Pensar na vida e, concretamente, na vida humana, como estamos a fazer neste
congresso, traz consigo uma exigência: é que eu estou em jogo! Se é verdade que
a vida humana é importante, não há dúvida de que cada um de nós sente essa
importância, antes de mais nada, pelo facto de ser uma pessoa humana: a vida
humana no concreto!
Não posso, por
isso, desligar a procura do sentido da minha vida de tudo o que se está aqui a
debater. Parto desta posição para chegar ao tema que me cabe desenvolver: a
fecundidade do amor. Como horizonte desta reflexão, ou, se preferirem como
ambiente onde ela se irá desenvolver, tenho presente a “antropologia
adequada”(HV 7), desenvolvida por João Paulo II, nas obras literárias e
filosóficas anteriores à sua eleição para Papa, mas também as suas obras
pastorais e doutrinais como pastor, quer quando estava em Cracóvia, quer,
sobretudo quando eleito Papa se tornou Pastor Universal da Igreja Católica.
Falando de pessoa
humana, tenho, como disse, de olhar para mim. É isso mesmo que convido todos a
fazerem. Com o Papa Wojtyla aprendi, entre várias coisas, que não vale a pena
falar destes temas se não me ponho, eu próprio, em questão eu próprio. Também
não tem nenhuma utilidade ouvir conferências se não tiver como objectivo
perceber melhor quem sou e quem são os outros para viver melhor e cumprir o
desígnio de Deus.
Solidão original
Diante de todos
os outros seres criados que não são pessoas, tenho a certeza de que existe em
nós humanos uma excelência, que nos comove mas também nos obriga já que, estando
revestidos desta dignidade, não podemos decair dela. Nas primeiras páginas do
livro do Génesis, como João Paulo II comentou nas famosas catequeses de quartas
Feiras sobre a Teologia do Corpo, encontramos o Adão criado a partir do barro,
ou seja, como uma criatura realmente corporal.
Esta dimensão
corporal é, por si mesma, já uma maravilha! Quando pensamos na complexidade de
todos os órgãos e das relações entre as várias células, não podemos deixar de
ficar gratos por aquilo que somos. Mesmo sabendo muito pouco, já nos apercebemos
da beleza e da complexidade do corpo humano. Imagino que um verdadeiro
cientista, que conhece muitos outros pormenores, é capaz de se espantar muito
mais. Este corpo coloca-nos entre as criaturas animais, mas, tal como o relato
do livro do Génesis também nos recorda, existe algo que torna diferente o ser
humano de todos os outros animais, algo que leva o homem a sentir-se só. Esta
solidão original, como a chama João Paulo II, não começa por ser a experiência
de uma falta mas da dignidade humana. E é através do corpo, diante dos outros
animais, que o homem percebe que existe uma diferença: é que sendo o corpo a
manifestação, ou sacramento, da pessoa, ele mostra a existência no homem de uma
vida interior. Ter consciência do que sou, do grande e do frágil que sou, é a
descoberta da subjectividade. Esta percepção leva-me à descoberta de algo em mim
que não toco nem vejo, aquilo a que poderemos chamar interioridade, e que, na
antropologia bíblica pode ser entendida como o espírito ou alma. São Paulo diz
que tal como só o Espírito de Deus sonda a profundidade de Deus, também só o
espírito humano conhece o homem (cf. 1 Cor 2, 11).
O debate
filosófico anda sempre em torno do que é o homem, mas a filosofia contemporânea
trouxe uma maneira de olhar para o homem que parte da sua subjectividade,
deixando o filósofo de olhar para o ser humano como se fosse apenas uma coisa
exterior a si mesmo, para partir da sua própria experiência interior. Desde que
os homens pensam sobre a vida humana, que se reconheceu a existência do corpo e
do espírito, mas a filosofia contemporânea trouxe ao de cima a reflexão a partir
da experiência subjectiva. Isto é, sem dúvida, um precioso contributo para a
procura da verdade do homem, mas, na filosofia actual, nem tudo é positivo.
