Mas, para que isso ocorra através dos pais humanos, Deus inscreveu na natureza da procriação humana a sua marca, fazendo coincidir o acto da fecundidade humana com a expressão da total entrega entre marido e mulher. O amor com que Deus nos criou pode ser pensado como um transbordar do Seu amor intra-trinitário, tal como o amor dos pais pelos filhos é chamado a ser um transbordar do seu amor conjugal. E, tal como o amor de Deus por nós se vai revelando na Sua providência que nos acompanha, também o amor dos pais se há-de ir concretizando no cuidado pelos filhos, desde o alimento e cuidados do corpo à educação e cuidados espirituais.

Há aqui um dado que nos deve ainda deter um pouco: nós, quando falamos de fecundidade do amor, não estamos apenas diante de uma consequência da comunhão, mas estamos dentro da própria experiência de comunhão. No fundo, o amor é algo que implica sempre uma espécie de tríade. Os dois que se amam geram uma unidade, um nós que se percebe como fruto desse amor, mas esse nós não é, também, uma abstracção, é alguém. Tal como em Deus a comunhão é de três, também na expressão dessa comunhão, que é o amor entre marido e mulher, só a transcendência dos dois num terceiro realiza o amor pleno.

É certo que todas as amizades humanas têm esta dimensão da fecundidade, pois nunca é completa uma amizade encerrada nos dois amigos, da unidade surge a caridade, a solidariedade e a vontade de criar algo juntos. Os seres humanos realizam-se na acção consciente que brota da amizade. Mas, como dizia S. Tomás, a amizade entre marido e mulher é especial porque envolve todos os aspectos da vida. Também por isso a sua fecundidade é diferente, é especial, é mais completa. O filho nasce deste amor é fruto do amor! Não é o único fruto, e pode até não aparecer, e também não é necessário que todos os actos do casal, que devem ter a marca do amor e, portanto da fecundidade desse amor, tenham de gerar novos filhos, mas significa que a comunhão do casal é chamada a olhar para além dos dois e, deste modo, ser expressão duma caridade fecunda, que obviamente terá como horizonte a disponibilidade para ter filhos e para educar os que já nasceram, se Deus assim o quiser. Isto é totalmente diferente da ideia de contracepção que fecha deliberadamente o amor à fecundidade. Como diz Scott Hahn, de maneira belíssima, no acto conjugal que manifesta de maneira proeminente a comunhão das duas pessoas, o amor realiza-se plenamente quando o dom é total a ponto de nove meses depois se poder dar um nome ao fruto desse amor .

 

O pecado original e a vergonha

Não nos basta dizer o plano de Deus. É certo que ele continua sempre presente e que em todos os homens, por mais distantes que estejam de Deus, permanece um eco desse plano. Mas com a desobediência a Deus, ou seja, quando o homem deixou de confiar em Deus e preferiu ser rebelde saindo de casa, como o filho pródigo, deixou de ter no seu horizonte a lei do amor que é a natureza divina à imagem da qual foi criado. O pecado, por isso, introduz não só uma ruptura entre Deus e o homem, mas também uma desadequação nas relações humanas. Se antes de comerem o fruto da árvore proibida, Adão e Eva passeavam nus pelo jardim e não sentiam vergonha (Gen 2,25), isso quer dizer que tinham presente e sem confusão alguma que eram um para o outro, não se olhavam ou desejavam como objectos que se possuem mas como sujeitos que se podem dar e acolher. A nudez original e sem vergonha significava a totalidade do dom. Depois da desobediência veio a vergonha. A nudez transforma-se em tentação, porque o olhar fica corrompido e o coração passa a desejar o outro como coisa. Mesmo permanecendo o eco da verdade original, homem e mulher, vão agora unir-se em tensão. E os filhos que vão nascer, serão sempre dom de Deus, mas fruto de uma relação que pode ser ambígua. Esta é a situação dos homens depois do pecado original. A comunhão deixa de ser total porque se introduz o medo de se dar totalmente, o tempo passa a ser uma ameaça de que o amor pode desaparecer, de modo que até Moisés aceita a carta de divórcio, e os filhos podem, agora, ser fruto de relações pecaminosas que falseiam o amor. Acreditamos, no entanto, que o pecado fere o homem mas não destrói a sua natureza (CIC 405), de maneira que pode continuar a haver entre homem e mulher um verdadeiro amor e os filhos serão geralmente fruto desse amor, ainda que a vivência desse amor esteja envolvida pela fragilidade humana e, por isso, em busca duma plenitude que só pode vir de Deus.

