A questão do aborto volta a estar na ordem do
dia.
Fala-se agora na hipótese de descriminalização (ou
despenalização) do aborto, mantendo embora a sua proibição. O aborto
deixaria de ser crime, continuando, porém, uma prática ilícita e
proibida, não podendo ser realizado em hospitais públicos ou com
autorização do Estado. Não era exactamente isto que era proposto no
referendo de 1998, embora a pergunta então formulada (de forma pouco
isenta) fizesse referência apenas à descriminalização. Estava em
jogo a legalização ou liberalização do aborto, que passaria a ser
praticado com a conivência ou colaboração activa do Estado, em
unidades de saúde públicas e com recursos públicos. Esta proposta
visará impedir apenas o julgamento da mulher grávida que aborta,
podendo recolher assim um mais amplo consenso.
Importa,
porém, esclarecer que a tutela da vida humana implica um regime
legal coerente e que uma brecha na coerência desse regime pode
afectá-lo no seu todo. Não se pode também ignorar que neste âmbito
se assiste a uma estratégia de etapas sucessivas e que à
descriminalização mais facilmente se sucederia a
liberalização.
Entende-se hoje geralmente que a função
primordial do Direito Penal é o reforço da confiança da comunidade
na vigência das normas que protegem bens jurídicos fundamentais na
perspectiva do regular funcionamento dessa comunidade. Mais do que
intimidar os potenciais violadores das normas, há que confirmar e
fortalecer a atitude dos que a cumprem por motivos de ordem moral
que vão para além desse temor. Esta função, que poderíamos
considerar “pedagógica”, assume uma importância capital quando está
em jogo o bem jurídico e valor supremo que é a vida humana. A
própria ordenação sistemática dos tipos de crime no Código Penal
reflecte esta proeminência do valor da vida humana. Os crimes contra
a vida e os crimes contra a vida intra-uterina são os primeiros do
elenco. Se o Código Penal define como crimes quaisquer atentados à
integridade física (uma simples bofetada), quaisquer atentados à
honra (uma qualquer injúria), ou à propriedade (um furto de um
qualquer objecto de valor insignificante), estranho e incoerente
seria que não definisse como crime um atentado à vida humana como é
o aborto.
A simples definição solene de uma conduta como
crime é relevante na perspectiva da aludida função pedagógica do
Direito Penal. E esta função mantém-se ainda que as condenações não
correspondam minimamente à frequência da prática do crime (como
sucede com o aborto ou também com o consumo de droga, por exemplo)
ou se revistam de carácter simbólico.
Não terá qualquer
sentido, nesta linha, transformar (como sucedeu com o consumo de
droga) o aborto em simples contra-ordenação, sancionável com uma
coima. As condutas qualificadas como contra-ordenação (o
estacionamento de um automóvel em local proibido, por exemplo)
caracterizam-se precisamente pela falta da sua “ressonância ética”,
falta que obviamente não se verifica num atentado à vida
humana.
É certo que se poderá despenalizar apenas a conduta
da mulher grávida que aborta, mantendo-se a penalização de quem
(médico, parteira, etc.) provoca a aborto com o consentimento dessa
mulher e faz dessa prática uma actividade lucrativa (muitas vezes
altamente lucrativa). As críticas aos julgamentos que se têm
realizado esquecem que é só sobre estas pessoas que têm recaído, e
provavelmente virão a recair, penas de prisão. Mas não vislumbro
algum princípio de ordem ético-jurídica ou lógica que justifique, em
coerência, a criminalização desta conduta quando a conduta da mulher
grávida que nela consente não é criminalizada. O que se verifica é
que estas pessoas não beneficiarão das circunstâncias atenuantes de
que poderão beneficiar as mulheres grávidas que abortam (tal como
não beneficiará dessas circunstâncias atenuantes o pai da criança
que seja cúmplice ou autor moral para se livrar das suas
responsabilidades, indiferente ao trauma que representa o aborto
para a mãe).
Não haverá, então, espaço para considerar o
sofrimento das mulheres que abortam?
Muito sabiamente, o
comunicado da Conferência Episcopal sobre esta questão, afirma que
os tribunais deverão, «na análise das circunstâncias e possíveis
atenuantes», aliar «a justiça e a misericórdia». Como juiz da área
criminal e como cristão, não posso ser indiferente a este
desafio.
Ensina-nos o exemplo de Jesus Cristo que há que ser
firmes na condenação do erro e compreensivos e misericordiosos para
com a pessoa que erra. A misericórdia não é a indiferença ou
cumplicidade diante do mal. Não anula a justiça, antes a completa e
enriquece.
No caso do aborto, estamos perante um crime que na
sua objectividade se reveste de extrema gravidade (neste sentido, a
Gaudium et Spes fala em «crime abominável»), pois está em causa um
atentado à vida do mais inocente e indefeso dos seres humanos. Mas
há que distinguir essa gravidade objectiva da responsabilidade
subjectiva. Há que considerar, nesta perspectiva, que a mulher
grávida que aborta normalmente não o faz com plena consciência da
gravidade do seu acto, pode estar sujeita a pressões sociais que
limitam a sua liberdade ou pode ser motivada por razões ligadas a
dramáticas condições de existência.
O regime legal vigente
permite considerar estas circunstâncias atenuantes e a opção pela
suspensão da execução da pena. É essa opção que se tem verificado
sempre nas condenações de mulheres grávidas que abortam e que
certamente continuará a verificar-se. A suspensão da execução da
pena mantém a censura solene do crime (e está, portanto,
salvaguardada a função pedagógica do Direito Penal), não havendo
lugar ao cumprimento de qualquer pena se o condenado não cometer
crimes num prazo determinado. Associa-se, assim , em meu entender, a
justiça e a misericórdia, a condenação do erro e a compreensão pela
situação concreta da pessoa que erra, com a consideração das
circunstâncias atenuantes que rodeiam a sua conduta.
Diga-se
ainda que o regime vigente também permite recorrer nestes casos,
quando se considere diminuta a culpa, à suspensão provisória do
processo (sem que haja, pois, lugar a julgamento e condenação) com
imposição de injunções e regras de conduta.
Descriminalizar
(ou despenalizar), em nome da compreensão para com a pessoa que
erra, significaria anular a censura do erro, do crime na sua
objectividade. Seria sacrificar a justiça em nome de uma pretensa
misericórdia, quando, como disse, esta não anula a justiça, antes a
completa e enriquece. E seria também sacrificar a verdade. À mulher
adúltera, disse Jesus: «Vai e não tornes a pecar». Não lhe disse que
não tinha pecado.
Pedro Vaz Patto Juiz de Direito e
membro da CNJP |