Alguns, levados pelo entusiasmo da descoberta do valor do sujeito, acabaram por
negar a existência de qualquer realidade exterior ao sujeito. Primeiro Kant
negou que fosse possível conhecer as coisas como elas são, depois, vieram os que
negam a própria existência da realidade objectiva. Bento XVI tem alertado para
este nihilismo que tem evidentes consequências no campo da moral e da
gnosiologia. Se nada é objectivo, tudo é relativo e não existe nem uma realidade
consistente a que se possa chamar natureza e que imponha uma lei natural, nem se
poderá falar de verdade, já que cada sujeito terá a sua.
Karol Wojtyla
pertence a uma geração de gente que depois da segunda guerra mundial, consciente
pela fé cristã da grandeza do homem, mas também ciente da miséria a que os
homens podiam chegar e que tinha gerado os horrores da guerra, procurou através
da fenomenologia, sobretudo de Max Scheler, uma síntese entre a metafísica
tomista e a experiência subjectiva. Daqui toda a sua originalidade que, de
facto, consegue olhar para o ser humano como sujeito, mas que descobre a sua
verdade sem deixar de lado nenhuma das suas dimensões e sem as colocar em
tensão.
A descoberta de
mim implica sempre o reconhecimento de que sou uma unidade complexa. Não há
dúvida que sou diferente dos animais, mesmo dos mais perfeitos, mas também é
verdade que tenho um corpo e que esse corpo me coloca dentro das coisas da
terra. Não sou um puro espírito, mesmo que o meu eu seja mais do que a biologia
do meu corpo. É certo que também não sou duas coisas, um corpo e um espírito. A
minha experiência é claramente de que sou uma só coisa, mas esta única realidade
é complexa, porque engloba espírito e corpo. No corpo está o espírito que não
actua sem o corpo.
A
acção revela a pessoa e a liberdade
Dando um segundo
passo, temos de dizer que a descoberta do “eu” próprio, a que também podemos
chamar coração, e que inclui a experiência do corpo e daquilo que está para além
do corpo, é algo que se percebe quando se está em acção. O ser vivo, todo ele, é
um movimento, na medida que está em crescimento ou mutação, mas também na medida
em que exerce uma determinada função ou actualiza uma missão. O que eu
experimento, como ser humano, é que, embora alguns dos meus actos aconteçam,
diria, “naturalmente”, porque nem me dou conta deles, há outros, que são os que
me são próprios como pessoa, que incluem uma intencionalidade. Quando faço algo,
não estou apenas a reagir a estímulos exteriores ou a seguir um instinto, tenho
consciência do objectivo dos meus actos, coloco-me a mim mesmo finalidades para
agir, e por isso as minhas acções não se podem comparar às dos animais que agem
sem decidir os fins antecipadamente. A liberdade, que encontra na minha
interioridade a sua sede, é inviolável e pode ser descrita como a capacidade de,
reconhecendo o caminho justo que devo percorrer, decidir agir nessa direcção!
Mesmo quando coagido por alguém a actuar de determinada forma, não posso negar
esta interioridade, esta última sede do meu eu que forçado a realizar algo que
não quer, sabe, contudo, que não o quer realizar e, por isso, sentindo repulsa,
não adere interiormente aos gestos que o obrigam a fazer, de maneira que não
pode ser considerado o verdadeiro agente dessas acções. O meu corpo pode agir
forçado, mas o coração humano não é assim que deixa de ser verdadeiro.
O homem é senhor
de si, a sua superioridade em relação aos animais, tal como está dito no livro
do Génesis, faz dele o senhor de si e da criação. Isto quer dizer que os seres
humanos, exactamente porque são livres, são responsáveis, e os seus actos podem
ser avaliados e conter mérito, quando correspondem à natureza das coisas tal
como foi criada por Deus, ou culpa, quando deturpam a verdade.
Ser
filho – um dom
A auto-posse de
que me apercebo em acção pode provocar vertigens. Coloca diante de mim a
responsabilidade dos meus actos e dos fins que procuro com eles. Mas o homem não
está à deriva. Se é verdade que é responsável, isso quer dizer que está diante
de algo que o precede e que corresponde ao plano do Criador. Uma das primeiras
verdades que devo ter sempre presente é de que, antes de qualquer acto meu, eu
já existo. A minha existência não partiu de mim! A percepção da grandeza do que
sou não se desliga da consciência de não ter origem em mim. Por outras palavras,
o homem só se percebe a si mesmo completamente quando sabe que é filho, que
provém de outros e que não deve inventar, mas descobrir o que é o ser humano.
