QUARTA-FEIRA DE CINZAS 2023
Caríssimos irmãos e irmãs!
Iniciamos a Quaresma com a imposição das cinzas sobre as nossas cabeças, em sinal de arrependimento e de penitência pelos nossos pecados e pelos pecados dos membros da Igreja. Esta é a nossa resposta mais sincera e humilde à graça que recebemos no batismo, quando nos tornámos participantes da santidade de Jesus Cristo, o Santo de Deus.
O pecado tem muitos rostos pessoais e comunitários, fere a nossa condição humana e fere a comunidade que formamos, fere a nossa vocação comum de homens e mulheres chamados a ser santos e fere a Igreja, o Corpo de Cristo, convocado para ser no meio do mundo sinal visível da santidade de Deus.
Temos, porventura, levado pouco a sério a revelação bíblica acerca da nossa condição de criaturas de Deus, boas e belas, mas marcadas pela inclinação para o mal e para o pecado. O espírito do mundo encontrou brechas na nossa Igreja e entrou de formas mais abertas ou mais veladas, deixando os seus membros reféns do relativismo ético dominante.
Hoje, é urgente reconhecermos a gravidade dos pecados pessoais, eclesiais, sociais, que uma consciência mais sensível e formada evidencia e que produzem uma escalada de consequências tão dramáticas para a humanidade. Não há mais lugar para silenciar a voz de Deus que clama por meio dos seus profetas nem para silenciar a voz dos homens que sofrem todas as violências nascidas do pecado.
Não restam dúvidas de que precisamos do arrependimento e da penitência da Quaresma e da vida para nos recentrarmos em Deus que é santo e quer fazer de nós um povo a viver a sua vocação à santidade. Na nossa tradição cristã, temos no exame de consciência, na confissão dos pecados, no reencontro com o perdão de Deus por meio da absolvição e na reparação do mal com o bem, os meios da graça para retomar o caminho novo que nos é sempre oferecido.
Pecámos, Senhor, tende compaixão de nós! Eis a oração suplicante do salmista, que repetimos com verdade e num plural que nos inclui a nós e à nossa Igreja. Dai-nos a graça de nos reconciliarmos com Deus e com os irmãos e de, por meio de Cristo, nos tornarmos justiça de Deus, como nos ensinou o Apóstolo na Segunda Epístola aos Coríntios.
Com amargura ouvimos nesta celebração a palavra do profeta Joel, que convida os sacerdotes a chorar entre o vestíbulo e o altar e a dizer: “Perdoai, Senhor, perdoai ao vosso povo e não entregueis a vossa herança à ignomínia e ao escárnio das nações”. De facto, sentimos na nossa carne a ignomínia e o escárnio das nações, como a sentem mais ainda todos os que são vítimas de abusos no seio deste mesmo povo, que é a herança do Senhor.
Diante da situação em que nos encontramos, poderíamos reagir reafirmando a condição da Igreja como o povo real, a nação santa e a geração escolhida. Poderíamos até sucumbir diante da tentação de manifestar tudo aquilo que de bom a Igreja faz e procurar esbater a realidade negativa que nos atinge ou minorar o seu impacto negativo na comunidade. Mas a voz do Alto faz-nos compreender que as prerrogativas quanto à realeza, à santidade e à eleição pertencem a Deus, e que o bem também nasce d’Ele e cresce em nós por ação do Seu Espírito Santo: “somos servos inúteis” (Lc 17, 7).
“Onde está o seu Deus? - perguntam as nações; onde está o amor que proclamamos, onde está a fé que professamos? – perguntamos nós e perguntam aqueles a quem somos enviados como suas testemunhas.
A falta de confiança na Igreja tornou-se uma ferida profunda, uma ferida de morte, porque é ferida aberta no coração de Deus, no coração e na vida dos que a Igreja não protegeu, não cuidou e deixou entregues à violência dos homens. Não queremos uma Igreja assim, não queremos pôr em causa o nome de Deus, não queremos o sofrimento dos mais débeis do rebanho, não queremos comprometer a fé profunda e sincera dos mais simples.
“Transmitir a fé – celebrar a Páscoa”. É o lema escolhido pela nossa Diocese para a Quaresma deste ano, para o tempo favorável e de graça que hoje iniciamos e nos levará até à solenidade da Ressurreição do Senhor.
Somos confrontados com a grande missão que o Senhor nos confiou de levar o Evangelho da Salvação a todos: crianças, jovens e adultos. Trata-se de transmitir a fé, que, sendo dom de Deus, há de ser acolhida por nós e há de chegar a muitos com a cooperação da nossa palavra e o testemunho da nossa vida.
O mistério Pascal de Jesus Cristo, a sua paixão, morte e ressurreição, constitui o anúncio a realizar, o primeiro anúncio, que tem poder para provocar o encontro pessoal, aquele íntimo e vital encontro que faz novos discípulos e introduz na comunidade eclesial.
Para transmitir a fé, não bastam as palavras, mas é necessário percorrer com Cristo o caminho da paixão e da morte como via de acesso à ressurreição. A experiência da nossa paixão e da paixão da Igreja, com as caraterísticas que assume no nosso tempo, é esperança de nova aurora de encontro de muitos com o Ressuscitado e, por isso, condição para a transmissão da fé de que nos sentimos servidores.
Caríssimos irmãos e irmãs!
Esta Quaresma deve ser para todos nós uma oportunidade para regressarmos à fé como encontro pessoal e comunitário com Jesus, que por nós padece e morre, a fim de nos dar a Vida.
Esta Quaresma deve ser para todos nós um tempo de graça para assumirmos os nossos pecados, vivermos o arrependimento, celebrarmos o perdão e nos abrirmos à conversão ao Senhor, nosso Deus.
Esta Quaresma deve ser para nós uma ocasião para cuidarmos da transmissão da fé às crianças, jovens e adultos, com a oferta do sacrifício da nossa vida, com verdade e com amor.
Esta Quaresma deve ser para nós alento e força para passarmos de uma cultura moldada pelo espírito do mundo a uma cultura de fé, moldada pelo Espírito de Deus.
Celebraremos a Páscoa mais felizes a mais capazes de, com humildade e com amor, darmos ao mundo as razões da nossa fé e da nossa esperança.
Coimbra, 22 de fevereiro de 2023
Virgílio do Nascimento Antunes
Bispo de Coimbra