DIÁLOGOS DE COIMBRA – NA (BIBLIOTECA) JOANINA - RAÍZES DA EUROPA: ATENAS. JERUSALÉM. ROMA ACASO.CRIAÇÃO.SENTIDO

1. INTRODUÇÃO

“Que o Deus vivo criou os céus e a terra é a primeira frase da Bíblia judaica e cristã (Gn 1, 1). E “os novos céus e a nova terra” é o último tema da Bíblia cristã (Ap 21-22). Também o primeiro artigo do Credo cristão confessa: “Creio em Deus Pai, todo Poderoso, criador do céu e da terra”. E o Credo conclui igualmente com a teologia da criação: “Creio na vida eterna”. O olhar para o princípio e para o fim sublinha tudo o que a fé bíblica tem para dizer acerca de Deus e da sua relação com o mundo. Que o mundo é criação de Deus, é a primeira e a última lição da Bíblia cristã e do Credo cristão”.

A cultura moderna dominada pela visão científica do mundo, pensa a realidade do universo com os olhos das ciências naturais. Tende a considerar o universo em si mesmo, nos mecanismos do seu funcionamento físico, independentemente da relação com Deus e tem muita dificuldade de entender a visão bíblica religiosa e não científica.

A Bíblia não pretende explicar como teve origem o mundo, mas pretende compreender e proclamar o sentido do mundo como criação de Deus. Os textos do Génesis relativos à criação, por meio de uma linguagem mítica e poética, pretendem dizer-nos que tudo aquilo que existe e que nós vivemos, tudo aquilo que é constitutivo do homem e do mundo, vem das origens, dos tempos primordiais.

A tradição Javista (Gn 2, 4b-3, 1) apresenta o cosmos como lugar da presença de Deus em favor do homem; apresenta o homem em ligação muito estreita com o cosmos, pelo facto de nascer da terra; e apresenta as coisas e a própria terra numa relação de serviço ao homem. Segundo esta concepção, o mundo é inseparável do homem e vice-versa, podendo nós dizer que a concepção cosmológica do autor javista é antropológica, dependendo a estrutura do mundo da acção de Deus, mas também do agir humano. Com o pecado do homem destroi-se o equilíbrio harmónico entre o mesmo homem e o mundo, que tinha sido querido por Deus. Daí a necessidade de Deus chamar Abraão e o abençoar a fim salvar o homem e, através dele, o cosmos da ruina.

A tradição Sacerdotal (Gn 1, 1-2, 4a) narra as origens do cosmos para mostrar o que deverão ser o homem e o mundo. Não se trata de uma narração do que aconteceu no passado, mas daquilo que sempre foi e ainda é válido. Não se trata de qualquer concepção científica ou da explanação da verdade científica acerca das origens do homem e do universo, mas da apresentação da verdade de carácter salvífico.

A Bíblia procura o sentido e o valor do cosmos para o homem. Este não se entende como dono do mundo, mas como guardião de um mundo dotado de sentido, que lhe foi dado pelo Absoluto e ao qual o homem tem acesso. A fé entende que o sentido último das coisas está em Deus e que, portanto, nem a ciência nem o próprio homem o podem conhecer totalmente.

 

2. O SENTIDO DA CRIAÇÃO NA BÍBLIA

A noção de momento original da criação surgiu na Bíblia muito tardiamente e só depois da experiência histórica da ação salvífica de Deus. O interesse do homem bíblico pela criação não é um interesse diretamente científico, mas teológico e antropológico, o que explica a diversidade de linguagem para a mesma realidade: Gn 1, Gn 2, Sl 8, Is 51, Jb 38-41... “A criação permanece sempre um mistério, revelação da alteridade de Deus escondido no simbolismo da história”.

As narrações dos primeiros capítulos do Gn não constituem a procura das causas numa perspectiva científica, mas a procura de sentido no diálogo entre o Deus que se revela na história e um povo que vive na relação com Ele.

A Constituição Dogmática sobre a Divina Revelação, Dei Verbum , do Concílio Vaticano II deu um passo decisivo no sentido da compreensão da questão da verdade na Bíblia, ao dizer: “os livros da Escritura ensinam com certeza, fielmente e sem erro, a verdade que Deus, para nossa salvação, quis que fosse consignada nas sagradas Letras” (DV 11). Trata-se de perceber qual é a verdade que o texto bíblico quer comunicar, de acordo com a finalidade para que foi escrito e a linguagem utilizada – palavra de Deus em linguagem humana.

