AS MULHERES E OS ESPAÇOS PÚBLICOS: A “GEOGRAFIA DO MEDO”
Daniela Sofia Neto
Comissão Diocesana Justiça e Paz
Associamos frequentemente os espaços públicos a locais fundamentais para o exercício da cidadania, à ação coletiva e relacionados a ideais de liberdade. Filósofos como Thomas Hobbes, John Locke e Jean-Jacques Rosseau oferecem-nos diferentes perspetivas sobre o exercício da cidadania e as condições sob as quais os indivíduos interagem e coexistem. No entanto, nem sempre têm correspondido ao que se sente, o que tem sido objeto de análise, seja por parte da sociologia, da geografia ou da ciência política, para dar alguns exemplos.
Indagar sobre os espaços públicos também nos remete para Henri Lefebvre e aos postulados teóricos acerca do “Direito à Cidade”, que assentam numa aceção do direito coletivo de todos os indivíduos participarem na vida urbana e que urge mobilizar para o assunto que se pretende discutir neste artigo: as mulheres, os espaços públicos e a “geografia do medo”
Uma das críticas mais consubstanciadas relativamente ao espaço público, bem como uma das reivindicações relativas ao “Direito à Cidade”, e que merece o nosso olhar atento, prende-se com a “geografia do medo”. Este conceito dá conta do modo como o medo restringe o uso dos espaços públicos e sobretudo da forma como é sentido especialmente por mulheres e raparigas, como demonstra a investigação neste domínio (e.g. Bowman, 1993). O medo da violência (sobretudo sexual) e do assédio tem vindo a moldar a forma como as mulheres fazem uso dos espaços públicos, restringindo a sua mobilidade, atividade e as suas perceções de segurança. Para muitas mulheres, o princípio democrático que (supostamente) norteia a participação nos espaços públicos é exercido com sentimentos de medo e de insegurança.
O medo molda rotinas e hábitos perante a expectativa de que algo (de mau) aconteça. Este sentimento de medo que abordo é transmitido às mulheres e raparigas desde muito cedo sobre o seu lugar e por via de códigos que ditam de que forma se devem comportar, vestir, a que horas podem (ou não) estar nas ruas. São igualmente informadas sobre mecanismos para se acautelarem para evitar ser vítimas de um crime (por exemplo, falar ao telemóvel com alguém quando percorrem ruas com pouca iluminação à noite). Em termos práticos, as mulheres frequentemente ajustam os seus trajetos, evitam certos lugares como mecanismos de segurança à ameaça percebida de violência (sexual), o que lhes impõe limites à autonomia e liberdade. No fundo, ao exercício da cidadania plena e ao “Direito à Cidade”.
De acordo com o inquérito da Agência dos Direitos Fundamentais da União Europeia sobre a Violência Contra as Mulheres, 53% das mulheres evitam determinadas situações ou lugares pelo medo de serem atacadas física ou sexualmente. Em comparação, os inquéritos sobre a vitimização da criminalidade e o medo do crime mostram que muito menos homens são afetados por tais limitações (FRA, 2014).
Não é inoportuno pensar que os mecanismos que as mulheres adotam para evitar a violência sexual de que poderão ser alvo nos espaços públicos se impõem como formas de violência simbólica (cfr. Bourdieu, 2021). Do mesmo modo, este medo não são apenas emoções ou sentimentos, mas mecanismos de controlo social que ditam o lugar de subalternidade das mulheres na sociedade e que as relembra permanentemente das desigualdades de poder entre homens e mulheres.
A violência e o assédio sexual, mais do que danos pessoais, são danos para toda a sociedade, impedindo a construção de uma sociedade baseada nos princípios basilares da igualdade de género. É, nesta senda, imperativo o debate em torno de uma noção de cidade democrática, que promova a mobilidade e a segurança para todos os indivíduos, que requer a adoção de políticas e estratégias que vão ao encontro dos problemas que a sociedade enfrenta.
No âmbito da Doutrina Social da Igreja, a violência contra as mulheres também tem sido alvo de reflexão. Na encíclica Fratelli Tutti (2020), o Santo Padre condena todas as formas de violência e discriminação contra as mulheres e destaca a necessidade de promover uma cultura de igualdade. A mais recente Declaração Dignitas Infinita sobre a dignidade humana, reconhece a violência contra as mulheres (como é o caso do assédio) como um escândalo global. Este documento é elucidativo do modo como as “palavras” (entenda-se, “as leis”) reconhecem o princípio da igualdade entre homens e mulheres. Não obstante, todos os dias vemos (nos media) práticas que continuam a perpetuar e a reproduzir desigualdades e tantas formas de violência contra as mulheres.