Jesus Cristo veio para nos redimir. Fazendo-se homem, Ele tomou para si um verdadeiro corpo humano, e tudo o que assumiu redimiu (St. Atanásio). O homem todo – corpo e alma - pode agora, com Jesus Cristo, participando da Sua vida nova, ser curado da desobediência, voltar para casa e receber novas roupas, como nos diz a parábola do filho pródigo (Lc 15, 21-22). O homem novo é o que vive a plenitude do plano de Deus pela participação na Sua vida. Por isso, com Jesus Cristo, volta a ser possível uma unidade humana entre homem e mulher que seja correspondente ao plano de Deus, ou seja, que concretize uma comunhão total e vença a tal vergonha que nascera da concupiscência do olhar e da impureza do coração. Toda a economia sacramental, nomeadamente o sacramento do matrimónio, faz com que esta realidade humana participe da vida nova que brota da Páscoa de Jesus, a qual purifica e eleva até à plenitude o amor humano. É verdade que o perdão do pecado original pelo baptismo não evita a concupiscência nem a tentação. Permanece a possibilidade de se ceder à concupiscência e, por isso, a importância de se estar vigilante e de escolher não o cómodo mas a verdade, mesmo que isso exija esforço e ascese. Essa concupiscência, que se manifesta como desejo do outro considerado como uma coisa, terá de ser vencida através das graças de Deus e da aceitação dessas graças por parte dos homens. A verdade do amor é possível ser vivida mas tem de se contar com a graça de Deus e com o esforço e a decisão livre que não se prende às aparências, mas vai até à raiz última do ser, que é Deus.

  

O sacramento do matrimónio

O homem novo têm um novo horizonte de vida: a eternidade. Por isso, aquele sacramento primordial, que é o matrimónio, ganha um novo sentido, passando a expressar, no mundo presente, aquela comunhão definitiva que experimentaremos em Deus. Mas essa comunhão é como que as núpcias de Jesus com a Igreja (Apo 21). O amor conjugal agora olha para Jesus, de quem recebe as graças, mas também de quem recebe o exemplo do que é amar: dar-se totalmente. (Ef 5, 21-33).

Esta é a fecundidade do amor cristão. Não apenas um gerar filhos de pais humanos, mas um gerar filhos para Deus. O amor cristão que, pelo sacramento do matrimónio, recebe uma nova dimensão, está em Cristo e a sua fecundidade, ao mesmo tempo que continua a ser a plenitude da comunhão entre o pai e a mãe, é também a expressão da fecundidade do amor divino que nos prepara uma nova morada onde viveremos em plena comunhão com Ele.

É verdade que esta plenitude nos é prometida para começar a ser gozada já, mas também é certo que passa pela cruz. Não experimentamos a plenitude se não nos dermos totalmente. Esse dom de nós deverá ser radical, como foi em Jesus. Ele disse-nos para O seguirmos pegando na cruz. Se aceitamos a Sua verdade não podemos pôr limites ou tentarmos com ideias mundanas equilibrar a cruz para não ser um risco demasiado elevado. Nos nossos tempos isto ganha uma urgência especial. A ideia de que a ciência nos torna capazes de dominar tudo e, por isso, torna obsoleta a necessidade de pegar na cruz, está a iludir todos, mesmos os cristãos. É assim que o sexo passa a ser uma coisa que se usa e que a ciência se encarrega de controlar, e é assim que a união entre marido e mulher deixa de ser expressão de uma entrega total e confiante, responsável e não instintiva, para passar a ser vulnerável ao egoísmo e à concupiscência. Quando se recusam as graças de Deus e se prefere agir sem fazer caso à dependência original do homem, quando o homem se considera critério absoluto a partir de uma noção de razão que se arvora em medida de todas as coisas, quando se cede ao hedonismo que só busca o efémero, a decadência é evidente e dessa maneira nunca haverá verdadeira e estável felicidade. Podemos, agora, evitar os filhos ou fazer filhos em laboratórios, mas, em causa, fica a experiência de uma comunhão fecunda que é a imagem e semelhança de Deus e que é o verdadeiro caminho para que a pessoa humana se realize plenamente.

O Papa Bento XVI disse, no início do seu ministério petrino, para não desconfiarmos de Jesus Cristo. Jesus não nos tira nada da vida mas dá-lhe plenitude. A teologia do corpo é isso que nos vem ensinar. Há uma maneira de se viver plenamente como homens, há uma maneira de se ser família que corresponde à verdade humana. Não nos deixemos enganar pela aparente capacidade humana de dominar, porque essa deixará sempre de lado algo que os homens só têm quando se submetem ao Criador e procuram seguir o Seu plano.

 
 
 
 
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