CATEQUESES QUARESMAIS DO BISPO DE COIMBRA
IGREJA DE SANTA CRUZ DE COIMBRA
II. POR UMA IGREJA SINODAL: COMUNHÃO, PARTICIPAÇÃO E MISSÃO
- Renovação contínua da Igreja presente no mundo
Muitas pessoas se interrogam, e justamente: por que razão o Papa Francisco trouxe para a agenda da Igreja a questão da sinodalidade? A muitos soa como um tema novo, uma vez que têm, porventura, ouvido falar do sínodo dos bispos ou dos sínodos diocesanos, mas pouco ou nada da sinodalidade como o modo de viver e de agir da Igreja.
De facto, não se trata de um tema novo, pois faz parte da vida da Igreja apostólica e de todas as gerações seguintes, mas encontra, agora, nova oportunidade, dado o percurso que a Igreja e a comunidade humana têm vindo a fazer na atualidade. Estamos num tempo diferente dos tempos passados e a leitura inspirada da realidade está a conduzir-nos para um modo de viver e agir enquanto Igreja que passa pela via da renovação, como condição para realizarmos a vocação e missão que recebemos.
Do ponto de vista da fé que professamos, a Igreja de Deus foi sempre comunidade de discípulos reunida por Jesus Cristo e animada pelo Espírito Santo, a caminho da casa do Pai. Assim foi fundada e assim tem percorrido o arco da sua longa história, com maior ou menor ânimo, com maior ou menor expressão e visibilidade, com maior ou menor fidelidade à sua vocação, com maior ou menor capacidade de dar testemunho da verdade e de influenciar o mundo. A Igreja é comunidade situada no tempo e no espaço e desse modo é sinal ou sacramento vivo e atual da salvação de Deus por meio de Jesus Cristo.
A Igreja sempre se sentiu impulsionada para estar atenta à voz de Deus, ao seguimento de Jesus Cristo e à inspiração do Espírito Santo. O Concílio Vaticano II fez um forte apelo a juntar à fé que professamos uma especial atenção à leitura dos “sinais dos tempos”, quando na Gaudium et Spes, nº 4, refere: “Para levar a cabo esta missão, é dever da Igreja investigar a todo o momento os sinais dos tempos, e interpretá-los à luz do Evangelho; para que assim possa responder, de modo adaptado em cada geração, às eternas perguntas dos homens acerca do sentido da vida presente e da futura, e da relação entre ambas. É, por isso, necessário conhecer e compreender o mundo em que vivemos, as suas esperanças e aspirações, e o seu carácter tantas vezes dramático”.
No fundo, a Igreja volta à sinodalidade para, de forma mais adequada e de acordo com a sua identidade original, estar presente no mundo e desenvolver um modo de viver, de agir e de falar, que encontre eco na humanidade concreta a que se dirige. É um facto que estamos numa situação peculiar da história da Igreja e da história do mundo a que o Documento Preparatório do Sínodo chama tempo de “mudanças epocais na sociedade” e de “passagem crucial na vida da Igreja”. Não podemos, por isso, passar ao lado e sem reparar atentamente, como se tudo estivesse como dantes e como se não fosse urgente uma atenção especial à realidade para podermos interpretá-la à luz da Palavra de Deus e do Espírito Santo.
São inúmeros os fenómenos que marcam a atualidade da sociedade e destacamos alguns deles: as mudanças operadas em áreas como a política, a economia, a cultura; as tensões criadas no mundo social e religioso; os fenómenos de massificação e fragmentação das sociedades; a ausência de sentido para a vida; os lugares da pobreza e da exclusão... Igualmente inúmeras são as situações que afetam a vida da própria Igreja: o facto de ter deixado de ser uma referência cultural para a sociedade e já não se constituir como a cristandade de outros tempos; a mentalidade secularizada, por um lado, e os fundamentalismos religiosos, por outro; a debilidade da comunidade cristã tanto em matéria de fé como de ética; o reconhecimento da liberdade religiosa a par com as perseguições religiosas; a privatização da religião, remetida para o espaço íntimo; a inadequação da linguagem evangelizadora e a pobreza do testemunho pessoal e eclesial.