Podemos, portanto, dizer que cada um de nós é responsável diante de uma série de
exigências que encontra no seu coração, que são prévias à tomada de consciência
e que apontam para uma plenitude que se deseja profundamente alcançar. A solidão
do homem diante dos animais, que indica a diferença da condição humana,
completa-se nesta experiência religiosa, própria do homem que se descobre como
criatura diante de Alguém que lhe é infinitamente superior e que o criou, mas
com quem pode, misteriosamente, relacionar-se, já que a reconhece.
Toda e qualquer
pretensão humana de se julgar o último critério de tudo choca com esta evidência
que reduz a ridículo a pretensão de total independência humana. A autonomia que
é própria do ser livre não significa, por isso, a independência ou a
inexistência de uma direcção para a sua vida.
Eu não me fiz, e, ultimamente,
eu não me faço.
Descubro-me e reconheço a minha responsabilidade de ser o que
sou, agindo de acordo com a verdade do meu ser e da realidade que encontro, mas
não tenho a última palavra sobre mim! Posso aceitar ou recusar, mas não posso
inventar a verdade. Eu sou um dado, ou, melhor ainda, eu sou um dom, no duplo
sentido da palavra: sou fruto de um outro que me criou gratuitamente, e sou dono
de mim mesmo porque tenho liberdade até para me oferecer. Dependo totalmente na
minha origem e na consistência do meu ser, mas, ao mesmo tempo, sou responsável
por mim e pelos meus actos. Ser senhor de si, não é, por isso, ser inventor de
si, mas acolher a liberdade como dom de Alguém que me conduz e, por isso, a
responsabilidade de ser filho para poder percorrer o justo caminho.
O
dom de si
Entendendo a
minha existência como dom de um Outro, e descobrindo a relação intrínseca entre
o acto e o ser, percebo que existe uma unidade entre a responsabilidade livre e
o plano do Criador. Podemos, então, falar de uma espécie de lei da liberdade que
Deus realiza ao criar: a gratuidade do amor. Deste modo, sou levado a concluir
que a dinâmica do dom não é só a origem do ser humano, mas a lei que o constitui
e que se deve manifestar no seu agir. O homem é homem na medida em que se dá a
si mesmo. O Concílio Vaticano II, naquela que pode ser considerada a chave de
toda a antropologia cristã e que João Paulo II não cessou de recordar, disse que
“o homem, que é na terra a única criatura que Deus quis por si mesma, não se
pode descobrir plenamente se não no dom sincero de si mesmo” (GS 24). Ao mesmo
tempo que o homem se descobre como fruto de um amor gratuito: “querido por si
mesmo”, encontra a sua missão no “dar-se a si mesmo”. Por outras palavras, a
descoberta de ser constitutivamente um dom de Deus é simultaneamente o apelo a
manifestar essa sua verdade na auto-transcendência quando se dá aos outros. No
fundo, o que a Igreja nos recorda - e tenha-se presente que até aqui, ainda
estamos apenas naquele que podemos chamar o horizonte filosófico, já que ainda
não entrámos em linha de conta com a Revelação - é que a pessoa humana só se
possui a si mesma quando se dá. É um paradoxo cuja única forma de se perceber
implica a descoberta do amor não apenas como desejo de algo que me dá prazer ou
que colmata uma certa falta que há em mim, mas como a expressão da máxima
liberdade que se mostra não quando agarro algo, mas quando livremente me dou.
O Concílio disse
que Deus criou os homens por si mesmos, o que significa que os criou como
destinatários do Seu amor, porque eles estavam dotados do espírito que
experimenta a liberdade e pode acolher o amor. Por isso, devemos também
distinguir o amor que uma pessoa pode ter por uma coisa, que se expressa sempre
no desejo de a alcançar, e o amor que se tem por uma pessoa, que não pode ser
reduzida a coisa a possuir, já que vale em si mesma e, por isso, deve ser amada
como destino e nunca como meio.