Esta chave hermenêutica põe fim à velha discussão sobre as relações entre ciência e relato bíblico das origens. O caso de Galileu e sobretudo de Darwin puseram este problema com todo o realismo. Surgiram vários problemas teológicos como o da criação do mundo e do homem, da dimensão espiritual do homem e da sua liberdade, do pecado original... Foi preciso um longo caminho de maturação da hermenêutica bíblica e, ao mesmo tempo, uma tomada de consciência acerca dos seus limites por parte da ciência, para que se pusesse fim a séculos de costas voltadas.

Os primeiros capítulos do Gn passaram a ser lidos de outra forma, quando foi possível compará-los com as outras literaturas do Próximo Oriente Antigo. Dentro desse contexto cultural, percebeu-se que não são uma leitura científica da origem da humanidade nem um tratado de física ou cosmologia.

De forma diferente do que se passa com as ciências, que seguem um método que pretende verificar o caráter verdadeiro ou falso das suas afirmações de forma coerente, as páginas da Bíblia vão à procura do sentido último da criação e do homem na relação com o Deus que se manifestou presente na história de Israel como “Aquele que é/Aquele que permanece.

As várias disciplinas científicas pretendem reconstruir o que aconteceu nos longos milénios que precederam o aparecimento do homem; as páginas da Bíblia pretendem responder à pergunta acerca do sentido de tudo isso. As hipóteses da física tentam explicar como se formou o universo, enquanto as páginas da Bíblia revelam porque é que este universo se formou e qual é a sua finalidade.

Os relatos bíblicos das origens trazem sempre de novo as grandes questões antropológicas e teológicas, à luz da revelação, utilizando uma cosmologia pré-copernicana, uma física porventura rudimentar, uma linguagem antropomórfica.

Todas as tentativas de concordismo entre os dados bíblicos e as hipóteses científicas constituem um erro metodológico porque se trata de “verdades” de âmbito diferente. O texto bíblico não se situa ao nível da verdade científica e não tem preferência por uma hipótese científica em desfavor de outra. Somente à ciência compete justificar as suas hipóteses de acordo com a sua metodologia própria.

Neste sentido devem ser equacionadas muitas das questões tradicionalmente discutidas, como é o caso do monogenismo ou do poligenismo, que têm de ser defendidas ou refutadas com argumentos científicos e não com razões de fé. A Gaudium et Spes, no nº 36 afirmou-o, dizendo: “a investigação metódicas em todos os campos do saber, quando levada a cabo de modo verdadeiramente científico e segundo as normas morais, nunca será realmente oposta à fé”.

3. AS NARRAÇÕES BÍBLICAS DA CRIAÇÃO

Ordenamento contínuo do universo

A narração bíblica das origens mais antiga, Gn 2, 4b-25, pertence à tradição Javista. No seu estado actual provém, provavelmente, do séc. VI a.C., e transmite tradições provenientes do séc. X a.C., época em que alguns desses textos foram escritos.

Este texto centra-se na origem do homem e não na origem do universo, limitando-se por isso a descrever numa frase a situação da terra anterior à criação do homem: “Quando o Senhor Deus fez a terra e os céus, e ainda não havia arbusto algum pelos campos, nem sequer uma planta germinara ainda, porque o Senhor Deus ainda não tinha feito chover sobre a terra e não havia homem para a cultivar” (Gn 2, 4b-5). A seguir a narração fala da criação do homem, depois de Deus ter plantado um jardim que lhe dará para ele trabalhar.

A narração Sacerdotal da criação, a segunda do ponto de vista cronológico fala igualmente de organização cósmica. Utiliza porventura um hino antigo, mas provém fundamentalmente do séc. V a.C., com alguns acrescentos do séc. IV a.C.. Descreve o processo de ordenamento do mundo nas suas diversas etapas. A partir de um caos aquoso inicial, Elohim opera uma divisão, obrigando as águas a separar-se para que surja uma superfície seca, a terra. Vem depois a verdura, e a seguir, os astros que permitem organizar os ritmos de vida colectiva dos homens. A seguir ele faz com que nas águas e nos ares pululem as sementes e que a terra produza toda a espécie de seres vivos e animais de todas as espécies. No fim, Elohim cria a humanidade, que há-de governar o conjunto. A concluir, o autor indica a finalidade da ação antes descrita: o repouso do Criador, dentro da sua obra, quando ela estiver completa, no último dia (o sétimo dia).

Toda esta narração se inspira na narração babilónica de Enuma Elish, mas destaca-se dela: descreve a origem dos seres, mas não se refere ao nascimento de Deus; o Deus Criador do Antigo Testamento não luta com nenhuma divindade sua concorrente, nem com qualquer anti-deus, que fosse princípio do mal ou da desordem original.

Os textos bíblicos indicam em diferentes circunstâncias que a ação criadora de Deus constituiu um ato da sua força, um dos seus sucessos sobre as forças do caos representadas por seres fantásticos.

