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OS DIREITOS DO EMBRIÃO

Carlo Casini


1) Uma viragem de consequências trágicas

No número 18 da encíclica “Evangelium Vitae” João Paulo II escreve: “Chega assim a uma viragem de trágicas consequências um longo processo histórico, o qual, depois de ter descoberto o conceito de «direitos humanos» - como direitos inerentes a cada pessoa e anteriores a qualquer Constituição e legislação dos Estados -, incorre hoje numa estranha contradição: precisamente numa época em que se proclamam solenemente os direitos invioláveis da pessoa e se afirma publicamente o valor da vida, o próprio direito à vida é na prática negado e espezinhado, particularmente nos momentos mais simbólicos da existência, como são o nascer e o morrer.”

Inicio a minha comunicação com esta citação porque pretendo demonstrar que reconhecendo e afirmando os direitos do embrião humano não só se reconhecem e afirmam os direitos do embrião humano, mas descobre-se e consolida-se a verdade do direito como tal e, ultimamente (in definitiva), defendem-se os direitos de todos os homens seja qual for a situação em que se encontrem.

 

2) O último desafio

No que diz respeito ao embrião o desafio alcançou a máxima intensidade. A discussão sobre os direitos do embrião começou com a legalização do aborto. Mas para justificar as leis mais ou menos extensamente permissivas não era necessário negar os direitos do embrião. Bastava chamar a atenção para a angústia da mulher perante uma gravidez difícil ou não desejada. Os juristas podiam fundar a legitimação do aborto no estado de necessidade, o qual implica um conflito de direitos e de interesses e não a negação total dos direitos e interesses de um dos sujeitos em conflito. De qualquer modo, o aborto legal era apresentado como uma excepção à regra geral e era qualificado como um “drama”, isto é, como um evento negativo que seria melhor evitar. Por isso a legalização do aborto era frequentemente acompanhada pela ideia de prevenção, ou seja, das metodologias orientadas para impedir que o aborto tivesse lugar; não importa verificar nesta sede se isso era afirmado de boa ou má fé. A atitude compreensiva da sociedade com respeito ao aborto pode ser expresso com numa palavra: tolerância. Tolerância de um mal.

Depois seguiu-se a procriação artificial humana. Para lá das aparências esta provoca uma grande quantidade de mortos entre os seres humanos gerados na proveta e pode subverter as relações familiares do recém-nascido. O direito à vida e à família da maioria dos concebidos é negado. Neste caso não é possível encontrar uma justificação no estado de necessidade. Mas em primeiro plano pode ser pensado e mostrado não um embrião despedaçado pelo aspirador ou pelos instrumentos do cirurgião, mas um recém-nascido nos braços de uma mulher feliz. É muito forte a tentação de retirar significado e valor aos outros numerosos embriões perdidos porque seleccionados antes da transferência para o útero, congelados e deitados fora passado algum tempo, porque se tornaram supérfluos, mortos na fase de descongelamento, submetidos a experimentações destrutivas, vítimas, de qualquer modo, da artificialidade do processo ainda incapaz de imitar perfeitamente a natureza.

O carácter louvável do desejo de paternidade e de maternidade e o resultado, ainda que percentualmente pouco frequente, de uma criança ao colo determinam um atitude compreensível não já de “tolerância” mas de “louvor” e de “encorajamento” se bem que do outro lado da moeda a negação dos direitos do embrião se torne mais radical, sem possibilidades de compromisso, num beco sem saída.