Com humildade, reconhecemos estar a passar por um tempo problemático e crítico para a Igreja. Algumas das dificuldades nascem de fora da comunidade cristã, mas outras nascem de dentro dela e corroem-na por serem sintomas da sua infidelidade e do seu pecado. Reconhecemos com grande mágoa o clericalismo que está na origem de abusos de autoridade, de abusos de consciência e de abusos sexuais; reconhecemos também a mundanidade da Igreja e as suas infidelidades à graça recebida.
Anima-nos a esperança de que a renovação é possível se nos deixarmos converter pela fé em Jesus Cristo e pela força do Espírito Santo, a verdadeira alma de todo o Povo de Deus. Com o Sucessor de Pedro, sentimos que “a sinodalidade representa a via mestra para a Igreja chamada a renovar-se sob a ação do Espírito Santo e graças à escuta da Palavra” (Documento Preparatório, 9). Esta convicção e esta abertura à sinodalidade como porta de esperança para o futuro da realização da missão da Igreja no tempo presente constitui já um indício claro de que, iluminados pelo Espírito Santo, estamos a fazer a requerida leitura dos sinais dos tempos e a iniciar uma nova fase da nossa história.
Partimos, por isso, animados pela fé e pela esperança, pois acreditamos que a Igreja é comunidade do Espírito, como explicitámos na 1ª catequese, no passado domingo.
- Caminhar juntos: comunhão, participação, missão
O desafio para fazermos caminho juntos não nos deveria surpreender como uma novidade, pois faz parte de toda a história da vivência da fé cristã e está profundamente radicado na identidade fundacional da Igreja. No entanto, ele surge para muitos como algo inesperado por se terem habituado a uma forma de ser Igreja que falava da urgência de ação de uns enquanto deixava outros tranquilos na sua pertença mais passiva.
Passaram várias décadas após o Concílio Vaticano II, verdadeira irrupção do Espírito, que, na Constituição Dogmática sobre a Igreja, “Lumen gentium - A Luz dos Povos”, vislumbrou profeticamente a forma renovada de sermos Igreja, à luz das Escrituras e da Tradição, tendo em conta o conhecimento das circunstâncias em que vive hoje a comunidade humana e a comunidade cristã. O Concílio acentuou a imagem de Igreja como Povo de Deus, reunido na comunhão da Santíssima Trindade, em que todos os membros participam da mesma dignidade de filhos a partir do batismo e se tornam corresponsáveis na única missão.
Embora o Concílio Vaticano II não use a palavra sinodalidade, o seu conteúdo e significado estão bem presentes e, podemos dizer, relança os fundamentos e as perspetivas de renovação e conversão pastoral adequados ao nosso tempo. As três expressões centrais da sinodalidade propostas pelo Papa Francisco são, ao mesmo tempo, três ideias fortes afirmadas pela eclesiologia do Concílio: comunhão, participação e missão.
A chamada eclesiologia de comunhão é uma ideia central do Concílio Vaticano II (cf LG 4). Esta comunhão entre os cristãos nasce da união entre Cristo e todos os batizados, os seus discípulos, e “tem por modelo, fonte e meta a mesma comunhão do Filho com o Pai no dom do Espírito Santo: unidos ao Filho no vínculo amoroso do Espírito, os cristãos estão unidos ao Pai”, na expressão atualizada da Exortação Apostólica Pós-Sinodal sobre a Vocação e a Missão dos Leigos na Igreja, do papa São João Paulo II, nº 18.
Iguais em dignidade pelo facto de sermos membros de Cristo e Corpo de Cristo, somos chamados a viver no amor de Deus e a partilhá-lo como realidade constitutiva da nossa condição de cristãos. Vivemos unidos a Deus, professamos a mesma fé, que nos dá o direito e o dever de contribuir para a edificação da Igreja e de a ajudar a discernir os melhores caminhos para a realização da sua missão.
Somos convidados a recuperar a teologia do sacerdócio comum dos fiéis assente na dignidade do batismo, segundo a qual todos recebem a possibilidade de serem pessoas ativas dentro do corpo eclesial e na diversidade de carismas e ministérios que o Espírito nele suscita. Neste sentido, todos são chamados a deixar-se transformar pelo Evangelho e, ao mesmo tempo, a assumirem o protagonismo que lhes é próprio em ordem ao seu anúncio.