Voltando ao
relato da criação, e sempre seguindo a magistral interpretação de João Paulo II,
percebemos que tudo isto implica a descoberta de um segundo significado para a
solidão do homem. Além de se perceber diferente dos outros seres animais e de
conhecer a dependência de Deus, o homem procura alguém que possa ser o
destinatário do seu amor, alguém a quem se possa dar e assim realizar a dinâmica
de amor em que foi criado. Nenhuma outra criatura lhe fazia companhia, ou, nas
palavras do livro do Génesis, faltava-lhe uma auxiliar, ou seja, alguém que
permitisse ao homem realizar-se plenamente, não para fazer algo em vez dele, mas
para poder ser amada tal como o homem era amado por Deus.
Um
ser para a comunhão
Dissemos que a
pessoa humana tem uma primeira experiência fundamental, a que João Paulo II
chamou solidão original, e que a faz descobrir a radical diferença que existe
entre si e todas as outras criaturas. Mas, por isso mesmo, também dissemos que
esta solidão embora tenha um sentido positivo na medida que revela a dignidade
humana, também expressa uma certa carência. As palavras de Deus no relato da
criação do homem: “não é bom que o homem esteja só”, são sinal claro de que,
para Deus, a criação do homem só está completa, e por isso só é boa, quando se
dá a criação da mulher, do outro ser humano. Este outro, porém não é uma mera
cópia. Adão pode afirmar com verdade: é “osso dos meus ossos e carne da minha
carne”, dizendo, deste modo, que, ao contrário de todos os animais, é alguém com
a mesma natureza e, consequentemente, a mesma dignidade. Porém, também é um
facto que diante de si está alguém que é diferente, é uma mulher e ele é um
homem. Esta diferença não é hierárquica, é antes a condição para que o facto de
ter outra pessoa à sua frente leve à descoberta da solidão como caminho para a
comunhão. Por outras palavras, a criação da mulher, tal como é relatada no texto
do Génesis, revela que a pessoa humana é criada para a comunhão com um outro que
é igualmente humano embora sexualmente diferente.
É importante
explicar bem que a exigência de se dar, que leva o homem ao desejo de encontrar
a mulher, não é um movimento simples. Na verdade, tendo sido criada à imagem de
Deus - cuja lei do agir é o amor como dom e que existe como comunhão de Pessoa
-, a pessoa humana orienta sempre o seu amor não para uma pura alienação de si,
um altruísmo exagerado que esvazia de personalidade o amante, mas para a
comunhão, onde quem ama e quem é amado se enriquecem mutuamente. A pessoa
humana, o indivíduo, não se realiza senão na experiência de comunhão, na unidade
dum amor recíproco. São Tomás não hesitou em chamar à caridade amizade com Deus,
ou seja, amor de benevolência recíproco que se orienta para a unidade real entre
os dois. Mas este facto explica, de modo consistente, o significado da diferença
sexual. Adão sente a falta de alguém que seja como ele, mas não de uma cópia de
si. A mulher e o homem estão, diante um do outro, espantados por descobrirem
alguém a quem se podem dar, mas também descobrindo que nesse dom, e no
acolhimento do dom do outro, geram uma unidade real que não é nem a simples soma
de dois, nem a dissolução de um no outro. Ora, só na perspectiva de que existe
uma diferença se percebe que o dom de mim ao outro de alguma forma completa esse
outro, e que o acolhimento do outro introduz uma plenitude em mim. Assim, a
comunhão entre homem e mulher, a que João Paulo II chama sacramento primordial,
é a expressão do ser de Deus (comunhão de três pessoas numa verdadeira unidade)
e torna presente o amor que provém de Deus que quer unir-se aos homens, sem que
isso leve à perda da diferença infinita que existe entre Deus e as suas
criaturas.
Esta
comunhão envolve a pessoa toda
A comunhão entre
um homem e uma mulher não é apenas uma questão espiritual. Nenhum ser humano, em
coisa alguma que faça, deixa de ser a unidade complexa entre alma e corpo. A
comunhão que se gera entre homem e mulher tem, por isso, um nível, que irá
constituir o matrimónio, em que a comunhão é total, e, por isso, exclusiva.