Enfim nestes últimos anos foi descoberta a possibilidade de curar doenças até hoje incuráveis utilizando células estaminais, que se encontram mais facilmente e em maior número nos embriões nos primeiros dias das suas vidas. Naturalmente que a extracção destas células produz a morte do embrião. Não poderei deter-me na questão técnica se – como felizmente parece – a extracção de células estaminais de tecidos adultos consente terapias de eficácia equivalente ou superior às supostas terapias com o uso de células embrionárias. O facto em apreço é que é possível matar embriões para curar doenças graves de pessoas adultas ou pelo menos que parece promissora uma investigação nesta direcção, inevitavelmente destrutiva para os embriões. Por isso provocar a morte de muitos seres humanos na fase inicial da sua existência surge não só como um comportamento tolerável (como no caso do aborto), ou a encorajar e louvar (como no caso da fecundação in vitro), mas, mesmo, jurídica e  moralmente obrigatório. Foi por isso que falei de um desafio extremo. Tudo depende do juízo que for formulado sobre o embrião: é um de nós? Um sujeito ou uma coisa?

 

3) Direitos embrionários: poucos, mas verdadeiros direitos

O tema desta palestra é “os direitos do embrião”. Se há direitos que devem ser reconhecidos serão facilmente elencáveis. Trata-se, obviamente, de direitos embrionários, não no sentido de que são direitos a meias ou, pelo menos, débeis e frágeis, mas no sentido em que são poucos. Trata-se dos direitos que são atribuídos ao homem pelo simples facto de existir. O parlamento Europeu na resolução sobre problemas éticos e jurídicos da fecundação artificial humana aprovada a 16 de Março de 1989 precisou que este direitos são os seguintes:

  • o direito à vida,

  • o direito à família,

  • o direito à integridade física,

  • o direito à identidade biológica e psicológica.

O embrião, se existe, é sempre titular destes direitos.

Pode ter outros direitos, mas só excepcionalmente, no caso de sucessão legítima ou testamentária ou de doação a seu favor, como estabelecem quase todos os códigos de tradição romana. Mas estes últimos direitos não só são eventuais como estão subordinados ao nascimento, o que faz com que os juristas discutam sobre a plena titularidade desses direitos por parte do nascituro. Pelo contrário, para o direito à vida, à saúde, à identidade, à família não se pode distinguir entre embriões que sejam seus titulares e embriões que o não sejam, porque se trata de direitos humanos fundamentais cujo único pressuposto é a existência de um ser humano.

A única distinção possível não diz respeito nem ao conteúdo, nem à força de tais direitos, mas tão só ao modo da sua tutela. Quando o concebido se encontra no seio materno a gravidez constitui uma condição irrepetível de dualidade na unidade (ou de hospitalidade de um ser humano dentro de um corpo de outro ser humano) que pode exigir instrumentos de tutela diversos dos que são usados para proteger os mesmos direitos de um homem já nascido, porque inevitavelmente é necessário passar pela mente e pelo coração da mãe. Mas a situação de gravidez não diz respeito ao embrião na proveta exposto aos assaltos dos mais disseminados métodos de fecundação artificial ao alcance da tentação da ciência experimental, à hipótese do seu uso terapêutico.

Os direitos do embrião implicam em primeiro lugar que ele não pode ser privado da vida. Isto diz respeito não só ao aborto, mas também à selecção antes da implantação segundo o método usado na fecundação in vitro, ao congelamento que prepara o armazenamento de embriões ditos supranumerários ou supérfluos, à sua submissão a manipulações destruidoras, como acontece, em particular, na clonagem ou na alteração do seu património genético.

 

4) O engano da "protecção objectiva"

Mas, como disse, os direitos supõe a existência de um sujeito que é seu titular. Para deduzir que o embrião é um sujeito não basta a protecção que o ordenamento jurídico lhe oferece. De facto, a lei também protege realidades que não são sujeitos e que por isso não têm direitos: as obras de arte, os bosques, o ambiente são protegidos, mas estas realidades não são sujeitos não tendo por isso direitos. A sua protecção está ordenada aos interesses dos sujeitos que têm direitos: os homens, os quais têm o direito de admirar a beleza das obras de arte, a gozar a frescura dos bosques, a não padecer danos do envenenamento ambiental. Por isso quem queira afirmar os direitos do homem desde a sua fase embrionária não pode contentar-se com uma protecção, dita “objectiva”. 