Podemos concluir afirmando que houve duas diferentes correntes de pensamento a marcar a visão de Israel acerca do ato criador, e as duas ligadas a temas míticos já existentes. Uma apresenta a criação inicial como uma ação de organização: a partir de um deserto morto, organiza-se uma terra fértil, harmoniosa e estável. A outra apresenta o ato criador como uma ação de poder de Deus que põe em ordem um universo caótico nas suas origens, no qual depois se dá um desenvolvimento cada vez mais complexo da vida.

Estas duas concepções têm algo em comum. Para ambas, a obra da criação continua no tempo, o que significa que o universo não é um sistema intemporal nem estático. O mundo não está terminado, mas está em fase de formação e a sua edificação continua em curso. Isto indica que o Deus bíblico não criou um mundo para depois o organizar. A sua obra criadora é única e consiste na organização contínua do universo.

Criação, obra inacabada

Tanto para a maior parte das religiões do Próximo Oriente Antigo como para Israel, a organização do caos original não é obra concluída, apesar de terem concepções diferentes do processo de evolução do mundo.

Para as culturas do Próximo Oriente Antigo, a evolução do mundo dá-se por meio de sucessivos retornos às origens, ao caos original, o que provoca o devir cósmico. É uma visão circular, segundo a qual, de uma forma de vida eclodem novas formas de vida. Tudo se passa num processo de caos – organização, novo caos – nova organização.

Pode acontecer que Israel tenha assimilado inicialmente esta visão cíclica do mundo e da criação, que terá sido rapidamente ultrapassada. Israel não podia aceitar que o seu Deus fosse um Deus celeste que interviesse no mundo terrestre somente uma vez por ano. O Deus de Israel é aquele que reina nas alturas, segundo a literatura salmódica, mas ele não fica aí. Os Salmos associam constantemente terra e céu e descrevem a ação quotidiana do Deus Criador no cosmos e sobre a face da terra. Sl 89, 12: “O céu é teu e tua é a terra”; 24, 1-2: “Ao Senhor pertence a terra e o que nela existe,/ o mundo inteiro e os que nele habitam;/ pois ele a fundou sobre os mares/ e a consolidou sobre os abismos”. Segundo o Sl. 104, Deus cria no presente e a sua acção criadora continua visível, hoje; ele está ativa e continuamente presente no mundo que cria: “Das tuas altas moradas regas as montanhas;/ com a bênção da chuva sacias a terra./ Fazes germinar a erva para o gado/ e as plantas úteis para o homem/ para que da terra possa tirar o seu alimento”.

A fé de Israel insiste na condição inacabada da criação. Ela continua a tornar-se efectiva no presente, de modo que o Deus Criador é considerado rei, mas o seu reinado só terá plena realização no futuro. A soberania definitiva do Criador sobre a criação só se exercerá quando esta chegar à sua meta e estiver completada. Segundo a narração Sacerdotal da Criação, Deus exerce o seu poder real e criador ao longo dos seis dias da criação, que se orientam para um fim: o Seu reinado final num universo já cumprido.

A literatura profética situa a realização desta soberania de Deus sobre a Criação no futuro. Deus é rei depois do seu primeiro ato criador, pois a partir de então ele domina todas as forças caóticas, mas espera-se um último combate e um julgamento final, por as forças do mal continuarem ativas. Esse combate referido pelos profetas apocalípticos concluirá o das origens: “Naquele dia o Senhor julgará: lá no alto, julgará os exércitos do céu, e cá em baixo, os reis da terra” (Is 24, 21); “Dirigindo-se a Daniel, o rei disse: «O vosso Deus é verdadeiramente o Deus dos deuses, o Senhor dos reis; é também ele quem manifesta os mistérios, visto que só tu os pudeste revelar” (Dn 2, 47). A literatura apocalíptica desenvolve esta perspectiva da instauração de uma nova soberania de Deus, que estará presente na sua criação, o reino definitivo, que não terá fim, o reinado de Deus: “Foram-lhe dadas todas as soberanias, a glória e a realeza. Todos os povos, todas as nações e as gentes de todas as línguas o serviam. O seu império é um império eterno, que não passará jamais e o seu reino nunca será destruído” (Dn 7, 14).

A ação criadora de Deus está ao serviço de uma finalidade: a vida de Deus no coração da sua criação completa, no repouso do sétimo dia, numa paz e felicidade partilhada com os homens. A realização do Reino de Deus consiste na presença dinâmica do Criador na sua criação, fazendo-a crescer para o reino futuro. O Reino de Deus designa a realização final do destino do universo, que caminha para a perfeição.