Quando um homem e uma mulher se dão totalmente, significa que, paradoxalmente,
dão a própria liberdade, dizendo ao outro: porque sou livre dou-te a minha
liberdade, sou teu, sou tua. Deste modo, como diz, o livro do Génesis, já não
são dois, mas uma só carne. Entre eles passa a existir uma nova realidade, que
envolve as duas pessoas, aqui e agora, mas também por todo o tempo e em todos os
aspectos e dimensões da vida. É assim que o próprio acto conjugal, quando os
dois corpos se unem, expressa a unidade real que existe entre as duas pessoas.
Aquilo a que chamamos relação sexual entre um homem e uma mulher não é apenas a
junção de dois corpos da qual cada um recebe prazer, mas é a expressão, quase
sacramental, da comunhão de duas pessoas. Deste modo, se a comunhão entre homem
e mulher é sinal da comunhão divina, porque fomos criados à imagem e semelhança
de Deus, então a comunhão corporal é um sinal visível do amor trinitário.
A antropologia
cristã alcança, deste modo, uma autêntica dimensão teológica que se revela em
três níveis: porque o homem foi criado à imagem e semelhança de Deus; porque foi
redimido por Jesus Cristo que é o Filho de Deus feito homem, e porque é chamado
a participar na comunhão eterna de Deus. Quer isto dizer que, também no que diz
respeito à comunhão entre homem e mulher, podemos afirmar que se é imagem da
comunhão divina, também foi redimida por Cristo e é chamada a participar da vida
divina. A partir daqui se deverá ir fazendo uma teologia da família (Marc
Ouellet). Não nos é possível esgotar tudo agora, mas deve ser a partir daqui
que se vai perceber o significado da fecundidade humana. Não se está
simplesmente ao nível de uma reprodução, por isso, preferimos falar de
procriação, já que há uma consciência de que se está a colaborar com Deus e a
agir na mesma lógica do amor divino, e não apenas a perpetuar uma espécie
animal.
A
fecundidade do amor
Na origem de cada
um de nós está, como já vimos, a iniciativa de um Outro. Somos filhos, e só a
partir desta certeza sabemos quem verdadeiramente somos: um dom do Criador. A
única razão que explica tudo é o facto de Deus criar por amor. Mas também é
verdade que na origem de cada um de nós, de acordo com o plano de Deus, está a
comunhão dos nossos pais que, no acto conjugal, se entregam e acolhem
reciprocamente a ponto de serem uma só carne. Podemos pois dizer que a
fecundidade do amor conjugal é o meio pelo qual o amor de Deus nos cria.
Mostra-se assim que na biologia da geração está inscrita a genealogia da pessoa.
No acto que manifesta o amor/comunhão entre um homem e uma mulher está a origem
biológica do filho. Acreditamos que cada um de nós é criado por um acto
deliberado do amor de Deus. Mas, para que isso ocorra através dos pais humanos,
Deus inscreveu na natureza da procriação humana a sua marca, fazendo coincidir o
acto da fecundidade humana com a expressão da total entrega entre marido e
mulher. O amor com que Deus nos criou pode ser pensado como um transbordar do
Seu amor intra-trinitário, tal como o amor dos pais pelos filhos é chamado a ser
um transbordar do seu amor conjugal. E, tal como o amor de Deus por nós se vai
revelando na Sua providência que nos acompanha, também o amor dos pais se há-de
ir concretizando no cuidado pelos filhos, desde o alimento e cuidados do corpo à
educação e cuidados espirituais.
Há aqui um dado
que nos deve ainda deter um pouco: nós, quando falamos de fecundidade do amor,
não estamos apenas diante de uma consequência da comunhão, mas estamos dentro da
própria experiência de comunhão. No fundo, o amor é algo que implica sempre uma
espécie de tríade. Os dois que se amam geram uma unidade, um nós que se
percebe como fruto desse amor, mas esse nós não é, também, uma
abstracção, é alguém. Tal como em Deus a comunhão é de três, também na expressão
dessa comunhão, que é o amor entre marido e mulher, só a transcendência dos dois
num terceiro realiza o amor pleno.