De alguns decénios a esta parte pôs-se o problema de definir “o estatuto jurídico do embrião humano”, expressão usada pela primeira vez por Mitterand, no início dos anos oitenta, inaugurando uma convenção sobre novas biotecnologias. “Não poderemos avançar – disse ele – se primeiro não definirmos o estatuto jurídico do embrião humano”. O pedido para precisar o conteúdo de tal estatuto foi depois repetida por alguns documentos das instituições europeias: na recomendação 1046 de 24 de Setembro de 1986 adoptada pelo Conselho da Europa relativa à utilização de embriões e de fetos humanos para fins de diagnóstico, terapêuticos, científicos, industriais e comerciais e em duas resoluções do Parlamento Europeu de 16 de Março de 1989 sobre problemas éticos e jurídicos da engenharia humana e da procriação artificial humana.

É evidente que a definição de um tal estatuto exige em primeiro lugar a resposta a uma pergunta fundamental: trata-se de um objecto ou de um sujeito? De uma pessoa ou de uma coisa?

Responder a esta pergunta é particularmente necessário se queremos estabelecer regras e ter comportamentos racionais. Não é, de facto, razoável decidir o modo de se comportar em relação a qualquer entidade se antes não conhecemos a sua natureza e o seu valor. Por isso os médicos e biólogos têm actualmente uma missão extraordinária que se junta às sua missões tradicionais. Eles não devem somente curar as doenças e proteger a saúde. Devem também demonstrar a existência ou não existência do homem.

Mas também para o jurista é urgente e indispensável responder àquelas duas perguntas. O Direito, de facto, é uma disciplina de relações entre sujeitos em referência às coisas. Uma categoria essencial do pensamento jurídico é a distinção entre sujeitos e objectos. Por isso a recusa de responder às perguntas acima indicadas contrasta radicalmente com a racionalidade jurídica.

E no entanto há anos que decorre a tentativa de evitar a resposta através dos mais diversos expedientes. Um dos expedientes é aquele a que recorreu a jurisprudência Constitucional Ibérica. Em Portugal o Tribunal Constitucional na sentença nº 25 de 19 de Março de 1984 escreveu pensamentos que importa reler: “A vida humana é na natureza das coisas percebida mediante os sentidos e a intuição sensível ... essa torna-se evidente, sem necessidade de demonstração conceptual ou racional ... o mesmo acontece com a vida humana intra-uterina anterior ao nascimento. Os progressos da ciência e particularmente da genética, da embriologia e da fetologia sã nos dia de hoje tão conhecidos que nos dispensam aqui de aprofundamentos e demonstrações de qualquer ordem ... foi possível à ciência jurídica abrir-se à compreensão  desta realidade e prosseguir no sentido de atribuir ao nascituro verdadeiros direitos próprios. A ideia de capacidade jurídica restrita do nascituro perde todo o aspecto chocante se se considera que o nascituro enquanto já concebido é já um ser humano vivo e como tal merecedor de protecção ... Por quanto a vida do nascituro e da mãe pareçam prima facie, ter ou dever ter o mesmo conteúdo essencial – tanto que a ciência afirma não existir nenhuma diferença qualitativa entre uma e outra – não podemos esquecer que para o direito não pode ser assim, uma vez que a ciência jurídica ainda está longe de uma completa equiparação, não obstante alguns progressos que se estão realizando lentamente. A evolução a que se chegou a tal respeito não é tal que permita falar de capacidade jurídica geral somente restrita do nascituro e é portanto impossível, ou ao menos muito difícil, organizar a defesa da vida humana que já lhe compete constitucionalmente”.

Propus esta longa citação porque ela fotografa irrepreensivelmente a situação actual do pensamento jurídico. Para compreender bem isto importa recordar que no âmbito jurídico o sujeito é definido como entidade dotada de capacidade jurídica. Por sua vez a capacidade jurídica é definida como a aptidão para ser titular de direitos. Parece-me relevante sublinhar que neste texto se reconhece que está em curso um caminho árduo cujo desaguamento final deveria ser a afirmação da subjectividade jurídica (ou seja, da capacidade jurídica) do embrião e que esse resultado é qualificado como um “progresso”.