A possibilidade de todos participarem na missão da Igreja vem do facto de todos os batizados pertencerem ao Povo de Deus, tanto os leigos, como os consagrados ou os ministros ordenados. “Toda a comunidade na livre e rica diversidade dos seus membros, é convocada para rezar, escutar, analisar, dialogar, discernir, e aconselhar na hora de tomar decisões pastorais mais de acordo com a vontade de Deus” (Comissão Teológica Internacional, A sinodalidade na vida e na missão da Igreja, 67-68).
Esta participação de todos na ação eclesial dá-se dentro de uma comunidade hierarquicamente estruturada, isto é, em que os ministros ordenados receberam o dom e a missão de garantir a comunhão e a unidade de todo o corpo. Trata-se, por isso, da participação ativa de todos, mas segundo a vocação de cada um e em articulação com o colégio dos bispos, que tem o Sucessor de Pedro como Cabeça e servo da comunhão e da verdade fé – com Pedro e sob Pedro, segundo a consagrada máxima teológica.
A Igreja existe para evangelizar. Essa é a sua missão, recebida do mandato de Jesus - “Ide pelo mundo inteiro, proclamai o Evangelho a toda a criatura” (Mc 16, 15) - e explicitado ao longo de toda a história da Igreja, com particular acentuação no séc. XX, pela voz dos papas Paulo VI, João Paulo II e Francisco. O processo sinodal tem também uma intencionalidade, que consiste em criar as condições para que todos dentro da Igreja acolham o Evangelho que salva e realizem o anúncio do mesmo Evangelho para fora, onde ainda não foi feito o primeiro anúncio, e onde a fé esmoreceu.
Numa perspetiva sinodal, a missão de evangelizar tem por sujeito todo o Povo de Deus, na diversidade dos carismas, ministérios, funções e estados de vida. Ninguém fica de fora deste mandato de Jesus e todos têm as possibilidades que lhes são oferecidas pela sua situação numa complementaridade insubstituível.
- Jesus caminha com cada um, com os discípulos e com as multidões
O modelo inspirador de toda a sinodalidade é o caminho que Jesus faz com cada pessoa que encontra pelo caminho, com os seus Apóstolos e Discípulos, e com as multidões a quem se dirige com palavras e gestos de amor, misericórdia e perdão. Por sua vez, Jesus dá a todos a possibilidade de O seguirem, ou seja, de caminharem com Ele, uns movidos pela confiança, outros desejosos de encontrar n’Ele cura para os seus males, alguns porque Ele os chamou pelo nome e outros ainda porque a curiosidade os faz querer conhecê-l’O mais de perto.
Jesus a todos anunciou algo de novo, mas também de todos ouviu palavras de gratidão, de crítica, de lamentação ou simplesmente as manifestações das alegrias e dores da vida pessoal e familiar. Fez caminho com todos e acolheu-os para que fizessem caminho consigo. Abriu assim as portas à caminhada que a Igreja nascente havia de fazer e que teria continuidade ao longo dos séculos futuros. Prometeu a Sua presença no meio do seu povo até ao fim dos tempos e a iluminação do Espírito que seria derramado sobre os Doze Apóstolos e os Discípulos, todos integrados no Povo de Deus, a fim de darem continuidade à missão, que é confiada a toda a Igreja.
Jesus valoriza sempre cada pessoa que encontra pelo caminho, ninguém lhe é indiferente, ninguém tem para Ele menos importância do que qualquer outro. Antes pelo contrário, manifesta predileção pelos mais pobres, pecadores, caídos à beira do caminho, doentes, deserdados pela vida. Recordamos o cego de Jericó, a mulher adúltera, o coxo junto à piscina, o ladrão Zaqueu, o homem caído no caminho de Jericó, a mulher com doença hemorrágica; mas recordamos também o diálogo com os discípulos, com Pedro...
Jesus dirige-se a todos indistintamente e fala ao coração de cada um para quem tem palavras de estima, acolhimento, proximidade, afeto e verdadeiro amor. Está também disponível para escutar as palavras de cada um, mesmo que elas tragam em si o amargo de uma vida difícil ou a ideia do abandono por parte de Deus ou por parte dos outros. Todos podem ser escutados por Ele e todos podem falar com Ele. Jesus ouve mesmo as pessoas que são consideradas marginais dentro da tradição cultural e religiosa do seu tempo, porque são pessoas e porque ama a todos sem discriminar ninguém.
