DIÁLOGOS DE COIMBRA – NA (BIBLIOTECA) JOANINA RAÍZES DA EUROPA: ATENAS. JERUSALÉM. ROMA RAZÃO. PESSOA. DIREITO

Atenas. Jerusalém. Roma. Coimbra encerra, de algum modo, em si, os elementos fundamentais dos contributos dessas grandes cidades para a cultura cristã do Ocidente. Como outras cidades universitárias da Europa, Coimbra encerra guarda no seu depósito mais recôndito as bases da nossa civilização. Podemos estar num tempo em que esse depósito tenha estagnado e corra o risco de morrer, por se não agitar, por não refletirmos sobre ele e o não veicularmos no presente.

Razão. Pessoa. Direito. Três realidades bem distintas, interligadas e, porventura, a passar por uma das maiores crises de sempre: a razão por se ter fechado sobre si mesma e se ter idolatrado, como se fosse um deus omnipotente e omnisciente; a pessoa, por se ter fechado ao transcendente (a Deus) e se ter encerrado nos horizontes materiais e egoístas, como se pudesse realizar-se no individualismo sem amor; o direito, por ser diariamente pisado sem escrúpulos, num cada vez maior desrespeito pela dignidade da pessoa humana, pelos seus direitos e pelos seus deveres.

Coimbra (e a Europa), têm uma identidade e uma missão intransmissível, no momento de dar à sociedade os elementos fundamentais para a sua recriação, no respeito pela sua cultura e assumindo as suas características mais marcantes.

Situo-me, evidentemente, numa perspectiva cristã de leitura, que informa a civilização que somos, caldeada na confluência mediterrânica das cidades de Atenas, Jerusalém e Roma e do contributo que deram para a formação do que somos.

Sempre que entra em crise alguma destas dimensões, como parece estar a acontecer, fica truncado o processo de construção da pessoa e da sociedade, com as consequências que daí advêm e de que estamos a sofrer.

 

  1. EM BUSCA DAS RAIZES CRISTÃS DO DIREITO

É preciso recuar ao mundo antigo e a muitos estratos de profundidade na arqueologia do tempo para encontrar os primeiros fundamentos cristãos acerca das leis e do direito enquanto caminho para a construção da pessoa e da sociedade.

Herdeira de uma tradição multimilenar, a perspectiva cristã entronca diretamente na tradição bíblica judaica que, por sua vez, se situa no contexto das mais antigas culturas do Próximo Oriente.

Há uma relação de proximidade entre os códigos de leis dos Sumérios, Babilónios, Assírios, Hititas, que cobrem um período que vai do III milénio a.C. ao séc. VI d.C., e os dos Hebreus. Há, no entanto, alguns elementos fundamentais que os distinguem.

É difícil saber qual o caráter destes códigos e os seus objetivos, mas sabe-se que nasceram como forma de afirmar o interesse dos reis pela prática da justiça, que resultam da prática da justiça numa época determinada, e são agora documentos literários criados por sábios escribas. São sempre relacionados com o estado e com o rei, como suprema autoridade política e judicial, responsável pela lei e pela ordem, que recebe de deus.

Em Israel, o rei nunca aparece a fazer leis, mas sempre como súbdito da Lei, ou Torah. Ele mesmo a julga de acordo com a Lei e é julgado ou condenado por ela. As leis de Israel são comunicadas por Deus a todo o Povo, no contexto da Aliança, ou Pacto (berît) estabelecido entre Deus e o Povo: Eu serei o vosso Deus e vós sereis o meu povo.

As leis de Israel tiveram origens diversificadas: algumas provêm de um período anterior ao estado nacional e eram as regras que regulavam alguns aspetos da sociedade tribal; outras provêm da sabedoria antiga, sobretudo as que proibem o roubo o assassínio, as transgressões sexuais, realidades que punham em causa a harmonia tribal; outras ainda nascem da autoridade dos chefes de clã ou de família.

Surgiu um verdadeiro sistema judicial em Israel e pessoas dotadas de autoridade para decidir sobre os diversos casos que lhes eram apresentados e para aplicar penas a quem desrespeitasse as leis. O livro do Deuteronómio fala de sacerdotes para os casos de questões ligadas ao culto, e de juízes e outros oficiais, como os anciãos e os chefes de família, que administravam a justiça ao romper da aurora, às portas da cidade, para causas comuns.

O estudo comparativo dos códigos de leis do Próximo Oriente Antigo e os da Bíblia tornaram clara a ideia de que o conteúdo tem muita proximidade e numerosas coincidências, um substrato comum, mas que a razão de ser e as filosofias de base são distintas. As leis bíblicas situam-se num contexto religioso, javista, pois Israel assume a sua existência na relação com Javé, o seu Deus, e não com um soberano humano.

A lei de Israel tem em Deus a sua total referência enquanto seu autor e contém prescrições éticas e rituais, pois a Aliança divina regula tanto as relações dos homens com Deus como as relações dos homens entre si.