Na realidade esta sentença de 19 de Março de 1984 é contraditória, porque por um lado afirma que o nascituro tem verdadeiros e próprios direitos e por outro nega-lhe a capacidade jurídica, que é precisamente a consequência da atribuição de direitos. Pode-se dizer que a esta sentença faltou a coragem da coerência nas conclusões. Infelizmente as consequências foram devastadoras. De facto na sentença seguinte do mesmo Tribunal de 29 de Maio de 1985 lê-se que “a vida intra-uterina participa da protecção que a Constituição confere à vida humana enquanto bem constitucionalmente protegido, mas não pode gozar da protecção constitucional do direito à vida propriamente dito que pertence às pessoas ... Somente as pessoas é que podem ser titulares de direitos fundamentais, uma vez que não se podem dar direitos fundamentais sem sujeito; por isso a protecção especial do direito à vida não vale directamente e plenamente para a vida intra-uterina e para o nascituro”. Aqui se mostra o efeito devastador do reconhecimento de uma protecção somente “objectiva” do embrião que para se justificar necessita de introduzir a perversa distinção entre ser humano e pessoa. A ulterior consequência negativa transparece da mais recente sentença de 18 de Abril de 1998 do Tribunal Constitucional Português que reteve não em contraste com a Constituição o princípio de autodeterminação da mulher com respeito ao aborto limitado às 10 primeiras semanas de gestação: é evidente que a atribuição a um sujeito de um poder ilimitado de eliminar a vida embrionária significa retirar toda e qualquer protecção a tal vida.

 

5) A Convenção de Oviedo sobre a Bioética

Não temos tempo de confrontar esta jurisprudência portuguesa com a de outros países. Basta-me constatar a insuficiência da teoria da assim chamada “protecção objectiva do embrião” para a tutela dos direitos deste último e a ambiguidade da não demonstrada distinção entre ser humano e pessoa. Estas insuficiências também se encontram na Convenção de Bioética do Conselho da Europa assinada em Oviedo em 1997. No artigo 18 podemos ler aí que “quando a investigação sobre embriões in vitro é admitida pela lei, esta assegura uma protecção adequada ao embrião”. Importa notar, em primeiro lugar, que se dá como possível e legal a experimentação inevitavelmente destrutiva sobre os embriões, o que nega de raiz o direito à vida. Exige-se, em segundo lugar, uma “protecção adequada” dos embriões. Mas qual deve ser o parâmetro de adequação? A protecção deve ser adequada à natureza de sujeito humano ou à de um objecto, mais ou menos avaliado como precioso? O equívoco torna-se ainda mais evidente quando se lêem os artigos 1 e 2 da Convenção. O primeiro declara que as partes contraentes “protegem o ser humano na sua dignidade e na sua identidade e garantem a toda a pessoa, sem discriminação, o respeito da sua integridade e dos seus outros direitos”. Como se vê retorna a distinção entre “ser humano” merecedor de protecção (objectiva), mas não de garantias dos direitos (subjectivos) que pertencem às pessoas. Todavia o artigo 2 afirma que “o interesse e o bem do ser humano devem prevalecer sobre o interesse da sociedade e da ciência”.

Mas por que razão, se o ser humano não é pessoa, é que a ciência deveria deter-se perante ele? Pode-se admitir uma terceira categoria entre as coisas e os homens que compreenda entidades que são qualificáveis como meio homens ou como qualquer coisa mais que as coisas?