Os Apóstolos, chamados diretamente por Jesus para andar com Ele, não são objeto de um privilégio, que lhes dê poder ou a possibilidade de ficarem à parte, num grupo separado, como havia tantos no mundo religioso de então. Eles são chamados para uma missão de acompanhar, escutar, consolar, ser portadores de bênção e dar continuidade à presença viva de Jesus, sem O substituir, mas sempre para proporcionar o encontro salvífico de cada pessoa com Ele.
Jesus faz caminho com as multidões. As páginas do Evangelho estão cheias de encontros de Jesus com as multidões que anseiam por cura, libertação, perdão, compreensão e acolhimento. São, frequentemente, multidões de pessoas cansadas e abatidas, “como ovelhas sem pastor” (Mt 9, 36) e precisam de quem as acompanhe nos seus percursos de vida. Os Apóstolos são enviados em Seu nome para darem continuidade a essa presença e anunciarem a proximidade do Reino de Deus. O Bom Pastor quer acompanhar a todos nos caminhos da vida e fá-lo de modo concreto e adequado a cada pessoa, ao grupo dos Apóstolos e às multidões. Diante d’Ele ninguém fica sem a atenção que lhe é devida e todos são tratados com a igual dignidade que possuem.
- Atitudes a tomar numa Igreja sinodal
O caminho da Igreja é longo e difícil e só podemos fazê-lo se formos fiéis à vocação que recebemos de ser filhos de Deus, irmãos em Jesus Cristo e Comunidade iluminada pelas luzes do Espírito Santo. A nossa condição de Povo Santo de Deus reclama uma consciência renovada da fé que nos une e da igual dignidade que nos assiste. Daí nascem os desafios de comunhão, participação e missão, com todas as consequências de que esta realidade é portadora para todos os membros amados desta Igreja peregrina sobre a terra em direção à Pátria celeste.
O desafio da unidade é um dos mais queridos por Jesus, quando nos chama a segui--l’O, a permanecer com Ele e a sair para anunciar as maravilhas que realiza em nós. “Que todos sejam um, como Nós somos Um” (Jo 17, 22).
Marcados pela cultura do individualismo, que penetrou também na Igreja, havemos de deixar-nos converter pelo Espírito da unidade, que é o Espírito do amor e da comunhão. Somos, todos juntos, servos de Deus, servos da Igreja e servos da humanidade e nada nos pode separar de Deus e uns dos outros, para que o mundo creia e se salve. Unidade na mesma fé, unidade na mesma pastoral, unidade na caridade e na verdade é a atitude que nos é pedida.
O segundo desafio que vos proponho é o do amor à Igreja, à maneira de Jesus Cristo, que “amou a Igreja e se entregou por ela, para a santificar” (Ef 5, 25-26). A Igreja, apresentando em nós muitos sinais da sua debilidade e do seu pecado, é o Povo amado e querido por Deus, é a casa que nos acolhe. Dar a vida por ela, para que seja santa e imaculada em todos os seus membros e sinal do amor que temos ao próprio Cristo, O Santo e o Justo que, por ela deu a sua vida, é a nossa vocação comum.
A participação ativa na sua edificação e a corresponsabilidade na realização da sua missão no meio do mundo, manifestam a nossa atitude de filhos, que nunca rejeitam, maltratam ou subestimam a sua mãe. Edifiquemos, por isso, esta casa comum, esta família de irmãos que é para nós sacramento da salvação de Deus.
O desafio da missão decorre do mandato de Jesus, que nos envia a anunciar a Boa Nova a toda a terra, e encontra eco no sentido da fraternidade universal que nos inspira.
Há algo de específico a orientar a nossa missão no meio do mundo: dar-lhe aquilo que mais ninguém lhe pode dar, Cristo, que é caminho, verdade e vida. Integremo-nos nesta Igreja Povo de Deus, o verdadeiro sujeito de toda a evangelização e levemos à humanidade aquelas dimensões essenciais que nascem de Deus e que Jesus nos comunicou de forma real e visível, por palavras e por obras.
Como nos diz a liturgia deste domingo, no meio das turbulências próprias do tempo em que vivemos, aceitemos passar pela cruz e pela morte com Jesus, ancorados nas luzes da ressurreição que pela transfiguração já se vislumbram no horizonte.
Coimbra, 13 de março de 2022
Virgílio do Nascimento Antunes
Bispo de Coimbra