 

Criação, realidade distinta do Criador

A Bíblia afirma que o universo constitui uma realidade distinta do seu Criador. Nisto também se destaca das cosmologias dos outros povos da mesma região, para os quais as divindades que estavam na origem de tudo emergiam de um mundo anterior ou dividiam-se para produzir o universo atual. Para o pensamento bíblico, o universo não é emanação nem difusão da divindade, mas é produto externo da vontade pessoal de um Deus criador. Este Deus criador é inteiramente separado da sua criação, que é diferente dele. YHWH é soberano e exterior à sua obra.

As duas narrações do livro do Génesis sublinham a mesma ideia. Segundo a narração de Gn 2, 4b-3, 1, existe um mundo anterior, um mundo vazio, estéril e sem vida. A partir desta ausência de qualquer forma organizada é que têm lugar as ações criadoras da divindade. Estas ações são descritas inicialmente pelo verbo “fazer”, que significa “trabalhar a matéria” à maneira de um artesão especializado. A criação é fruto do trabalho das mãos de Deus (Sl 8, 4.7), é obra exterior ao seu autor, tal como é exterior ao seu autor a obra de um artesão ou de um arquiteto. O universo deve a Deus a sua consistência, está dependente dele, mas existe fora dele.

Segundo a narração Sacerdotal de Gn 1, 1-2, 4a, o mundo saiu igualmente das mãos de Deus. A expressão usada no primeiro versículo, “No princípio, quando Deus criou os céus e a terra”, marca esta distância entre a criatura e o seu criador. O verbo “bará” utilizado, tem exclusivamente a divindade como seu sujeito e refere-se a “fazer algo de novo”, à criação de uma realidade nova. O termo indica sempre que o autor do mundo é diferente e exterior ao mundo criado. Por outro lado, o segundo versículo apresenta o “sopro divino”, pairando sobre a superfície das águas, como realidade que não é afectada por essa indeterminação, ausência e falta de organização.

Através das palavras de Deus manifesta-se a sua força operante, que separa os elementos confundidos e dá origem à vida. Segundo esta narração, mais do que modelada pelas mãos de Deus, a criação é fruto das palavras de Deus, o que manifesta ainda melhor a distinção entre criatura e criador.

 

A caducidade do universo

Consequência da diferença radical existente entre o mundo e a divindade é a afirmação da caducidade do universo. Se o mundo não é divino, como acontecia noutros sistemas de pensamento, ele não é indestrutível nem eterno. Ele poderia não existir e pode deixar de existir, pois, segundo o Sl 102, 26-27, a terra e os céus são uma realidade que se vai gastando: “Tu fundaste a terra desde o princípio/ e os céus são obra das tuas mãos./ Eles deixarão de existir, mas tu permanecerás;/ tal como um vestido, eles vão-se gastando;/ como um vestido que se muda, assim eles desaparecem”. A terra e os céus podem desaparecer ou voltar ao caos inicial de onde vieram, como afirma Is 51, 6: “Levantai os olhos ao céu,/ e observai lá em baixo, a terra:/ o céu passa como o fumo,/ e a terra gasta-se como um vestido”. O universo em si mesmo é precário, não tem o seu futuro assegurado e comporta em si mesmo os riscos da própria destruição mortal.

O texto do livro do Génesis deixa de parte qualquer afirmação acerca da origem da terra, não excluindo que ela provenha de Deus. Pretende sim insistir no facto de a vida provir dessa terra morta, desértica, onde ainda não tinha despontado qualquer espécie de verdura (Gn 2, 5) e no facto de YHWH ser o único capaz de suscitar a vida, pois se a terra ainda não produzira nada é porque YHWH ainda não tinha feito chover sobre ela. A terra, por si mesma é incapaz de fazer despontar a vida. Isso deve-se à intervenção divina. Segundo a fé de Israel, a inércia mortal da terra inicial é vencida pela força vivificante do Criador – este torna-se um elemento fundante da fé de Israel.

A divindade não suprimiu os elementos de confusão e desorganização das origens, mas ordenou-os e utilizou-os, de tal modo que eles continuam presentes no mundo, mas Deus continua a dominá-los, a dispor deles e a controlá-los, o que está claro na afirmação de que Deus deu um nome à noite e ao mar.

Para Israel, o universo não nasceu do nada, concebido como ausência de tudo. Segundo a tradição mais antiga, a Javista, ele nasceu de uma situação de não-vida; segundo a tradição Sacerdotal, nasceu de uma realidade impossível de definir, de um mundo original composto de forças de morte e de caos.

O cosmos só pôde existir graças a uma irrupção de vida e à sujeição do caos. A mesma energia que realizou essa obra nas origens, continua em ação para que o universo subsista e atinja a sua perfeição.

Coimbra, 14 de junho de 2012

Virgílio do Nascimento Antunes

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