CELEBRAÇÃO DA PAIXÃO DO SENHOR 2019
SÉ NOVA – COIMBRA
Caríssimos irmãos e irmãs!
Somos, hoje, convidados a contemplar a cruz de Jesus, o sinal da nossa redenção.
Numa sociedade que esconde os problemas, o sofrimento e a morte, a cruz tornou-se pouco popular. Prefere-se exaltar o bem estar, mesmo que falso, a alegria, mesmo que superficial, a vida, mesmo que ferida de morte.
A contemplação do mistério da cruz de Cristo e da nossa cruz é um exercício de humildade e de humanidade. Afinal ele está presente e faz parte de nós como fez parte da vida terrena de Jesus, apesar de ser o Filho de Deus.
Os grandes santos e místicos encontraram na sua contemplação um caminho de luz para as suas vidas, viram nela a expressão da condição humana e encontraram nela a condição para se aproximarem de Deus e para viverem a solidariedade com o próximo. A espiritualidade da cruz não é uma busca doentia do sofrimento nem uma contemplação fechada na dor, mas a única possibilidade para a abertura a um caminho de fé e de amor.
A cruz de Cristo choca e interpela como choca e interpela a cruz da humanidade. Os próprios discípulos de Jesus embatem contra essa realidade difícil de compreender e aceitar, tão entusiasmados estavam com a possibilidade de verem implantado um reino isento de sinais de morte. Depressa perceberam que esse mundo não existe, ao verem o próprio Filho de Deus passar pela dureza do sofrimento como caminho para a vitória.
Hoje, como há dois mil anos, são variadas as tentativas de fugir à cruz, embora ela se imponha sempre.
Muitos dos que viram passar Jesus com a cruz aos ombros ou dos que passaram pelo calvário enquanto ali estava suspenso, procuraram não olhar para não ver, quiseram a todo o custo ser-lhe indiferentes. Quanto mais fugiram dela mais a sentiram pesada na sua vida e mais se viram oprimidos pelo seu peso.
A indiferença é uma das mais comuns tentações diante da cruz: fazer de conta que não existe e que a vida pode passar-lhe ao lado. Quantas tentativas de alienação diante das dificuldades que surgem das mais diversas formas! A indiferença torna-se uma das mais perniciosas ilusões da sociedade que anseia por esconder os sinais da debilidade, da pobreza, das injustiças e da morte.
A negação da cruz é outra atitude frequente no tempo de Jesus e no nosso tempo. Muitos pensavam que Jesus não podia morrer porque era Filho de Deus. O Pai não o deixaria passar pela morte e não permitiria que fosse suspenso no madeiro. Pedro declara não conhecer aquele Jesus que caminha para o calvário, nunca O ter visto antes e não poder aceitar que o projeto de instauração do seu Reino tivesse de passar por aquela humilhação.
O sonho da humanidade consiste em eliminar todos os sinais da cruz, em ter uma vida sempre bela e forte, em alcançar uma felicidade que não inclua nenhum resquício de sacrifício. Esquece que faltaria o amor, que passa sempre pela doação, pela entrega, pela solidariedade e pelo esquecer-se de si para estar com todos, mesmo com os que sofrem e perderam a esperança.
Maria e João permanecem de pé junto à cruz do Senhor. Não lhe são indiferentes nem a negam, pois não podem passar ao lado do amor por aquele Homem e Filho de Deus que conhecem e amam como filho e como irmão. Acreditam que a cruz é sinal de superação do mal e da morte pelo poder de Deus.
A fé cristã proclama a cruz como sinal da superação, como lugar da esperança contra toda a esperança, pois aponta sempre para a aurora da ressurreição. Aquilo que não podemos vencer por nós, torna-se possível pelo poder do amor de Deus. Mesmo quando falham todas as esperanças humanas, não falta a esperança que nasce da força do amor redentor de Deus que não poupa o Seu próprio Filho, mas O entrega à morte por todos nós.
Jesus aceita a cruz e faz dela o lugar da maior solidariedade no amor. Mesmo que falhe o amor humano, mesmo que falte a solidariedade dos outros, não falta a solidariedade do amor de Deus expressa na cruz de Cristo elevada sobre o mundo e impressa no coração dos crentes.
Na cruz, Jesus é o Rei do amor, o Senhor da esperança, o Deus da misericórdia, o Irmão ao lado de cada irmão, a companhia na maior solidão. Quando tudo e todos falham, Ele permanece eloquente no seu silêncio, que somente o coração pode ouvir.
A cruz de Jesus é o sinal maior da solidariedade no amor. Convida-nos a acompanhar as cruzes dos outros e a estar lá, de pé, na certeza de que, pelo poder de Deus, sempre se abre a porta da redenção.
Este dia de Sexta Feira Santa convida-nos à contemplação da cruz do Senhor, a aceitarmos a nossa própria cruz e a estarmos presentes junto da cruz dos outros.
A fé tem o poder de nos dar um sentido para a vida em todas as situações, nas de bem estar e nas de desolação, como mais nada nem mais ninguém nos pode oferecer. Não nos aliena da realidade com tudo o que ela tem, mas abre-nos à possibilidade da esperança no amor.
Para que a cruz de Cristo não seja estéril, a sua contemplação na fé precisa de ser acompanhada pela solidariedade para com os outros, particularmente para com os que sentem mais duro o caminho, em virtude da solidão, da doença, da divisão, da indiferença ou do ódio.
Para que a cruz de Cristo seja luz de esperança na aridez do caminho, a sua contemplação completa-se com a caridade para com os pobres, tanto no corpo como no espírito.
A contemplação da cruz de Cristo pode tornar-se para nós um programa de vida, o maior programa de vida que nos permite estar em paz connosco, com os outros e com Deus.
Enquanto a adoramos solenemente nesta tarde em que Cristo morre suspenso entre o céu e a terra, peçamos ao Senhor a graça de transfigurar a nossa cruz e a cruz dos nossos irmãos em luz de ressurreição.
Coimbra, 19 de abril de 2019
Virgílio do Nascimento Antunes
Bispo de Coimbra