 

6) A condição do embrião humano e a condição de escravo

Esta última pergunta não é teórica. A história humana, de facto, já conheceu as categorias de meios homens; mais ainda, seres humanos reduzidos à condição de coisas: basta reflectir sobre as teorias racistas e em geral sobre a instituição da escravatura. O Direito Romano considerava a morte de um escravo um dano e não um homicídio. Um jurista de 1500, Vultenius, sintetizou assim a condição do escravo: “servus homo, non persona: homo enim naturae, persona iuris vocabulum”. O Supremo Tribunal dos Estados Unidos em 1857 na conhecida sentença Dred Scott sentenciou assim: “Os negros segundo a lei civil não são pessoas”. Diante desta tragédia cultural, que diz respeito não só aos escravos e aos negros, mas também, de vez em quando, segundo os tempos, às mulheres, às crianças, aos estrangeiros, aos de outra raça, aos doentes mentais, João Paulo II, no nº 60 da Evangelium Vitae, coloca a pergunta: “como poderia um indivíduo humano não ser uma pessoa humana?”.

 

7) O contributo do Direito: o conceito de pessoa

Até aqui formulei algumas perguntas. Agora tentarei responder como jurista. Apelarei para o Direito como regra de justiça para encontrar as respostas justas.

Primeiro dois esclarecimentos. O primeiro é de ordem técnica. Como já referi o modo como o Direito introduz o sujeito no ordenamento jurídico é através do reconhecimento da sua capacidade jurídica. Para o Direito isto equivale a reconhecer uma entidade como pessoa. Os filósofos podem discutir entre eles acerca da definição de pessoa, mas no campo do Direito a pessoa é o ente titular de direito. Por isso podemos falar de pessoas jurídicas também em referência a entidades não humanas como, por exemplo, as sociedades anónimas ou de acções, as municipalidades, as províncias, etc. O Direito também pode, portanto, criar pessoas. Dantes, quando o Direito era mais bárbaro, atribuía-se a si mesmo também o poder de cancelar as pessoas embora se tratasse de seres humanos. A pena de desterro fazia com que o cidadão expulso da civitas fosse considerado como um animal: qualquer pessoa podia matá-lo impunemente. Por isso, as Constituições modernas e primeiramente ainda as Declarações nternacionais dos direitos do homem dispõem que “ninguém, seja onde for, pode ser privado da capacidade jurídica”. Portanto o Direito que pode criar pessoas jurídicas deve reconhecer como pessoa, todo o ser humano (cada ser humano) seja embora com o significado limitado de sujeito apto para ser titular de direitos e de qualquer modo sempre titular dos direitos inerentes à simples existência como homem: à vida, à saúde, à identidade.

 

8) O contributo do Direito: o que é que distingue a lei do mando do mais forte? A igualdade como eticidade específica do Direito.

Chegados aqui, podemos introduzir a segunda reflexão formulando outras duas perguntas bem conhecidas daqueles que meditam sobre a essência mesma do Direito e das suas relações com a justiça.

“O que é que distingue o Estado de uma associação de delinquentes bem organizada?”

“O que é que distingue a lei do mando do mais forte?”

Através de uma longa fadiga histórica a cultura moderna chegou a uma resposta: a eticidade específica do Direito consiste na igualdade. Esta deve ser entendida não só no sentido formal de uma aplicação igual da lei a todos os consociados, mas também no sentido formal de uma igualdade de todos os seres humanos, enquanto tais, no mundo jurídico. Este princípio está consagrado em todas as modernas Cartas Constitucionais e é explanado no preâmbulo da Declaração universal dos direitos do homem, onde se lê que “o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo consiste no reconhecimento da dignidade de cada ser pertencente à família humana e dos seus iguais e inalienáveis direitos”. Este pensamento responde àquelas duas antiquíssimas perguntas.