É certo que todas
as amizades humanas têm esta dimensão da fecundidade, pois nunca é completa uma
amizade encerrada nos dois amigos, da unidade surge a caridade, a solidariedade
e a vontade de criar algo juntos. Os seres humanos realizam-se na acção
consciente que brota da amizade. Mas, como dizia S. Tomás, a amizade entre
marido e mulher é especial porque envolve todos os aspectos da vida. Também por
isso a sua fecundidade é diferente, é especial, é mais completa. O filho nasce
deste amor é fruto do amor! Não é o único fruto, e pode até não aparecer, e
também não é necessário que todos os actos do casal, que devem ter a marca do
amor e, portanto da fecundidade desse amor, tenham de gerar novos filhos, mas
significa que a comunhão do casal é chamada a olhar para além dos dois e, deste
modo, ser expressão duma caridade fecunda, que obviamente terá como horizonte a
disponibilidade para ter filhos e para educar os que já nasceram, se Deus assim
o quiser. Isto é totalmente diferente da ideia de contracepção que fecha
deliberadamente o amor à fecundidade. Como diz Scott Hahn, de maneira belíssima,
no acto conjugal que manifesta de maneira proeminente a comunhão das duas
pessoas, o amor realiza-se plenamente quando o dom é total a ponto de nove meses
depois se poder dar um nome ao fruto desse amor .
O
pecado original e a vergonha
Não nos basta
dizer o plano de Deus. É certo que ele continua sempre presente e que em todos
os homens, por mais distantes que estejam de Deus, permanece um eco desse plano.
Mas com a desobediência a Deus, ou seja, quando o homem deixou de confiar em
Deus e preferiu ser rebelde saindo de casa, como o filho pródigo, deixou de ter
no seu horizonte a lei do amor que é a natureza divina à imagem da qual foi
criado. O pecado, por isso, introduz não só uma ruptura entre Deus e o homem,
mas também uma desadequação nas relações humanas. Se antes de comerem o fruto da
árvore proibida, Adão e Eva passeavam nus pelo jardim e não sentiam vergonha
(Gen 2,25), isso quer dizer que tinham presente e sem confusão alguma que eram
um para o outro, não se olhavam ou desejavam como objectos que se possuem mas
como sujeitos que se podem dar e acolher. A nudez original e sem vergonha
significava a totalidade do dom. Depois da desobediência veio a vergonha. A
nudez transforma-se em tentação, porque o olhar fica corrompido e o coração
passa a desejar o outro como coisa. Mesmo permanecendo o eco da verdade
original, homem e mulher, vão agora unir-se em tensão. E os filhos que vão
nascer, serão sempre dom de Deus, mas fruto de uma relação que pode ser ambígua.
Esta é a situação dos homens depois do pecado original. A comunhão deixa de ser
total porque se introduz o medo de se dar totalmente, o tempo passa a ser uma
ameaça de que o amor pode desaparecer, de modo que até Moisés aceita a carta de
divórcio, e os filhos podem, agora, ser fruto de relações pecaminosas que
falseiam o amor. Acreditamos, no entanto, que o pecado fere o homem mas não
destrói a sua natureza (CIC 405), de maneira que pode continuar a haver entre
homem e mulher um verdadeiro amor e os filhos serão geralmente fruto desse amor,
ainda que a vivência desse amor esteja envolvida pela fragilidade humana e, por
isso, em busca duma plenitude que só pode vir de Deus.