As leis de Israel, têm muito frequentemente uma razão de ser explícita, coisa que não acontece com as dos outros povos vizinhos, que se baseiam na autoridade do legislador. Os motivos que as explicam são de vária ordem: o senso comum, um motivo de caráter moral, religioso, histórico.

Distinguem-se ainda das leis dos outros povos por serem duras no que se refere às faltas contra Deus, pela brandura e humanidade das sanções aplicadas nos outros casos, e por protegerem cuidadosamente as pessoas mais débeis, como é o caso dos estrangeiros, dos pobres, dos oprimidos, das viúvas, dos órfãos e dos inimigos pessoais (Ex 22, 20-26; Dt 23, 16.20). Mesmo a lei de Talião ou a do anátema, (hérem), que são desumanas, têm um caráter mais pedagógico e não são para aplicar literalmente.

Ao contrário das leis do Próximo Oriente, que eram atribuídas ao rei ou promulgadas por ele, as de Israel, dado o seu caráter religioso e a sua relação com a Aliança, nunca aparecem ligadas ao rei, mas têm Deus por autor e Moisés como intermediário. Não há outro legislador senão Deus e ninguém está acima da Lei, pois ela regula a vida de todos, sem exceção, devendo todos guardá-la, lê-la, meditá-la e fazer dela a norma do seu agir quotidiano em todas as circunstâncias que prevê.

 

  1. A LEI COMO DOM DE DEUS – ORIGEM E FINALIDADE

Na Encíclica, Deus caritas est, Bento XVI diz de forma sintética qual a origem da Lei para Israel e a sua finalidade: “A história de amor de Deus com Israel consiste, na sua profundidade, no fato de Ele dar a Torah, isto é, abrir os olhos de Israel sobre a verdadeira natureza do ser humano e lhe indicar a estrada do verdadeiro humanismo” (nº 9).

Na tradição bíblica judaica a Lei/Torah tem origem em Deus como dom e a sua finalidade é o bem e a felicidade do ser humano, que, se segundo a expressão antes citada, se encontram no verdadeiro humanismo.

A questão central tem a ver com o modo como Deus dá a Lei, ou seja, como é que “abre os olhos sobre a verdadeira natureza do ser humano”.

Os livros sapienciais da Bíblia, numa época tardia do judaísmo e profundamente influenciados pela filosofia e mundividência gregas (Atenas), ajudam a dar um passo no momento de equacionar essa questão. Ao estabelecerem uma relação, primeiro de proximidade e depois de identificação entre Sabedoria e Lei afirmam que uma e outra são dom de Deus acolhido pelo conhecimento, inteligência e razão humana, como sintetiza Sir 24, 25.27: “A Lei transborda de sabedoria... É ela que derrama a ciência”.

Toda a literatura sapiencial bíblica, que é já uma reflexão sobre a Lei, tenta compreender qual o lugar da inteligência e da razão humana na elaboração da própria Lei. Os textos insistem na capacidade do homem para conhecer por meio da investigação, da reflexão, do estudo e da observação intelectual, pois é homo sapiens. Estabelecem uma relação próxima entre sabedoria e ordem moral, ordem universal, ordem cósmica e ordem humana.

No fundo, ao introduzir o tema da Sabedoria na Bíblia, o autor sagrado está declarar o ser humano, dotado de inteligência e razão como capaz de acolher o dom de Deus e entrar em diálogo com Ele. Neste diálogo há uma importante condição a respeitar: o homem aceitar-se na sua condição de criatura e, como tal, reconhecer e respeitar a Deus na condição de Criador, segundo a fórmula repetida: “o temor do Senhor é o princípio da sabedoria” (Pr 1, 7).

Dizer que a Lei é dom de Deus significa abrir-se ao transcendente como capacidade radical de conhecer, como fonte do conhecimento, por um lado, e limite da sabedoria humana, por outro. “Não há sabedoria, nem inteligência, nem conselho que prevaleçam contra o Senhor” (Pr 21, 30); “Poderás tu compreender os caminhos de Deus, ou chegar ao fundo da sua omnipotência? Ela é mais alta do que o céu; que farás? É mais profunda que o abismo; como a conhecerás?” (Jb 11, 7-8:) De fato, o ser humano é limitado, tanto individualmente como no seu conjunto, é incapaz de conhecer toda a realidade e incapaz de abarcar a Deus, de modo que o conhecimento dos próprios limites é um dos mais evidentes sintomas de sabedoria.

A Torah, é dom de Deus, por meio da inteligência e da razão humana aberta ao transcendente e conhecedora dos seus limites. No respeito por estas regras e pelo que delas se depreende, o homem encontra caminhos de vida e realização de si mesmo tanto do ponto de vista individual como na social. Ao fugir daqui abandona os caminhos da sua própria realização pessoal e ameaça a vida própria e alheia.

Toda a Lei e todas as leis, entendidas neste contexto estão ao serviço da vida e da realização feliz do homem. Surgem como propostas de vida, como caminhos de sensatez, que têm como única finalidade proporcionar uma vida segundo a justiça, ou seja segundo a fidelidade a Deus e ao amor do seu próximo.