O Estado distingue-se de uma associação de delinquentes porque tem como finalidade a defesa e a promoção da igual dignidade de todo o ser humano. A lei distingue-se do mando do mais forte porque ela, na sua raiz, garante um viver civil ordenado no qual a cada um é reconhecida a igual dignidade. Tal igualdade em dignidade postula que o valor de referência sempre entendido como supremo é a vida humana porque ela é o denominador comum, mesmo quando são diversas as condições do viver  no que diz respeito à riqueza, idade, saúde, inteligência, etc. Na base dos Estados e das leis estatais está implícito o pacto pelo qual todos e cada um se empenham nos sacrifícios que derivam da convivência, conquanto que sejam salvas e garantidas as suas vidas. Sob este aspecto a distinção entre ser humano e pessoa introduz a mais perversa de todas as discriminações, porque retira significado à existência de algumas categorias de homens como sejam, em particular, como escreve o Papa, aqueles que se encontram nas condições mais marginais e, por isso, mais emblemática da existência, quais são o nascer e o morrer.

Por isso, diante do embrião humano, hoje exposto às supremas agressões quando se encontra num recipiente de vidro, talvez aprisionado em azoto líquido, a meditação alcança não só os direitos daquele pequeníssimo e incipiente filho do homem e da mulher, mas também todos os alicerces da nossa vida civil: o Estado, a legalidade, a liberdade, a democracia, a laicidade, a ciência, a medicina, o direito.

 

9) O contributo do Direito: um guia para a acção também em caso de dúvida

A tarefa dos médicos é também, já o disse, principalmente de ordem cultural. Eles com os seus instrumentos modernos (ecografias, fibras ópticas, etc.) e as suas descobertas fascinantes (DNA, cromossomas, genes, desenvolvimento do primeiro big bag dito concepção) podem dar-nos a possibilidade de ver com olhos mais penetrantes (com os fornecidos pelas pupilas mas também com os da mente) aquilo que antes não víamos.

Mas os juristas têm também actualmente a tarefa de dar um contributo essencial para o reconhecimento dos direitos do embrião. Por tudo quanto já dissemos, em particular pelo que diz respeito ao conceito de pessoa e ao princípio de igualdade e também pela natureza mesma do Direito que “guia para a acção”. Os filósofos podem esperar no que concerne às suas decisões. O Direito não. Quando é a vida humana que está em jogo o Direito não pode esperar. Quando uma avalanche se abate sobre os esquiadores, um naufrágio provoca uma multidão de náufragos, um terramoto soterra sob os edifícios os habitantes, a regra jurídica não espera que se resolva a dúvida sobre se debaixo da neve, no mar, ou sobre as ruínas estejam vivos ou mortos. Ela impõe imediatamente a acção e em caso de dúvida, até à última dúvida, supõe a vida e os direitos da vida, a solidariedade para com a vida.

Quando uma pessoa desaparece, o Direito antes de declarar a sua morte presumida espera muitos anos até eliminar a última dúvida.

Porque é que aqueles que mesmo depois da demonstração médica ainda conservam alguma dúvida não deverão no campo do Direito escolher a vida?

 

10) Sinais de esperança

Gostaria de encerrar esta conferência com optimismo. Por isso procuro recolher centelhas de esperança no âmbito da experiência jurídica. Não estou só nas reflexões que proponho. Não me refiro ao pensamento da Igreja Católica e do seu supremo Pontífice, a que já me referi várias vezes. Penso em algumas importantes tomadas de posição de organismos estatais ou internacionais. Os direitos do embrião emergem como direitos de um verdadeiro e próprio sujeito na jurisprudência constitucional alemã. Escolho, em especial, uma passagem da sentença constitucional de 25/02/1975 e uma segunda da mais recente decisão do mesmo Tribunal pronunciada em 28/05/1993.

“O direito à vida é garantido a quem quer que viva; entre as várias fases da vida em desenvolvimento antes do nascimento e entre o nascido e o nascituro não há nenhuma diferença. «Cada um» no sentido do art. 2, vírgula 2, alínea 1 é «cada vivente»; por outras palavras: cada indivíduo humano que possui vida; «cada um» é também, portanto, o ser ainda não nascido” ...” O ordenamento jurídico deve garantir “um autêntico direito à vida do concebido”, “o nascituro em todos os momentos da gravidez é titular de um próprio autónomo direito à vida”, “o direito à vida do nascituro não pode ser entregue, mesmo que só por um lapso de tempo circunscrito, à decisão livre de uma terceira pessoa mesmo que se trate da mãe”.