Jesus Cristo veio
para nos redimir. Fazendo-se homem, Ele tomou para si um verdadeiro corpo
humano, e tudo o que assumiu redimiu (St. Atanásio). O homem todo – corpo e alma
- pode agora, com Jesus Cristo, participando da Sua vida nova, ser curado da
desobediência, voltar para casa e receber novas roupas, como nos diz a parábola
do filho pródigo (Lc 15, 21-22). O homem novo é o que vive a plenitude do plano
de Deus pela participação na Sua vida. Por isso, com Jesus Cristo, volta a ser
possível uma unidade humana entre homem e mulher que seja correspondente ao
plano de Deus, ou seja, que concretize uma comunhão total e vença a tal vergonha
que nascera da concupiscência do olhar e da impureza do coração. Toda a economia
sacramental, nomeadamente o sacramento do matrimónio, faz com que esta realidade
humana participe da vida nova que brota da Páscoa de Jesus, a qual purifica e
eleva até à plenitude o amor humano. É verdade que o perdão do pecado original
pelo baptismo não evita a concupiscência nem a tentação. Permanece a
possibilidade de se ceder à concupiscência e, por isso, a importância de se
estar vigilante e de escolher não o cómodo mas a verdade, mesmo que isso exija
esforço e ascese. Essa concupiscência, que se manifesta como desejo do outro
considerado como uma coisa, terá de ser vencida através das graças de Deus e da
aceitação dessas graças por parte dos homens. A verdade do amor é possível ser
vivida mas tem de se contar com a graça de Deus e com o esforço e a decisão
livre que não se prende às aparências, mas vai até à raiz última do ser, que é
Deus.
O
sacramento do matrimónio
O homem novo têm
um novo horizonte de vida: a eternidade. Por isso, aquele sacramento primordial,
que é o matrimónio, ganha um novo sentido, passando a expressar, no mundo
presente, aquela comunhão definitiva que experimentaremos em Deus. Mas essa
comunhão é como que as núpcias de Jesus com a Igreja (Apo 21). O amor conjugal
agora olha para Jesus, de quem recebe as graças, mas também de quem recebe o
exemplo do que é amar: dar-se totalmente. (Ef 5, 21-33).
Esta é a
fecundidade do amor cristão.
Não apenas um gerar filhos de
pais humanos, mas um gerar filhos para Deus.
O amor cristão
que, pelo sacramento do matrimónio, recebe uma nova dimensão, está em Cristo e a
sua fecundidade, ao mesmo tempo que continua a ser a plenitude da comunhão entre
o pai e a mãe, é também a expressão da fecundidade do amor divino que nos
prepara uma nova morada onde viveremos em plena comunhão com Ele.
É verdade que
esta plenitude nos é prometida para começar a ser gozada já, mas também é certo
que passa pela cruz. Não experimentamos a plenitude se não nos dermos
totalmente. Esse dom de nós deverá ser radical, como foi em Jesus. Ele disse-nos
para O seguirmos pegando na cruz. Se aceitamos a Sua verdade não podemos pôr
limites ou tentarmos com ideias mundanas equilibrar a cruz para não ser um risco
demasiado elevado. Nos nossos tempos isto ganha uma urgência especial. A ideia
de que a ciência nos torna capazes de dominar tudo e, por isso, torna obsoleta a
necessidade de pegar na cruz, está a iludir todos, mesmos os cristãos. É assim
que o sexo passa a ser uma coisa que se usa e que a ciência se encarrega de
controlar, e é assim que a união entre marido e mulher deixa de ser expressão de
uma entrega total e confiante, responsável e não instintiva, para passar a ser
vulnerável ao egoísmo e à concupiscência. Quando se recusam as graças de Deus e
se prefere agir sem fazer caso à dependência original do homem, quando o homem
se considera critério absoluto a partir de uma noção de razão que se arvora em
medida de todas as coisas, quando se cede ao hedonismo que só busca o efémero, a
decadência é evidente e dessa maneira nunca haverá verdadeira e estável
felicidade. Podemos, agora, evitar os filhos ou fazer filhos em laboratórios,
mas, em causa, fica a experiência de uma comunhão fecunda que é a imagem e
semelhança de Deus e que é o verdadeiro caminho para que a pessoa humana se
realize plenamente.
O Papa Bento XVI
disse, no início do seu ministério petrino, para não desconfiarmos de Jesus
Cristo. Jesus não nos tira nada da vida mas dá-lhe plenitude. A teologia do
corpo é isso que nos vem ensinar. Há uma maneira de se viver plenamente como
homens, há uma maneira de se ser família que corresponde à verdade humana. Não
nos deixemos enganar pela aparente capacidade humana de dominar, porque essa
deixará sempre de lado algo que os homens só têm quando se submetem ao Criador e
procuram seguir o Seu plano. |