A Escritura exprime esta finalidade quando apresenta em nome de Deus os preceitos e estatutos (huquim, mishpatim) e incentiva o povo a pô-los em prática: “Tomai cuidado em cumprir o que vos ordenou o Senhor, vosso Deus; (...). Segui o caminho que o Senhor, vosso Deus, vos ordenou, para viverdes e serdes felizes. Assim prolongareis a vida na terra de que ides tomar posse” (Dt 5, 32-33).

 

3. SUPERAÇÃO DA LEI E DA RAZÃO: LIBERDADE E AMOR

A mensagem de Jesus ou Evangelho centra-se no anúncio do Reino de Deus, que implica um novo modo de agir. Este anúncio realiza-se por meio da missão de Jesus, que realiza um conjunto de obras poderosas culminantes na sua paixão e ressurreição. Em tudo isso Jesus revela as normas do justo agir humano, sintetizado na expressão: “Portanto, sede perfeitos como é perfeito o vosso Pai celeste” (Mt 5, 48), completadas com o ensinamento sobre o amor aos inimigos: “Ouvistes o que foi dito: amarás o teu próximo e odiarás o teu inimigo. Eu, porém, digo-vos: Amai os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem” (Mt 5, 43-44), e ainda com as antíteses presentes em Mt 5, 21-28, nas quais se declara que não basta cumprir a Lei, mas é necessário ir muito para além dela.

As Bem-aventuranças, nas suas duas versões do Evangelho de Mateus e de Lucas, constituem o texto bíblico que mais claramente convida à superação da Lei e do seu cumprimento. Elas apontam no sentido de ir mais longe de uma forma livre, numa atitude de seguimento de Jesus no seu estilo de vida característico: a doação de si mesmo, sem egoísmo, até à morte de cruz.

As bem-aventuranças indicam o que há de mais característico no cristianismo e realizam a melhor revelação de Deus. “Elas apresentam o agir futuro de Deus não só como recompensa do justo agir humano, mas também como base e motivo que torna possível e razoável o agir humano requerido. Ser pobres em espírito ou ser fiéis na perseguição não são obrigações em si mesmas: quem aceita com fé a revelação de Jesus sobre o agir de Deus, condensada no anúncio do Reino de Deus, torna-se capaz de não se fechar na sua própria autonomia mas de reconhecer a sua completa dependência de Deus, e de não querer salvar a sua vida a todo o custo mas de sofrer a perseguição” (Pontificia Comissione Biblica, Bibbia e morale, Radici bibliche dell’agire Cristiano, Libreria Editrice Vaticana, 2008, nº 47).

As regras do agir humano segundo o espírito do seguimento de Jesus e das bem-aventuranças ultrapassam a obrigatoriedade de qualquer código de leis, recusam-se a nivelar pelos mínimos, mas abrem-se ao amor como imperativo interior.

Estamos diante da questão da liberdade humana enquanto dimensão fundamental de construção da pessoa e da sociedade. O desejo de liberdade, juntamente com o de paz, justiça e amor, estão inscritos no mais profundo de cada pessoa. Trata-se do natural “desejo de libertação de todas as formas injustas e opressivas de qualquer tipo de escravidão: cultural, política, racial, social ou económica” (A. BONORA, Liberazione/libertà, P. ROSSANO, G. RAVASI, A. GIRLANDA, Nuovo Dizionario di Teologia Biblica, Paoline, 1988, 823-824).

Sem liberdade não há construção da pessoa e da sociedade, pelo que nunca é suficiente o direito, por muito aperfeiçoado que seja, para edificar a pessoa feliz ou a sociedade justa e fraterna. Neste aspeto, a tradição judeo-cristã traz algo de essencial e novo,       que é a certeza de que a aspiração à liberdade está divinamente inscrita no coração do homem, criado à imagem e semelhança de Deus (Gn 1, 26-27), e, portanto, criado para viver como filho de Deus e como irmão de todos os homens, na liberdade.

 

CONCLUSÃO

O cristianismo é portador da novidade da maior liberdade, que é a liberdade do amor: amor de Deus e amor do próximo, inseparavelmente unidos e bem expressos na cruz, onde, segundo a Carta Encíclica Deus caritas est, 12, “se cumpre aquele virar-se de Deus contra si próprio, com o qual Ele se entrega para levantar o ser humano e salvá-lo – o amor na sua forma mais radical”.

Concluo citando a Encíclica Fides et Ratio: “A razão não pode esgotar o mistério de amor que a cruz representa, mas a cruz pode dar à razão a resposta última que esta procura” (24). Outro tanto se pode dizer do direito.

Esta pode muito bem ser a síntese da confluência de Atenas, Jerusalém e Roma, de que Coimbra é herdeira e porventura ser protagonista.

Coimbra, 03 de Maio de 2012

Virgílio do Nascimento Antunes

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