Também merece ser lida a sentença constitucional polaca de 28 de Maio de 1997. Nessa o direito à vida do concebido é ligado ao conceito de “Estado democrático de direito” no qual joga um papel primário o princípio de igualdade. “Um Estado não se realiza senão como comunidade de homens – lê-se aí – e só os homens é que podem ser sujeitos de direitos e de deveres ... O valor fundamental do homem é a sua vida; privar o homem da sua vida equivale a destruí-lo como sujeito de direitos e deveres ... A primeira regra deve ser o respeito do valor sem o qual é destruída toda a subjectividade jurídica, ou seja a vida humana desde a concepção ... Também a vida humana antes do nascimento não pode ser discriminada. Faltam critérios suficientemente precisos e fundados que permitam uma tal discriminação em referência às várias fases do desenvolvimento humano”.

Não é esta a sede para examinar seriamente a evolução da jurisprudência do Tribunal Constitucional Italiano. Mas assinalo que a última decisão sobre embriões pronunciada pelo nosso Tribunal (nº 39 de 10/02/1997) regista em termos muito nítidos a evolução que estou assinalando. Escreve a Consulta que houve uma compreensível maturação para um “maior reconhecimento” também no plano internacional e mundial “do valor da vida concebida” e que “se reforça a concepção ínsita na Constituição italiana, em particular no art. 2, segundo a qual o direito à vida, entendido na sua extensão mais lata, se deva inscrever entre os direitos invioláveis, ou seja, entre aqueles que ocupam no ordenamento uma posição privilegiada, enquanto pertencem à essência dos valores supremos em que se funda a Constituição italiana.”

Sobressai, neste panorama, pela sua clareza, a conclusão do Comissão Nacional de Bioética italiana no documento sobre o embrião humano de 22 de Junho de 1996. Não se trata de um acto dotado de significado jurídico, mas, dada as funções da Comissão, que opera no quadro da Presidência do Conselho de Ministros, é certamente um conselho autorizado para os legisladores e para os juristas. Eis a passagem: “A Comissão unanimemente reconhece o dever moral de tratar o embrião humano, desde a fecundação, segundo os critérios de respeito e de tutela que se devem adoptar  para com os indivíduos humanos a quem se atribui comummente a característica de pessoa”.

Iniciei o meu discurso formulando a tese de que o reconhecimento dos direitos do embrião ilumina também o significado do direito como tal. Comparei a condição actual do embrião com a do escravo. Trata-se de um pensamento que encontra confirmação numa sentença do Tribunal Constitucional Húngaro de 17/12/1991, nº 64: “A questão coloca-se no sentido de que a posição jurídica do homem deveria ser actualizada seguindo mudanças dos conceitos humanos da ciência e da opinião pública, ou seja, também o conceito jurídico de homem dever-se-ia estender à fase pré-natal, desde a concepção. A natureza e o alcance de tal extensão somente poderiam ser comparados à abolição da escravatura, melhor, seriam ainda mais significativos porque a subjectividade jurídica do homem alcançaria o seu limite extremo possível e a sua perfeição: os vários conceitos de homem poderiam coincidir”.

 

11) O olhar contemplativo

O olhar sobre o embrião é um olhar humano e, por isso, é também o olhar da razão e da justiça. Mas deve ser também, como mais uma vez escreve o Papa na Evangelium Vitae, um olhar contemplativo, ou seja, um olhar que intui em conjunto o sentido, a grandeza, o mistério do homem.

É, por isso, um olhar profundamente humano. Um olhar que ao reconhecer o homem no mais pequeno reconhece também claramente a humanidade de quem olha.

 
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